Senhores deviam, obrigatoriamente, dispensar os escravos do trabalho aos domingos e dias que, segundo a Igreja, eram considerados "santos" (¹). Ao menos nos tempos coloniais, a obrigatoriedade ficava apenas no papel. Não que houvesse muita preocupação em dar descanso aos escravos - a ideia, formalmente, é que as folgas servissem para práticas religiosas. Entretanto, colonizadores do Brasil, como regra geral, só eram muito devotos na aparência. No Compêndio Narrativo do Peregrino da América (²) encontramos um incidente (fictício, ao que parece, mas verossímil), que ilustra muito bem a questão de que estamos tratando:
"[...] Avistei doze escravos, entre machos e fêmeas, todos trabalhando em uma lavoura, na ocupação de cavar. Cheguei, saudei-os e lhes perguntei se era dia santo, ao que me responderam que bem sabiam que não era dia de trabalho, porém que seu senhor os mandara para aquele serviço, e lhes dizia que se comiam naqueles dias, também haviam de trabalhar; e se algum o repugnava fazer, o castigava, e porque eram cativos, não queriam experimentar maior rigor, por serem pretos, pobres, humildes e desamparados por sua grande miséria [sic]." (³)
Deixando de lado o conselho dado aos escravos pelo Peregrino da América, de que parassem de trabalhar, ainda que sob o chicote do feitor ou do senhor, porque isso lhes daria maior mérito diante de Deus (!!!), passemos da literatura para casos concretos, preservados no registro de confissões feitas durante a Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Por esses registros é fácil verificar que deixar de dar folga aos escravos nas ocasiões estipuladas pela Igreja era hábito corrente entre os senhores de engenho. Em 23 de janeiro de 1592, Antônio de Meira, do Recôncavo, "confessou que as negras de sua casa, cristãs Margarida e Antônia, brasílias, (⁴) alguns domingos e dias santos trabalham fiando e fazendo anastros, não lho estorvando ele" (⁵). Seria mais honesto, talvez, se admitisse que não era por vontade própria que as escravas trabalhavam, sendo, antes, obrigadas a isso.
Outro, também do Recôncavo, que apareceu diante do inquisidor para confissão, foi João Remirão, senhor de engenho, que "confessou que haverá seis anos que reside e governa [...] seu engenho, e sempre em todos os domingos e [dias] santos, moendo o engenho depois do sol posto, mandou e consente mandarem seus feitores lançar a moer o engenho e carretar carradas de lenha e canas, e fazer o mais serviço pertencente à moenda nos ditos domingos e [dias] santos, como se foram dias de semana, e também nos ditos domingos e [dias] santos, ainda pelas manhãs ante missa, manda carretar carradas de açúcar ao porto, e isto mesmo de moer e carretar nos ditos dias vê ele que usam e costumam geralmente nesta capitania todos os senhores e feitores de engenhos, sem exceção, e também muitos lavradores" (⁶).
Fica evidente, portanto, um conflito de interesses: de um lado a Igreja, através de seu representante, o inquisidor, insiste em disciplinar a vida quotidiana na Colônia, sob as mesmas normas que regem a conduta de quem vive no Reino; de outra parte, a exploração colonial, cuja lucratividade, que tanto interessa à Metrópole, não tolera suscetibilidades religiosas, que se entremetam na rotina de um engenho, no qual qualquer interrupção do trabalho resulta em redução nos ganhos. Não é difícil imaginar que, tão pronto a Inquisição virou as costas, tudo voltou a ser como sempre fora nos engenhos, ainda que, por medo ou respeito, alguma mudança, apenas temporária, tenha se efetuado, enquanto a incômoda Visitação não se punha a caminho.
Mais uma confissão, apenas para confirmar tudo o que já foi dito. Outro senhor de engenho, Nuno Fernandes, que se declarou cristão-novo, compareceu diante do visitador em 9 de fevereiro de 1592, e disse que, à semelhança de muitos outros, também mandava os escravos ao trabalho, sem qualquer interrupção nas tarefas: "manda também aos domingos e [dias] santos trabalhar aos seus a cortar embira para atar a cana e a carregar a barca, nos tempos de necessidade, porque vê que assim o costumam fazer geralmente nesta terra" (⁷). A responsabilidade era posta sobre o coletivo, enquanto o indivíduo tentava se safar.
Com o passar do tempo, os costumes, para bem ou para mal, sofreram mudanças. Sabe-se que em áreas de mineração era comum que fosse atribuída uma tarefa aos escravos que, se cumprida com antecedência, possibilitava algum tempo livre. Além disso, a mineração levou à formação de uma sociedade urbana, na qual a vida diária passava por maior vigilância. Escravos ainda eram escravos, mas podiam ter suas próprias confrarias e, em consequência, igrejas e capelas também próprias. Quanto aos que eram escravos em fazendas no Século XIX, particularmente nas Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, tornou-se um hábito respeitar "religiosamente" a folga semanal dos escravos aos domingos. O motivo é que nada tinha de piedoso: neste dia os escravos trabalhavam "livremente" em pequenos lotes, nos quais cultivavam gêneros alimentícios para consumo próprio e, em caso de excedente, para venda. Esses magros recursos eram, quase sempre, usados na compra de alguma peça de vestuário. Tudo muito interessante para os senhores, é claro.
(1) Como era o caso da Sexta-feira Santa e do Natal, por exemplo.
(2) Um clássico da literatura colonial, mesmo que pareça estranho haver tal coisa em um país em que quase toda a população era formada por analfabetos convictos.
(3) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 151.
(4) Neste caso, a palavra "negras" é usada como sinônimo de escravas, visto que as pessoas mencionadas são descritas como "brasílias", ou seja, indígenas.
(5) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: _____, 1922, p. 154.
(6) Ibid., p. 190.
(7) Ibid., p. 218.
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