terça-feira, 31 de agosto de 2021

Novas regras para a Inquisição em 1774

O Século XVIII é chamado "Século das Luzes" devido à enorme influência exercida pelo Iluminismo, em suas múltiplas facetas. Na política, velhas ideias absolutistas, ainda que não varridas de todo (¹), ao menos foram disfarçadas, fazendo com que algumas monarquias ganhassem um aspecto mais aceitável, e escondendo, atrás de cortinas de modernidade, as teias de aranha ideológicas que andavam, há séculos, tão confortáveis no poder. Nesse cenário, o que se faria com a Inquisição? Deveria ser mantida? Seria possível compatibilizá-la com mudanças que pareciam inevitáveis?
Em Portugal e, portanto, naquilo que diretamente interessava ao Brasil, o inquisidor-geral, Cardeal da Cunha, propôs um novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, que entrou em vigor em setembro de 1774, sob os auspícios do Marquês de Pombal e do rei D. José I. Toda a responsabilidade pelos sangrentos autos da fé do passado foi lançada sobre os jesuítas - lembrem-se, leitores, de que a Companhia de Jesus, depois de expulsa de Portugal e seus domínios, foi extinta em 1773 (²). "[...] não houve estabelecimento útil nestes Reinos [...] que a pravidade jesuítica não deturpasse, aniquilasse, reduzisse aos miseráveis termos de os fazerem compatíveis com as máximas do seu despotismo [...]", afirmou o Cardeal da Cunha, entendendo que o Tribunal da Inquisição deveria ter status de tribunal régio e não simplesmente de tribunal eclesiástico. Consequentemente, estaria, em última instância, sob a autoridade do monarca reinante em Portugal. Quem iria supor que o rei pensaria mal dessa ideia?
Na prática, o novo Regimento abolia a tortura, com apenas uma exceção, "por ter mostrado a experiência que sendo a fragilidade humana inferior à constância que seria necessária para tolerar as dores dos tormentos, vêm os atormentados a confessar, por se livrarem delas, o que nunca fizeram, nem ainda imaginaram". Contudo, no Título II, § 3, havia esta instrução: "Porém se os réus forem heresiarcas ou dogmatistas, e constar terem disseminado erros e feito sequazes deles, se os não confessarem e as pessoas que com eles contaminaram; ou confessarem, ocultando algumas das ditas pessoas, serão postos a tormento proporcionado à qualidade da prova e dos indícios, que contra eles houver, pelo muito que importa arrancar de entre os fiéis tão venenosas e pestíferas raízes." Não se admitia, portanto, qualquer tolerância com ensinos ou ideias que contrariassem a doutrina oficial da Igreja. 
É curioso, até bizarro, o que se mandava em relação a acusados de bruxaria, feitiçaria e práticas congêneres, tão investigadas e cruelmente punidas pela Inquisição nos séculos precedentes. O novo Regimento dava a entender que, ou essas práticas eram fruto apenas de superstições e ignorância, ou resultavam de fenômenos ainda não devidamente explicados pela ciência: "Ou foram as referidas invenções miseráveis ideias de outras pessoas pobres e mendicantes, as quais buscavam recurso nas superstições de que fizeram uso para matarem a fome sem fatigarem o corpo com trabalho [...]; ou foram produtos naturais dos novos descobrimentos e das antes desconhecidas operações da física experimental, da química e da botânica, ou foram fenômenos das paixões histéricas e das intemperadas imaginações do sexo feminino [sic!!!!!!]." 
Seria razoável supor, então, que a Inquisição deixasse em paz os adeptos de superstições? Nada disso! Réus dessas coisas seriam chamados ao Santo Ofício e deveriam admitir que tudo o que faziam não passava de "fingimentos e imposturas" e, como suas práticas eram condenadas pela Igreja, podiam receber uma série de penalidades, incluindo açoites e degredo. Nada de fogueira, porém. 
E se algum réu insistisse que, de fato, tinha poderes mágicos? Mandava o Regimento, no Título XI, § 4: "Que os réus que se acharem nos referidos casos, sejam definitivamente julgados por loucos, sem necessidade de outra prova ou exame; que sejam como tais remetidos ao Hospício Real de Todos os Santos; que nele fiquem reclusos nos cárceres dos doidos, enquanto o Conselho Geral não mandar o contrário; e que nos mesmos cárceres sejam tratados pelos enfermeiros deles, como o costumam ser os outros doentes dessa enfermidade, frenéticos ou maníacos, conforme o indicarem os sintomas de cada um dos referidos loucos." 
Estariam os inquisidores ficando bonzinhos, estaria o Tribunal do Santo Ofício ficando menos malvado ou até simpático? 
Não se iludam, leitores. Os tempos eram outros, o Absolutismo, sob o influxo das ideias iluministas, corria sério perigo, e era preciso mudar, para evitar que coroas caíssem das cabeças, ou, pior, que cabeças caíssem do respectivo pescoço. O simples fato de existir um tribunal régio como o da Inquisição prova, sem margem a dúvida, que a liberdade de pensamento e expressão não era consentida. Veja-se, como evidência, o que o "moderno" Regimento do Cardeal da Cunha determinava, no Título IV, § 8, quanto aos condenados por heresia que se recusassem a reconhecer seus supostos erros como tais e fossem, portanto, "relaxados à justiça secular" (³): "Os hereges afirmativos, que persistirem em seus erros até final conclusão de sua causa, serão entregues e relaxados à Justiça Secular; e sendo caso que possa temer-se que digam em público algumas coisas contra nossa Santa Fé, levarão mordaça na boca, e hábito de relaxados; porém se reconhecerem seus erros e se reduzirem à nossa Santa Fé Católica, fazendo inteira confissão de suas culpas, serão recebidos ao grêmio e união da Santa Madre Igreja, e terão reclusão em algum mosteiro ou colégio de Regulares Doutos, que os possam bem instruir nas coisas da fé."
Não importa se, a partir de 1774, foram muitos ou poucos os condenados pela Inquisição. O que interessa é que o cerceamento à liberdade individual permanecia. Era proibido pensar diferente da maioria ou questionar crenças estabelecidas. Considerem, por comparação, meus leitores: um móvel velho e em mau estado se torna novo e bom, apenas por receber uma camada de tinta ou uma demão de verniz? É certo que não. Era inútil tentar reformar o Tribunal do Santo Ofício com a introdução de um novo Regimento, por moderado que fosse em relação aos anteriores. O problema estava na Inquisição em si mesma e nas razões para sua existência.

(1) Sempre há um tapete por perto...
(2) Uma bula papal autorizou sua restauração em 1814.
(3) Expressão usada em todo o Regimento de 1774 para designar aqueles que seriam executados.


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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Vamos falar de ópera?

Óperas, em sua imensa maioria, contam histórias malucas, insanas mesmo. Querem ver? Um alto oficial militar egípcio é condenado a morrer trancafiado em uma cripta e, ali, descobre que uma escrava por ele apaixonada entrou sem ser vista para morrer também (Aída); encontros e desencontros amorosos acabam em duelo e morte (Cavalleria Rusticana); na França do Século XVIII uma mulher, presa sob a acusação de roubo e prostituição, é condenada a degredo na Louisiana, onde morre, acompanhada por um jovem nobre que, apaixonado por ela, fizera questão de ir a tão inóspito lugar (Manon Lescaut); o barão Scarpia tortura o pintor Mario Cavaradossi e ordena sua execução, mas Floria Tosca apunhala o barão, Cavaradossi é executado e Tosca se suicida (Tosca). Basta! Em alguns casos, os libretistas se inspiraram em romances de sucesso, enquanto em outros, apenas deram asas exageradas à criatividade. Quem se importa com essas histórias cabeludas, se a música é capaz de provocar alucinações até em estátuas (desde que não seja a do Comendador em Dom Giovanni)?
Mas abram os olhos, leitores. As palavras podem conter ideias venenosas. Considerem este trecho de uma das árias mais famosas de todos os tempos:
"La donna è mobile qual piuma al vento,
Muta d'accento e di pensiero..."
Sim, é de Rigoletto, música de Verdi, com libreto de Francesco Maria Piave. Aos que tendem a concordar com o que se diz, recordo que o libretista colocou estas palavras na boca do Duque de Mântua, o crápula da ópera. Contudo, é provável que muita gente seja capaz de cantarolar e aplaudir, sem sequer pensar no sentido dos versos. Leitoras, é melhor considerar este assunto a sério.
Por que os cantores de ópera precisam ser capazes de uma emissão sonora elevadíssima? Ora, leitores, porque quando a ópera se desenvolveu, não havia meios elétricos e/ou eletrônicos de amplificação - nada de microfones, portanto. Assim, à medida que a ópera se popularizou, atingiu camadas mais amplas da sociedade, atraindo mais público, os teatros foram ficando maiores, e os cantores e cantoras precisaram ter um vozeirão, coisa não requerida dos cantores líricos de câmara. A técnica desenvolveu-se, e, com ela, a exigência por longo tempo de estudo e preparação, até que um candidato a herói ou heroína dos palcos operísticos estivesse em condições de estrear.
Concluo com esta observação: a ópera, que hoje, como regra, está restrita à apreciação por parte de uma elite musicalmente educada, nasceu como espetáculo artístico destinado a poucos, tornou-se diversão popular, atraindo multidões (com muito ou pouco conhecimento de música), ousou influenciar o comportamento social, mesmo que, circunstancialmente, suscitando verdadeiros escândalos, intrometeu-se até na política e ainda tem adeptos apaixonados. Já não é, contudo, espetáculo para as massas. Perdeu a luta para concorrentes de peso que o Século XX se encarregou de apresentar.


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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Como estava a Fábrica de Ferro de Ipanema em 1852

Tendo chegado ao Brasil em 1810, o Barão de Eschwege (¹) percorreu a Província de Minas Gerais investigando o que poderia ser feito para que a mineração ganhasse força. Notou que havia por lá algumas fábricas de ferro, tanto públicas quanto particulares, mas, mesmo reconhecendo que eram importantes para o País, em virtude da produção de artigos indispensáveis, mostrou-se cético quanto às possibilidades de que se tornassem lucrativas. 
Alto-forno na Fábrica de Ferro de Ipanema
Não obstante, ao considerar a  Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema (²), localizada na Província de São Paulo, julgou que oferecia maior probabilidade de êxito:
"A fábrica de S. João de Ipanema oferece maiores vantagens pela sua localidade, porque estabelecendo-se aí uma fábrica de armas e ferrarias, onde se fabrique em obra grande parte do ferro para os Reais Arsenais, etc., ela por si mesma se sustentará [...]." (³)
Passaram-se algumas décadas. Na edição de 27 de maio de 1852, o jornal Aurora Paulistana trouxe um relatório do presidente da Província de São Paulo,  José Tomás Nabuco de Araújo, no qual estava incluída esta observação sobre a Fábrica de Ipanema: "[...] no ofício sob o qual remeti ao governo imperial [...] indiquei como essencial o arrendamento dessa fábrica [de Ferro de Ipanema], sendo que, se esse arbítrio não for tomado, cumpre tirar esse estabelecimento do estado pouco lisonjeiro em que se acha, e montá-lo como deve ser para que alguma utilidade produza, reparar os edifícios e oficinas arruinadas, dar-lhe mestres hábeis e peritos, construir ou reformar as máquinas e aparelhos, sem os quais, como declara o diretor, não é possível a refundição do ferro e o fabrico de obras importantes." (⁴)
Ora, meus leitores, parece que, dessa vez, Eschwege errou, e por larga margem. Não lamento, porém. Se a Fábrica de Ipanema houvesse prosperado, provavelmente as construções do Século XIX acabariam demolidas para dar lugar a edifícios mais modernos. Mas, como nada disso ocorreu, quem a visita pode dar um mergulho no passado, como poucos lugares no Brasil oferecem. Alguém acha isso ruim?

(1) Foi convidado a vir ao Brasil pelo governo do príncipe D. João, assim como vários outros cientistas e artistas estrangeiros.
(2) Município de Iperó - SP. No Século XIX era parte de Sorocaba.
(3) ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Notícias e Reflexões Estadísticas a Respeito da Província de Minas Gerais.
(4) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 45, 27 de maio de 1852, p. 1.


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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

De que se ocupavam as sabinas raptadas para o casamento com romanos

O rapto das sabinas é episódio (talvez) lendário ou (talvez) semilendário, contado para explicar de onde teriam vindo as mulheres que se casaram com os primeiros romanos, aqueles que foram contemporâneos de Rômulo e Remo, heróis (talvez) lendários, ligados às origens e fundação de Roma.
Com tanta lenda, é útil considerar este assunto? Sim, se levarmos em conta o que pode ser extraído dele, não pelo que se dizia, mas pelo que não era dito. 
Plutarco (¹), grego de nascimento, é famoso pelas biografias comparadas que escreveu, as Vitae parallelae. Ao tratar de Rômulo, abordou a questão do rapto das sabinas, referindo que, para que se fizessem as pazes entre os raptores e as famílias das mulheres raptadas (que seriam mais de oitocentas), foi firmado um acordo que determinava o modo como cada uma delas seria tratada, não só pelo respectivo marido, como pelos romanos em geral, quando estivessem em lugares públicos. Vejam, leitores, é interessante: "Deviam ser tratadas com respeito quando andavam pelas ruas, concedendo-se a elas a preferência no caminho; nenhuma palavra obscena devia ser dita em sua presença e nenhum homem devia mostrar a elas descoberta alguma parte do corpo, exceto aquelas que podem ser expostas com decência [...]" (²). Os filhos das sabinas com romanos seriam, pelo acordo, distinguidos, na infância, com adornos especiais, que atestariam diante de todos sua posição de destaque na sociedade.
Outro aspecto, contudo, chama a atenção na lista de direitos das sabinas, um que justifica a análise do caso, porque revela algo importante em relação às ocupações das mulheres romanas na Antiguidade: é que, conforme Plutarco, havia para elas uma só obrigação, que era trabalhar com a lã. Isso devia incluir tarefas como fiar e tecer. Era relevante, pois consta que os primitivos romanos eram pastores de ovelhas e criadores de gado. Era também relevante porque os primitivos romanos, constituindo um povo rústico, não eram dados a muito luxo no viver quotidiano e, portanto, era necessário ter em casa quem soubesse fazer roupas, não só para os dias cálidos do verão, mas também para as épocas invernais. Então, meus leitores, lenda ou realidade, a história das sabinas nos conta um pouco do que devia ser a vida e ocupação das mulheres nos primórdios de Roma, quando os escravos não eram ainda numerosos. O fato de que se supunha que os pais sabinos haviam imposto aos maridos romanos que não explorassem a força de trabalho das mulheres que haviam raptado mostra, por oposição, que, como regra, provavelmente competia a elas uma profusão de tarefas, incluindo cozinhar, cuidar dos filhos pequenos, consertar roupas e até ajudar na agricultura. Não devia ser pouco, como, afinal, não era, em muitos outros povos. 

(1) Nascido em Queroneia, viveu entre c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Quanto decaiu a arrecadação dos reais quintos em Minas Gerais

A arrecadação correspondente aos reais quintos do ouro extraído no Brasil despencou em um tempo relativamente curto. Mas quanto, afinal, rendiam os quintos? 
De acordo com o Barão de Eschwege, a situação em Minas Gerais, com o correr dos anos, foi a seguinte:
1764: 99 arrobas;
1774: 75 arrobas;
1777: 70 arrobas;
1811: 24 arrobas;
1813: 20 arrobas;
1816: 18 arrobas;
1818: 12 arrobas;
1819: 7 arrobas;
1820: 2 arrobas. (¹)
Eschwege veio ao Brasil em 1810, a convite do governo joanino - a Corte, nesse tempo, se instalara no Rio de Janeiro - e percorreu as Gerais na intenção de verificar por que os quintos haviam decaído tanto e o que se poderia fazer para incentivar a mineração. Descobriu que as autoridades culpavam o contrabando de ouro pelo decréscimo na arrecadação, mas, por observação própria, concluiu que esse era apenas um dos aspectos envolvidos. Cada vez menos gente trabalhava na extração aurífera: "Nos anos da riqueza se ocupavam oitenta mil pessoas com a mineração, porém no atual tempo da miséria apenas seis mil; por consequência não é só o extravio o que erradamente se dá por principal causa da diminuição do Real Quinto [...], mas a diminuição do número de braços, braços que o mineiro empobrecido [...] retirou desses trabalhos, por já cansado de não ter a fortuna dos seus antepassados" (²). Os "braços" a que se referiu Eschwege eram de escravos, quase única mão de obra nas minas.
O maior problema, que esse cientista não tardou a perceber, estava na falta de conhecimentos técnicos dos mineradores. Extraía-se o ouro de superfície, com quase inacreditável desperdício de solo aurífero, e, acabando o que se podia arrancar da terra com meios escassos, abandonava-se o terreno em busca de outro, supostamente mais promissor. "Era para prever", concluiu o Barão de Eschwege, "que os grandes tesouros que os mineiros acharam quase na superfície da terra, e com pouco trabalho, deveriam diminuir com o tempo, ajudando sobretudo a ignorância para destruir mais depressa o que por uma regular administração montanística seria objeto de indústria para muitos séculos" (³). 

(1) Cf. ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Notícias e Reflexões Estadísticas a Respeito da Província de Minas Gerais.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Façanhas bizarras de soldados que acompanharam Hernán Cortés na invasão do Império Asteca

A Hernán Cortés foram atribuídas todas as honras da conquista do México, com pouca ou nenhuma referência aos feitos e valor dos mais soldados - essa foi a queixa que, ao final de sua Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España, fez Bernal Díaz del Castillo. Com notável memória, porque já eram passados muitos anos desde o fim do Império Asteca, fez uma lista extensa dos homens que acompanharam Cortés, mencionando o nome de quase todos, além de algumas de suas façanhas. 
Contudo, nem todos se notabilizaram pelos feitos de armas. Vejam, leitores, dentre os citados por Bernal Díaz, alguns que tiveram fama por outras razões:
"Cristóbal de Olí (1) [...] morreu [...] degolado [...] porque se insurgiu com uma armada que Cortés lhe confiara."
"Pedro de Solis Atrás-da-porta, porque estava sempre em sua casa atrás da porta, olhando os que passavam na rua, mas não podia ser visto [...]."
"um bom soldado (2) que tinha uma mão a menos, que fora cortada pela Justiça em Castela [...]."
"Juan Perez, que matou sua mulher [...]."
"[...] Fulano Suarez o Velho, que matou sua mulher com uma pedra de moer milho [...]."
"[...] Gonzalo de Umbria, muito bom soldado, a este [...] Cortés mandou cortar os dedos dos pés [...]."
"[...] outro soldado que se chamava Yañes, natural de Córdoba, e este soldado foi conosco a Las Higueras, e enquanto isso sua mulher se casou com outro marido [...]."
"[...] outro soldado que se chamava Ribadeo, galego, que nós apelidamos Beberreo, porque bebia muito vinho [...]."
"[...] um soldado que se chamava Álvaro, homem do mar, natural de Palos, do qual se dizia que teve com índias da terra trinta filhos em cerca de três anos [...]."
Finalmente, três homens com o mesmo sobrenome - Tarifa -, dois deles destacados mais pelo que falavam que pelo que faziam:
"[...] três soldados que tinham por sobrenome Tarifa; um foi morador de Guaxaca [...]; outro era chamado Tarifa dos serviços, porque vivia dizendo que servia a sua majestade e não lhe davam nada [...]; e ao outro chamavam Tarifa das mãos brancas, [...], porque não era para a guerra nem para coisa de trabalho, mas apenas para falar de coisas passadas que lhe haviam acontecido em Sevilha [...]." (3)
(1) Foi um dos principais líderes da campanha de conquista de Tenochtitlán.
(2) Seu nome não foi referido por Bernal Diaz del Castillo.
(3) Todos os trechos aqui citados da  Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Náufragos


As ondas arremessam homens contra a areia. Desde que uma tempestade resultara em grandes avarias, o navio estava condenado. O piloto, mestre experiente nas armadilhas do mar, tratara de conduzir a embarcação para perto de terra. O risco, no entanto, era enorme. A traição de um rochedo submerso se encarregara da sentença final. 
As vagas são ferozes e mesmo bons nadadores têm consciência do perigo. Nadar, boiar, voltar a nadar, ainda quando as forças se esgotam. Sobreviver não é para os fracos.
Que lugar será esse? Ilha, talvez? Terra firme? Estirados na praia, ressentem-se da confusão mental resultante de tanto esforço. Entreolham-se. Contam-se. São onze, ao todo. Onde estarão os outros? 
Um estrondo, olham na direção do mar e veem, à distância, o que restara do casco tomar o rumo das profundezas. A quase alegria que a sensação de chegar à areia trouxera é substituída, em um átimo, pelo mais profundo desânimo. O olhar se perde no horizonte.
Mais tarde, o calor do sol, que seca as roupas, aliado à sede e à fome, os traz de volta à realidade. Alguns, sentados na areia, se entreolham, em uma interrogação que se expressa no silêncio. Três caminham perto da arrebentação, deixando pegadas que as ondas logo se encarregam de cobrir. 
A escassez de palavras é quebrada por dois veteranos de outro naufrágio, que tratam de tomar a liderança. É preciso que se dividam em grupos: um, que permanecerá na praia, tentando recuperar objetos do navio arrastados pelas águas e que possam ser úteis, e outro, que irá à procura de água potável e comida. Ao primeiro ficará a tarefa de providenciar alguma sinalização. Se tiverem sorte, ao passar por ali outro navio, os marujos notarão uma cruz rústica contrastando com a areia tão alva, ou a bandeira improvisada com uma camisa que, para isso, se rasgou. Talvez, então, sejam resgatados.  
Além da linha da praia, em meio à vegetação exuberante, alguns pares de olhos negros observam todos os movimentos dos recém-chegados.


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quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Atletas gregos da Antiguidade não usavam uniformes esportivos

Em época de grandes competições, fabricantes de material esportivo fazem todo o esforço para que atletas de renome usem uniformes com sua marca. Supondo que esses competidores obtenham sucesso, provavelmente seus fãs irão imitá-los, usando roupas semelhantes. Se isso é identificação com uma imagem vitoriosa ou apenas magro substituto para um desempenho atlético não tão notável, não vem ao caso. Os empresários do setor sabem que patrocinar campeões é um bom negócio.
Não era assim na Grécia Antiga, não só porque as grandes empresas do ramo esportivo ainda teriam de esperar milênios para vir à existência, como porque atletas gregos não usavam uniformes.  Melhor dizendo, não usavam roupa alguma durante as competições. Qual a razão para essa falta de compostura (¹)?
Pugilista da Antiguidade (³)
De acordo com Tucídides, ateniense do Século V a.C. que não só presenciou como lutou na Guerra do Peloponeso, os donos da ideia de competir com os mesmos trajes com que haviam nascido foram os espartanos, que tinham o costume de passar óleo no corpo antes de treinar ou disputar uma prova. Contudo, ainda conforme Tucídides, espartanos somente haviam começado a competir nus há pouco tempo, porque o costume anterior, vigente em tempos antigos, era que, nos jogos olímpicos, atletas usassem ao menos alguma roupa ao redor da cintura (²).
É provável que espartanos e, a partir deles, outros atletas, passassem óleo no corpo antes das lutas, para evitar que oponentes tivessem facilidade em agarrá-los. Também se tem dito que o ideal estético grego, revelado em muitas esculturas que sobreviveram até nossos dias, mostra que a perfeição física era um atributo muito valorizado e, portanto, não haveria razão para ocultar, sob roupas, o corpo dos que competiam nos jogos. Vale notar, também, que nem mesmo nos locais de treino era comum que atletas usassem algum tipo de vestuário.
Quanto aos espartanos, pela educação que recebiam desde a infância, com o objetivo de torná-los excelentes soldados sob quaisquer circunstâncias, estavam acostumados a usar pouca roupa, mesmo no dia a dia. Foi o que disse Plutarco, ao traçar a biografia de Licurgo (⁴):
"Depois da idade de doze anos, [os meninos espartanos] vestiam-se apenas com uma túnica simples que devia durar um ano, e jamais usavam roupas dispendiosas. Seu corpo era bronzeado e endurecido pela exposição ao ar, ao frio, ao calor e às tarefas penosas que deviam realizar. Não eram estimulados a hábitos refinados, não se banhavam com frequência e não se perfumavam [...], embora para o banho tivessem datas definidas a cada ano [...]." (⁵)
Diante disso, meus leitores, não será injusto pensar que suportar o aroma resultante da presença dos atletas espartanos nas competições já era uma proeza homérica. Que surpresa haveria em que tantas vezes saíssem vencedores?

(1) Falta de compostura para nossos critérios de ocidentais do Século XXI.
(2) Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro I, § 6.
(3) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 85.
(4) Legislador espartano semilendário.
(5) PLUTARCO. Vitae parallelaeO trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 3 de agosto de 2021

Por que a madeira dos ipês não era usada na navegação a vapor

No Século XIX o carvão era usado como combustível na maioria das embarcações a vapor. No Brasil, porém, tornou-se comum queimar madeira, porque o carvão, sendo importado, era caro e estava sujeito às incertezas do câmbio. Não era o caso da madeira, que, nesse tempo, muita gente achava que jamais acabaria. Madeiras nobres, de altíssimo valor comercial, eram consumidas como se fossem coisa inútil.
Observando o que acontecia na navegação pelo rio Paraguai, João Severiano da Fonseca (¹) assim descreveu o desmatamento que presenciava:
Ipê-rosa
"À beira Paraguai (²) [...], a custo se avista um ou outro jacarandá, guatambu ou vinhático, que o mais já tem desaparecido para se converter em combustível dos vapores (³) que sulcam o rio: precioso material que povoava as margens e que agora só de longe em longe deixa ver um ou outro exemplar, que de julho a setembro, na estação das flores, torna tão belas as matas, esmaltando-lhes o verde-escuro com as altivas grimpas transmudadas em ramalhetes enormes e formosíssimos [...]." (⁴)
Esse autor notou, contudo, que os belos ipês não eram cortados, e explicou:
"Se ainda abundam e avultam os ipês, peúvas na Província [de Mato Grosso], não é porque sejam pior combustível, mas por embotarem os machados e cansarem o braço dos lenhadores. [...]" (⁵)
Não era, portanto, pela beleza que essas árvores eram poupadas.
Locomotivas a vapor também usaram madeira como combustível no Brasil, mas, neste caso, o desmatamento decorrente tornou-se uma preocupação. Buscou-se uma madeira que fosse de crescimento rápido, que se adaptasse ao clima e solo do País e que pudesse ser cultivada para prover a lenha necessária. Foi assim que os eucaliptos, de origem australiana, foram testados e introduzidos no Brasil.

(1) Veterano da Guerra do Paraguai, foi integrante, como médico, da expedição que demarcou a fronteira entre o Brasil e a Bolívia.
(2) Referência ao rio Paraguai.
(3) Embarcações a vapor.
(4) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, pp. 152 e 153.
(5) Ibid., p. 153.


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