sexta-feira, 29 de março de 2024

Luto na capital do Império nas horas da Sexta-feira Santa

No Brasil do Século XIX, ostentar religiosidade fazia bem à imagem pública de qualquer pessoa - com fé ou sem ela. Por isso, em ocasiões em que tradicionalmente as práticas religiosas eram lutuosas, ninguém que se pretendesse respeitável fugia à obrigação de aparentar tristeza. Era o que acontecia nas Sextas-feiras Santas. 
O olhar observador de um mercenário alemão que esteve no Brasil entre 1824 e 1826, C. Schlichthorst, captou esta imagem em palavras, a partir do que acontecia no Rio de Janeiro, capital do Império:
"Na Sexta-feira da Paixão, todas as igrejas se cobrem de preto, os altares, as alfaias de prata e ouro se envolvem em crepes, e toda a gente põe luto. De cinco em cinco minutos, as fortalezas e navios de guerra salvam com um tiro de canhão. Põem-se as bandeiras a meio pau e braceiam-se as vergas nos navios de guerra. Para onde quer que se volva o olhar, veem-se sinais da mais profunda tristeza. [...]" (*) 
Era, como já foi dito, tristeza aparentada, como mandava a boa conduta, não necessariamente tristeza sentida. Nesse tempo, o catolicismo era religião oficial. Explica-se, portanto, que a necessidade de ostentar luto fosse muito além do espaço das igrejas, alcançando, também, as unidades militares em terra e no mar.
 
(*) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826), trad. Emmy Dodt e Gustavo Barroso. Brasília: Senado Federal: 2000, p. 118.


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quarta-feira, 27 de março de 2024

Utilidade do comércio internacional para os antigos gregos

A porção deste planeta que era perfeitamente conhecida pela maioria dos povos da Antiguidade era muito pequena. Assim, é compreensível que, para os curiosos, que queriam saber mais do mundo em que viviam, o comércio internacional oferecesse uma oportunidade muito interessante. Plutarco, ao contar os fatos que considerava relevantes na vida de Sólon (¹), o legislador ateniense, afirmou que "[...] ao tratar com pessoas de diversos povos e reinos, e ao observar os costumes e governo de outras nações, é possível, para pessoas inteligentes, obter experiência e prudência, que são virtudes mais valiosas que a riqueza proveniente do comércio." (²)
Por suposto, além do desenvolvimento dessas apreciadas virtudes políticas, o comércio internacional trazia, também, enriquecimento a quem podia se envolver nele, e Plutarco não desprezou esse fato, mostrando, também, que o intercâmbio de mercadorias era fator de sobrevivência: "Do trabalho decorrente [do comércio internacional], reinos e cidades se abastecem daquilo que precisam, e mercadorias chegam de outras regiões de onde elas são abundantes, fazendo-se provisão para que a vida se conserve" (³).
A razão que levou Plutarco a tecer essas considerações é que Sólon, durante algum tempo, se ocupou de atividades comerciais, antes de mergulhar de vez na vida pública em Atenas. O comércio marítimo era favorecido na Grécia porque seu território, cujo relevo dificultava, às vezes, as viagens terrestres, era, ao mesmo tempo, dotado de bons portos naturais, condição indispensável para o comércio internacional em larga escala na Antiguidade. 

(1) Século VI a.C.
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.  
(3) Ibid


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segunda-feira, 25 de março de 2024

Cupins

Terrivelmente destrutivos, os cupins tinham uma função importante na preservação das estradas brasileiras até o Século XIX


Cupinzeiro
A simples menção da palavra "cupim" pode provocar uma reação negativa em quem já teve móveis ou casa de madeira arruinada por eles. Não há limite à voracidade desses isópteros. Contudo, já houve quem visse neles uma incrível utilidade, no tempo em que havia poucas e péssimas estradas no Brasil, continuamente em risco de deixarem de existir pela expansão das florestas que as cercavam. 
Ao viajar pelo interior do Brasil pouco depois da Independência, o brigadeiro Cunha Matos pôde observar a ação dos cupins sobre troncos que caíam em caminhos, já, de si mesmos, precários:
"Os caminhos abertos a machado em toda a extensa região da serra, só merecem o nome de estradas no Brasil há pouco saído dos braços da natureza. [...] A Providência criou nestes lugares o benéfico e voraz cupim, que, na habitação do homem, se reputa um ente mui fatal. É a este pequeno inseto que se deve a pronta corrupção dos imensos troncos que os séculos, as estações, o fogo e os meteoros (¹) naturais lançam por terra, e que, a não ser aquele diminutíssimo inseto, obstruiriam as estradas [...]." (²)  
Cupinzeiro (outro "modelo")
Assumindo que talvez nem todos os seus leitores soubessem exatamente o que eram os cupins de que falava, Cunha Matos passou, em seguida, a descrevê-los.
"Estes animalejos", disse ele, "vivem em república que se assemelha à das abelhas; as suas casas, as suas galerias, os seus armazéns [sic] são admiráveis; a mesma contextura do edifício mostra a ciência do grande Arquiteto que os ensinou. [...]" (³).
Quem poderia lutar contra os cupinzeiros? Havia na fauna brasileira um ser com essa capacidade: 
"[...] Uma matéria glutinosa liga o pó da terra e as mais pequenas fibras da madeira, e forma um betume [sic], que só não escapa à dura e recurvada unha do tamanduá, que introduzindo a delgada língua nas galerias, recolhe ao estômago os vorazes insetos [...]." (⁴)
(1) "Meteoro", no sentido usado por Cunha Matos, designa fenômenos como chuva, granizo, vento e outros mais. 
(2) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 42.
(3) Ibid.
(4) Ibid.


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sexta-feira, 22 de março de 2024

Batelões no Paranapanema

Batelões foram usados nas monções cuiabanas do Século XVIII, que, através do Tietê e de outros rios, conduziam pessoas que pretendiam chegar às regiões auríferas de Mato Grosso. Depois disso, foram caindo em desuso e, finalmente, foram abandonados nas primeiras décadas do Século XIX, certo?
Errado! Batelões ainda eram usados no final do Século XIX na navegação pelo rio Paranapanema, divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná. Foi o que afirmou Adolpho Augusto Pinto em História da Viação Pública de São Paulo:
"As embarcações em uso nesta seção do Paranapanema são grandes canoas, chamadas batelões, feitas de um só tronco de árvore gigantesca, que permite dar à embarcação um comprimento de 12 a 15 metros, largura de 1 m a 1,2 m, calando 0.45 m a 0.60 m sob a carga de 200 arrobas, além da tripulação, ordinariamente composta de quatro homens armados de varejões e remos, e de um piloto ou prático do rio." (¹)
Como embarcações a remo que eram, os batelões precisavam da ajuda de braços humanos em seu deslocamento na água:
"Os canoeiros são índios mansos [sic] da colônia Jatahy no rio Tibagi ou do Piraju; trabalham de modo inexcedível, ninguém nada melhor ou afronta uma cachoeira com mais denodo." (²) 
Uma observação faz-se necessária: para construir um batelão era preciso uma árvore enorme. Por conseguinte, árvores desse porte deviam ser ainda encontradas nas matas da região do Paranapanema, nessa época de que tratamos. Porém, como em outras áreas, ficavam cada vez mais raras.

(1) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 311.
(2) Ibid. 


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quarta-feira, 20 de março de 2024

Como Heródoto descreveu Babilônia

Imaginava-se que Babilônia seria assim,
antes que escavações arqueológicas a partir
do Século XIX revelassem mais sobre ela (²) 
Muitas cidades da Antiguidade destruídas em guerra foram, depois, reconstruídas. As ruínas eram trituradas e, sobre elas, a nova cidade era erguida. Sucessivas guerras e destruições acabavam criando uma colina artificial, formada pelo entulho acumulado, uma reconstrução após outra. 
A Babilônia que Heródoto conheceu no Século V a.C. já estava decadente. Fora conquistada em 539 a.C. pelos exércitos de Ciro, o Grande. Mas continuava a existir, como lembrança do esplendor que tivera nos dias de Nebuckadnezar II (¹).
Voltemos a Heródoto. Foi assim que ele descreveu Babilônia, afirmando que tinha a forma de um quadrado e que estava situada em uma grande planície:
"Babilônia é cortada pelo rio Eufrates, um rio extenso, profundo e de correnteza veloz [...]. A muralha que cerca as duas partes da cidade corre até chegar ao rio, onde começa uma parede de tijolos cozidos, que segue pela margem. A cidade está repleta de casas com três e até quatro andares e é atravessada por ruas retilíneas, tanto as que existem no sentido do comprimento como as que cruzam por elas e chegam até o rio. Cada rua que chega ao rio tem uma porta de bronze que permite acesso às margens do Eufrates, e, dessa forma, há uma porta para cada bairro existente entre as ruas." (³)
Assim como tantas outras, a cidade de Babilônia também passou por destruições e reconstruções. Mas sobreviveu para, finalmente, ser alvo de um projeto urbanístico e estratégico avançadíssimo para os padrões da Antiguidade. Além da muralha externa de estrutura complexa, era rodeada por um fosso profundo e largo, com o propósito de torná-la virtualmente inexpugnável.  A descrição feita por Heródoto demonstra que foi planejada, ao contrário de muitas povoações da época, que surgiam e cresciam ao acaso, fruto da gradual sedentarização.
Como os babilônios poderiam imaginar que alguém teria a ousadia de entrar na cidade através do rio? A confiança de seus habitantes era tanta que teriam esquecido de trancar as famosas portas de bronze que levavam ao Eufrates, e foi por elas que os exércitos de Ciro alcançaram facilmente os bairros, tendo entrado na cidade pelo leito do rio, cujo curso haviam alterado para que o nível da água baixasse. Heródoto afirmou que o mais importante templo da cidade, o de Bel Marduk, ainda existia em seus dias, e no Século IV a.C., a cidade encantou Alexandre Magno, que nela morreu em 10 de junho de 323 a.C. Depois, Babilônia foi, aos poucos, se transformando em um conjunto de ruínas. 

(1) Mais conhecido pela forma helenizada do nome, Nabucodonosor. 
(2) Cf. MALLET, Alllain Manesson. Beschreibung des ganzen Welt-Kreises. Frankfurt am Main, Johann Adam Jung, 1719. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(3) HERÓDOTO, Histórias. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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segunda-feira, 18 de março de 2024

Diamantes ou pedras de construção?

Quem tem mais valor: diamantes ou pedras para construção?
Pedras usadas em construções devem ser fortes, resistentes, não devem se desfazer facilmente. Será ótimo, também, se forem de baixo custo. Diamantes - ninguém pensaria em usá-los na construção civil ou em fortificações, nem têm eles dimensões para isso - são caríssimos. Ninguém dá muita importância à notícia da descoberta de um local de onde podem ser extraídas pedras para construção. Quanto aos diamantes, uma nova jazida que se encontra pode resultar em falatório por muito tempo.
Filipe Patroni, autor do Século XIX, tomou o partido das pedras de cantaria, ao falar de uma antiga lavra de diamantes que fora abandonada:
"O rio das Mucaúbas [sic] é também adamantino, e a administração nacional do Tejuco [sic] ali teve noutros tempos um serviço de diamantes; não dando porém grandes vantagens, foi abandonado e entregue aos cuidados de quem quisesse ter o enfadonho trabalho de procurar aquelas pedrinhas, cuja utilidade é, sem contestação alguma, menor do que a de um lajedo ou pedra de cantaria, que serve para fazer casas e cômodas habitações [...], enquanto que o diamante serve só para luzir aos olhos de quem o enxerga, e não dá por conseguinte utilidade a quem é cego. [...]" (*)  
Patroni talvez estivesse errado. Diamantes têm, para muita gente, um encanto quase místico. Imagina-se que quem os pode usar em joias ganha em beleza. Talvez por isso, são muito lucrativos. Ninguém andaria à cata dessas pedrinhas brilhantes se não fosse pelo retorno que oferecem. Nisso reside toda a questão. 

(*) PARENTE, Filipe Alberto Patroni Martins Maciel. A Viagem de Patroni Pelas Províncias Brasileiras 2ª ed. Lisboa: Typ. Lisbonense, 1851, p. 31.


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sexta-feira, 15 de março de 2024

Prodígios antes da morte de Júlio César

Busto de Júlio César em mármore (*)
Para os antigos romanos, não poderia haver um grande acontecimento - fosse bom ou mau - sem ser precedido por um ou mais prodígios, eventos "fora da curva", contra o curso da natureza ou que evidenciassem aviso dos deuses. 
De acordo com Suetônio em De vita Caesarum, Livro I, estes prodígios e presságios precederam o assassinato de Júlio César em 15 de março de 44 a.C.:
  • Em Cápua, um grupo de colonos que removia um cemitério muito antigo para, em seu lugar, construir casas, teria encontrado uma placa de bronze, na qual se lia, em grego, que, ao ser aberta aquela sepultura, um membro da família Júlia seria morto por seus concidadãos, e que, após sua morte, haveria uma série de infortúnios em toda a península itálica;
  • Dias antes de sua morte, os cavalos que César havia consagrado ao Rubicão, por ocasião de sua travessia, subitamente teriam parado de comer e começado a chorar;
  • Um arúspice teria avisado César, por ocasião de um sacrifício, que se guardasse de grave perigo nos idos de março;
  • Um bando de aves, perseguindo um pássaro que levava um ramo de louro, alcançou-o e o fez em pedaços;
  • Na véspera de seu assassinato, o próprio César teria visto, em sonho, que voava entre nuvens e tocava a mão direita do deus Júpiter;
  • Enquanto isso, Calpúrnia, mulher de César, também sonhava, e, em seu sonho, via cair o teto da casa em que estava, enquanto segurava, em seus braços, o corpo do marido assassinado;
  • Finalmente, como se tantos sonhos agitados fossem pouca coisa, afirmou-se que, de súbito, as portas do quarto em que Calpúrnia dormia teriam sido abertas sem intervenção humana.
Era um exagero de prodígios para a mentalidade romana. César, talvez tentando dar a todos uma demonstração de racionalidade, ignorou os supostos avisos, e foi ao encontro dos senadores que o aguardavam. Não voltaria vivo para casa. 

(*) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 158. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quarta-feira, 13 de março de 2024

Como o professor particular deveria ser recebido na casa de um aluno

Foi comum, até bem adiantado o Século XIX, que pais com recursos suficientes tivessem professores particulares para os filhos, não apenas para aulas de música, mas para a instrução regular. Nem sempre havia escolas adequadas por perto, existindo, também, quem preferisse ver o filho recebendo aulas dentro de casa. Um livrinho interessante, escrito pela professora Guilhermina de Azambuja Neves, com o título de Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, sugeria o modo como um aluno deveria receber seu professor particular para a lição do dia:
"Suponhamos que o mestre toma o trabalho de ir à casa do discípulo para lhe dar as lições. Não se deve jamais fazê-lo esperar, nem esquecer de ter tudo à mão: os livros, o papel, o tinteiro (¹) sobre a mesa e junto desta a cadeira.
Chegando o mestre, deve o menino levantar-se, tomar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala (²) e convidá-lo a sentar-se.
Começando a lição, será ela ouvida com atenção, e bem assim os conselhos que o mestre der sobre o modo de estudar ou de proceder." (³) 
Iam além as instruções da professora Guilhermina, especificando o modo correto de responder quando o professor ou professora fizesse alguma pergunta:
"O tratamento que se lhe deve dar será o de Sr. Professor; e nas respostas afirmativas ou negativas dir-se-á: sim, senhor, não, senhor; ou se for mestra: sim, senhora, não, senhora." (⁴) 
Quando, finalmente, a aula era concluída, havia um modo correto de agir ao despedir-se o aluno do professor:
"Terminada a lição deve o discípulo agradecer-lhe o trabalho e o interesse que toma por seu progresso nos estudos, entregar-lhe o chapéu, o guarda-chuva ou a bengala, e acompanhá-lo até a escada ou a porta, cumprimentando-o com respeito." (⁵)
Sim, coisas do Século XIX... E qual era a solução do dito século para os meninos que não se mostravam tão polidos e estudiosos? Não é difícil imaginar, e olhem leitores, que mesmo no século seguinte o remédio seria idêntico. Voltemos à professora Guilhermina e seus meigos conselhos:
"Este procedimento é tão bonito, como censurável o do menino Simeão, que nunca sabe as lições, e durante a explicação do mestre ocupa-se em ver passar quem vai pela rua.
Teimoso, vadio e mal-educado, nada sabe, nada aprende e é por isso que os vizinhos o chamam de madraço (⁶).
Sabes qual foi o resultado de tudo isso?
Seus pais resolveram metê-lo de pensionista (⁷) em um colégio, com a recomendação de usarem para com ele de todo o rigor e severidade." (⁸) 
Não é de hoje, portanto, que há quem prefira terceirizar a educação dos filhos, ainda que os métodos, em nosso tempo, tenham mudado. 

(1) Vê-se, nessas palavras, qual era o material escolar mais comum no Século XIX.
(2) Objetos de uso pessoal comuns para homens no Século XIX.
(3) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 37 e 38.
(4) Ibid., p. 38.
(5) Ibid., p. 39.
(6) "Madraço" significa preguiçoso.
(7) Ou seja, mandaram-no para um internato.
(8) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Op. cit., pp. 39 e 40. 


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segunda-feira, 11 de março de 2024

Dote de casamento em cabeças de gado

No passado, em muitos lugares, o pretendente a noivo pagava um dote de casamento ao pai da pretendida noiva. No Brasil Colonial, e mesmo no Império, era a noiva que devia ter um dote para poder se casar. Por conta disso, muitas moças que não tinham dote ficavam sem casamento, enquanto havia homens esperando que uma noiva com dote vantajoso aparecesse no caminho, para, como se dizia, "arrumarem a vida". 
Antes que leitores e leitoras comecem a lamentar as injustiças da sociedade (talvez por razões diferentes), temos aqui um caso interessante, ocorrido em São Paulo nos tempos coloniais, quando quase não havia moeda em circulação -  a família da noiva pagou o dote para o casamento em cabeças de gado. Está na Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, com o aborrecido estilo próprio das (longas) genealogias dos que se supunham nobres:
"João Pires (filho de Salvador Pires [...]) foi nobre cidadão de S. Paulo, e teve grande voto nas assembleias do governo político, como pessoa de muita autoridade, respeito e veneração. Foi abundante em cabedais com estabelecimento de uma grandiosa fazenda de terras de cultura [...], que lhe foi concedida de sesmaria em 1610 com o seu sertão para a serra de Juqueri. Teve grande cópia de gados vacuns, cavalares e de ovelhas, de sorte que, dotando a nove filhas [...], cada uma levou duzentas cabeças de gado vacum, ovelhas e cavalgaduras. [...]"
Portanto, todo o conjunto pago como dote pelo casamento das nove filhas resultou em mil e oitocentos animais. Nada mal para a época em que isto aconteceu, no Século XVII. Deve ter sido um espetáculo público ver a procissão conduzindo a bicharada para as terras do noivo, a cada novo casamento que se realizava.


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sexta-feira, 8 de março de 2024

Roupas e acessórios masculinos que eram moda na época da chegada da família real ao Brasil

Primeiras semanas de 1808. Estando perto os navios que traziam a família real, além de uma pequena multidão que incluía gente da nobreza, funcionários públicos e mesmo alguns que não eram nem uma coisa e nem outra, mas que haviam conseguido embarcar, a cidade do Rio de Janeiro pôs-se agitada. 
Toda pessoa que tinha alguns recursos e que pretendia ir às ruas para ver a passagem do cortejo real tratou de arranjar roupa que julgava adequada.  Ninguém queria fazer má figura diante da nobreza que aportava. Nas palavras de José Vieira Fazenda, "as meias de seda, os sapatos rasos de fivela de ouro e prata, as cabeleiras de rabicho ou de bolsa, os espadins, os coletes de cetim bordados a matiz e os chapéus armados subiram de preço" (*). 
O desembarque de D. João, então príncipe regente, aconteceu em 8 de março de 1808. Poderíamos falar em uma corrida às lojas nos dias que o antecederam? Seguindo a índole do comércio nesses tempos já distantes (e não só neles), os preços elevaram-se bastante. Não há razão para crer que, após o desembarque, os preços baixassem, uma vez que os que chegavam também iam às lojas à procura dos artigos a que estavam habituados.
O comércio do Rio de Janeiro era, então, modesto. Mas ganhou força com a chegada da corte, que atraiu comerciantes ingleses e franceses, estes últimos, geralmente dedicados ao vestuário de luxo e outros artigos de moda. Quem, nesse momento, poderia prever quão longe iriam as mudanças que apenas começavam a acontecer?

(*) FAZENDA, José Vieira, Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 40. 


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quarta-feira, 6 de março de 2024

Óleo de baleia para reforçar construções

As baleias já foram muito numerosas ao longo do litoral brasileiro. Apareciam em belo espetáculo, muitas vezes acompanhadas de filhotes, mas nada disso despertava a ternura dos colonizadores. As baleias foram, portanto, impiedosamente caçadas. Não se queria a carne, ainda que fosse dada aos escravos. O que se esperava era obter delas a gordura, chamada também de óleo ou azeite de baleia, usado na iluminação pública e das residências.
A vaidade era outra fonte de assassinato das pobres criaturas. Eu disse vaidade? Talvez devesse dizer tortura. As barbatanas eram empregadas na confecção de espartilhos, aqueles instrumentos deprimentes que mulheres usavam para dar ao corpo um contorno supostamente mais favorável.  
Alguém, contudo, descobriu que as borras de azeite de baleia - entenda-se, sobras de azeite de baleia - podiam ter alguma utilidade. Em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, José Vieira Fazenda afirmou:
"É sabido: os antigos construtores serviam-se dessa borra [...] ligada à cal do reino para as edificações, e é por isso que nas demolições de antigos edifícios é preciso muitas vezes empregar a dinamite (¹). Um rico contratador ofereceu ao vice-rei, marquês de Lavradio, os resíduos do azeite para as obras da Casa do Trem em vez de lançá-los fora da barra (²). Deram as experiências bom resultado e o marquês recomendou à munificência régia esse benemérito [...]." (³)
Em Paraty, há algum tempo, um morador da cidade mostrou-me um muro e assegurou-me que, mesmo restaurado, ainda tem uma parte original, feita com pedra e massa na qual se incluíra o óleo de baleia, evidência de que essa prática teve certa amplitude nos tempos coloniais. 

Muro em Paraty, que se afirma ter sido originalmente construído
com adição de óleo de baleia 

(1) Segundo o autor citado, que seja entendido. 
(2) Certas preocupações ambientais que hoje povoam nossa cabeça não eram exatamente uma prioridade no Século XVIII, ainda que seja justo reconhecer o mérito de quem tentou achar um uso digno para as sobras do óleo de baleia. Melhor seria que as mamíferas houvessem continuado a viver e procriar sem obstáculos e ameaças nos mares deste planeta. 
(3) FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 439.


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segunda-feira, 4 de março de 2024

Ursa Maior e Órion

Hera, a deusa que, por ciúmes,
teria transformado uma ninfa em ursa (*)
Pastores de ovelhas, na Antiguidade, enquanto guardavam rebanhos ao ar livre em noites de verão, devem ter olhado para o céu e, com elementos da cultura a que pertenciam, ajudaram a criar lendas relacionadas à forma de agrupamentos de estrelas que viam. Dois exemplos: as constelações que conhecemos como Ursa Maior e Órion.


Ursa Maior

Dizia a lenda que Zeus teria se apaixonado (outra vez!) por uma das ninfas de Ártemis; Hera, com os ciúmes de sempre, vingou-se, transformando a ninfa em ursa, que Zeus, condoído, colocou no céu - a constelação da Ursa Maior.

Órion

Há muitas versões para a lenda de Órion. Esta é uma delas: o grande caçador celeste foi picado mortalmente por um escorpião, mas Ártemis, a deusa da caça, colocou-o no céu, onde continua a caçar em companhia de seus dois cães, o Cão Maior e o Cão Menor, também constelações, sempre perseguido pelo escorpião (a constelação de Escorpião). 

(*) BRUNN, Heinrich. Griechische Götterideale. München: Verlagsanstalt für Kunst und Wissenschaft, 1893, p. 7. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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sexta-feira, 1 de março de 2024

Arruaças estudantis em universidades medievais

Estudante do Século XIV (*)
Em geral, os estudantes que ingressavam em universidades medievais eram mais jovens do que são quase todos os calouros de hoje - não era incomum que meninos de quatorze ou quinze anos fossem admitidos na supostamente rígida vida estudantil da época. De qualquer modo, quem começava seus estudos universitários precisava dominar plenamente a língua franca - o latim - não apenas para falar e ouvir o que diziam os professores, como também para ler e escrever. Assim, muitas instituições medievais recebiam alunos de diferentes países, mas o estudo e convivência eram possíveis porque, para todos, havia a exigência de uso do latim.
Salas de estudo não eram lugares confortáveis. Eram, muitas vezes, espaços frios, e nem sempre havia cadeiras e mesas adequadas ao estudo. Em alguns lugares, os alunos precisavam sentar-se no chão, mesmo durante o inverno. Como ainda não existiam os livros impressos e os livros manuscritos eram caríssimos, muito da aprendizagem estava centralizada na memorização do que se ouvia nas aulas e do que se podia ler em bibliotecas. E, além de tudo, no regimento de muitas universidades eram previstos castigos físicos para os estudantes desobedientes que ainda não fossem considerados adultos.
Apesar disso, são inúmeros os relatos de arruaças promovidas por estudantes. Há registros de rebeliões estudantis em Oxford, Paris, Leipzig e muitas outras universidades. E, para provar que esses motins não eram apenas ocasiões para fazer barulho ou gritar palavras de ordem, basta lembrar que nas taxas que os estudantes admitidos na universidade de Bolonha deviam pagar, estava incluída aquela que garantia a devida reparação de janelas que, eventualmente, fossem quebradas em festas... 

(*) Cf. ARIA et ANDERSON. Costume: Fanciful, Historical and Theatrical. London: Macmillan and Co., 1906. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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