terça-feira, 9 de junho de 2020

Instrução primária no Império do Brasil

"Arnaldo tinha partilhado das lições que o padre capelão dava a Flor, Alina e Jaime; mas sabidas as primeiras letras, o haviam tirado da escola, visto que um vaqueiro não carecia de mais instrução, e essa mesma já era luxo para muitos que se contentavam em saber contar pelos riscos de carvão."
José de Alencar, O Sertanejo 

Dizia a Constituição de 1824, Art. 179, XXXII: "A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos."
Gratuita, sim, mas não obrigatória. Gratuita, também, se ministrada em instituições públicas de ensino, que simplesmente não existiam em boa parte do País, embora registros ao longo dos anos do Império mostrem uma melhoria gradual, de modo que ao menos as povoações maiores tinham escola de primeiras letras. Outra novidade é que, em algumas delas, além de uma classe para meninos, havia outra destinada às meninas, na qual uma professora dava aulas. Nas escolas públicas, crianças livres eram admitidas independentemente da origem social ou da cor da pele. Em localidades com maior número de habitantes podia haver, eventualmente, instituições de ensino particulares.
Convenhamos: já era um progresso em relação à segunda metade do Século XVIII, quando, após a expulsão dos jesuítas, as escolas existentes ficaram, muitas delas, na mão de professores absolutamente incapazes, isso quando não fecharam as portas, porque não havia nenhum interessado em dar aulas em troca de baixíssimos salários.
É, porém, fato incontestável que a população que vivia no interior do Brasil nos tempos do Império não dava, como regra, muita importância à instrução. Pergunto: haveria como ser diferente? Como é que em um país em que mais de 80 % da população era analfabeta poderia haver apreço pela instrução? Afinal de contas, para ser senador do Império era preciso ter renda alta. Instrução? Não vinha ao caso. Consta ter havido senadores do Império que eram candidamente analfabetos. Este depoimento do casal Agassiz, que liderou a Expedição Thayer e visitou o Brasil entre 1865 e 1866, é significativo:
"Num país de população escassa e disseminada numa área imensa, é necessariamente difícil, a não ser nas grandes cidades, conseguir reunir crianças numa escola. Nos lugares em que se puderam organizar estabelecimentos desse gênero, o ensino é gratuito; infelizmente, os professores são pouco numerosos, a educação é limitada e bem fracos os meios de instrução. Escrita, leitura e cálculo, com tinturas o mais ligeiras possíveis de geografia, eis o programa dessas escolas. Os professores têm grandes dificuldades a vencer; não são suficientemente prestigiados pela coletividade. Esta não sabe apreciar convenientemente a importância da instrução, como base necessária e fundamental de uma civilização superior." (¹) 
Por outro lado, dentre as escolas existentes, havia aquelas que não eram mais que centros de tortura para crianças. O desejo de ir à escola, tão comum entre os pequenos que querem parecer grandes, acabava tão pronto começava a primeira aula. Mas, se tentarmos um olhar inverso, chegaremos à seguinte interrogação: em que consistia a existência de um professor nesse tempo? Ficam aqui umas palavras de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, que dão muito em que pensar: 
"[...] Vejo-te ainda entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita." (²)

(1) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 457.
(2) A sagacidade dos leitores deve tê-los levado a pensar, assim espero, na questão da instrução no Império por vários pontos de vista: o dos alunos nas escolas públicas, quer na capital do Império, quer em outras localidades; o dos que não eram alunos, por não haver escolas para eles; o dos que ensinavam, ou tentavam ensinar, apreciando o que faziam, ou simplesmente porque não tinham outro modo de sobrevivência. Que tal um contraponto com a atualidade?


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