terça-feira, 30 de junho de 2020

Indígenas foram expulsos de três aldeias para a fundação da primeira capital do Brasil

O documento que veremos foi citado por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão na segunda parte do Novo Orbe Seráfico, e trata da fundação da cidade da Bahia (ou Salvador), primeira capital do Brasil. Foi encontrado, segundo Jaboatão, em um catálogo antigo dos governadores da Bahia, e nele se dizia que Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, chegara ao Brasil em março de 1549, mas esteve "preparando até o mês de julho a gente de guerra, que havia trazido de Portugal" (¹). 
Para que tanto preparo, para que tanta espera? Diz o documento:
"[...] preparando até o mês de julho a gente de guerra, que havia trazido de Portugal, escolhido já o sítio por Diogo Álvares (²) [...], que é o em que está hoje fundada a cidade, por ter porto acomodado para os navios e ser terra levantada, que a faz participante de todas as virações, marchou o dito capitão-mor (³) com mil homens de guerra (⁴) e quatrocentos índios, e com efeito fizeram despejar as três aldeias do gentio (⁵), que se achavam estabelecidas onde é o terreiro de Jesus (⁶), o Convento do Carmo e o Desterro [...]."
Acontecimentos dessa época são um tanto incertos; documentos escritos posteriormente podem conter erros. As fontes divergem, por exemplo, em relação ao número de soldados que acompanharam Tomé de Sousa na viagem ao Brasil. Uma coisa, porém, é certa: a Bahia era habitada por indígenas e, para que Salvador fosse fundada nos moldes de uma povoação portuguesa, ou sairiam eles, espontaneamente, ou seriam expulsos. 
Não surpreende que Tomé de Sousa tenha contado, além dos soldados que trouxera do Reino, com a ajuda de indígenas. Sabe-se que os vários grupos tribais tinham divergências quase permanentes e, conquistando as boas graças de alguns, era possível facilmente tê-los como apoio na expulsão de outros, principalmente se levarmos em conta que os nativos que apoiaram Tomé de Sousa deviam ser aqueles tupinambás com que se aparentara Diogo Álvares Correa, o Caramuru, náufrago português que, escapando ao mar e à antropofagia, deixou numerosa descendência mameluca. 
Há que se considerar, ainda, que a existência de três aldeias indígenas na localidade poderia ser um exagero, uma vez que povoações nativas eram, usualmente, algo distantes umas das outras, para preservar um território de caça e coleta capaz de sustentar, ao menos parcialmente, as respectivas populações, embora não seja de todo impossível que, próximo ao litoral, grupos indígenas vivessem mais perto uns dos outros, já que do mar podia vir muito de sua alimentação. No entanto, essa dificuldade talvez desapareça, se considerarmos que colonizadores poderiam pensar que cada habitação coletiva indígena seria, por si mesma, uma aldeia, e, desse modo, três grandes moradias fossem julgadas três povoações distintas. Não se pode desconsiderar, também, o exagero intencional, com o fim de encarecer ao monarca e mais autoridades do Reino as dificuldades superadas por aqueles que enviara ao Brasil, e grandes serviços, portanto, que prestavam a seu rei, para os quais se esperava régia recompensa.
Como já disse, aos indígenas que viviam nas terras da futura Cidade da Bahia apenas se ofereciam duas opções: ou saíam espontaneamente, ou seriam expulsos. O documento que analisamos, sem disfarces ou considerações humanitárias, conta muito bem (e oficialmente) o que aconteceu. Surpreendente? Não, porque era a lógica da conquista, praticada, nesse tempo, não só na América, mas na própria Europa, quando as várias monarquias guerreavam entre si, conquistavam territórios que, automaticamente, adicionavam a seus domínios, passando os súditos de um rei ou imperador a outro. Consequências desse fenômeno existem até hoje, no patchwork das nacionalidades e culturas dentro de Estados que, em alguns casos, são muito pequenos.

(1) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 20.
(2) Diogo Álvares Correa, o Caramuru, náufrago português que já vivia entre indígenas na Bahia.
(3) Tomé de Sousa, considerado capitão-mor até que estabelecesse o Governo-Geral, quando passaria a ter o título de governador-geral.
(4) Outras fontes falam em um número diferente de soldados. De qualquer forma, o fato de se fazer acompanhar desde o Reino por um número considerável de soldados mostra que já se supunha que a ocupação da terra não seria pacífica.
(5) "Gentios" eram os indígenas não catequizados,
(6) Ou seja, defronte ao local onde posteriormente foi edificado o Colégio dos Jesuítas.


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2 comentários:

  1. Do ponto de vista do invasor, era inevitável a expulsão dos povos indígenas do território pretendido.
    Do ponto de vista dos invadidos, começou ali a derrocada duma certa forma de vida.
    Gostei de ler, Marta. Por aqui vou sempre aprendendo algo.

    Fique bem.

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    Respostas
    1. E não tem sido essa a dinâmica da civilização através dos tempos?
      Obrigada por ler e comentar. Um bom restante de semana!

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