Ao morrer em 1572, Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, deixou testamento no qual legava um terço de seus bens à Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Se isso parece uma enorme generosidade, será útil considerar que, não só no Século XVI, mas até muito tempo depois, era costume, ao fazer testamento, que as pessoas legassem recursos para "obras pias", e isso não era prática apenas dos endinheirados - até gente modesta tratava de fazê-lo.
Qual seria a causa de tanta preocupação com projetos de caridade? Desconsiderando exceções, o motivo era bem simples: acreditava-se que isso podia aliviar o peso da conta que, depois da morte, deveria ser ajustada no purgatório. Então, como veem os leitores, não era apenas por bom coração que as doações eram feitas. Mandava, também, o interesse próprio.
Mas o que eram, afinal, as tais "obras pias", que recebiam as doações prescritas em testamento?
Para disciplinar essa prática, evitando excessos e desvios de função, as Ordenações do Reino (¹) estabeleciam normas que regulavam as dotações testamentárias destinadas a obras pias. Assim, no Livro I, Título L, § 16, lê-se:
"E quando o defunto deixar em seu testamento, que se façam algumas obras meritórias por sua alma, e logo as declarar, como se dissesse que casem tantas órfãs, ou vistam tantos pobres, ou que nas ditas coisas se despenda tanto dinheiro [...], mandamos que assim como ele o dispuser, se cumpra por seu testamenteiro [...]."
De modo análogo, diz o § 41, do mesmo livro e título:
"E porquanto em algumas instituições se mandam cumprir algumas obras pias, sem se declarar quais são, declaramos que são missas, aniversários, responsos, confissões, ornamentos e coisas que servem para o culto divino. E bem assim curar enfermos, camas para eles, vestir ou alimentar pobres, remir cativos, criar enjeitados, agasalhar caminhantes pobres, e quaisquer obras de misericórdia semelhantes a estas [...]."
Esperava-se - e a lei exigia - que os responsáveis pela execução dos testamentos agissem prontamente, tão logo o testador fechasse os olhos em definitivo. Supunha-se que a demora podia ser prejudicial aos interesses do morto. Portanto, as Ordenações, ao menos em alguns casos, eram específicas:
Livro I, Título L, § 5 - Recursos para a redenção de cativos
"E assim farão cadernos de tudo o que os defuntos por seus testamentos deixarem para os cativos, e do que por bem da Ordenação pertence à redenção deles, por não ser aplicado a outra obra pia [...]."
Em favor do entendimento, deve-se lembrar que os "cativos", neste caso, eram principalmente cristãos que, em viagem marítima, haviam caído prisioneiros de piratas (nas imediações do Mediterrâneo e no Atlântico, geralmente na costa da África), e dos quais se exigia o pagamento de um resgate para a libertação.
Livro I, Título L, § 8 - Recursos para dote de órfãs, a fim de que pudessem contrair casamento
"E havendo-se de nomear e dotar algumas órfãs, de qualquer qualidade e condição que sejam, para efeito de executarem e cumprirem os testamentos e vontades de alguns defuntos, os ditos provedores nomearão e dotarão as ditas órfãs, com parecer dos deputados da Mesa da Consciência [...]."
Livro I, Título L, § 9 - Recursos para celebração de missas
"De todas as missas que os defuntos mandarem dizer, que não forem cumpridas, nem eles nomearem lugar certo onde se digam, farão os provedores um rol, que mandarão à Mesa da Consciência, para com parecer dos deputados dela se repartirem pelos mosteiros das Ordens reformadas que maiores necessidades tiverem, e onde com mais brevidade se possam dizer [...]."
Livro I Título L, § 15 - Recursos para a construção de capelas
"E quando o testador mandar fazer alguma obra certa, assim como capela ou outra coisa semelhante, o provedor a dará logo de empreitada pelo melhor preço que puder, para até certo tempo se dar de todo acabada. [...]"
Ainda que até mesmo aos condenados à morte fosse facultado o direito de legar bens para obras pias, havia casos em que as Ordenações do Reino vedavam tal prática, conforme especifica o Livro IV, no Título LXXXI, § 6:
"[...] havemos por serviço de Deus e bem de muitas almas, cujos corpos por Justiça padecem, queremos que quaisquer pessoas, que por Justiça houverem de padecer, possam fazer seus testamentos, para em eles somente tomarem suas terças, e disporem delas, distribuindo-as em tirar cativos, casar órfãs, fazer esmolas aos hospitais, mandar dizer missas e para conserto e refazimento de mosteiros e igrejas. E em outras algumas coisas e despesas não poderão distribuir as ditas terças. Porém isto não haverá lugar nos que forem condenados por crime de heresia, traição ou sodomia."
Para concluir, veremos dois exemplos instrutivos dessas doações, ambos ocorridos no Brasil Colonial. Rocha Pita, autor setecentista, diz que Domingos Afonso, também chamado Domingos Sertão, deixou seus bens em testamento para a Companhia de Jesus: "[...] o capitão Domingos Afonso [...], havendo despendido setenta mil cruzados com a fábrica do noviciado (²), deixou encapelados os mais bens (que constam de opulentas fazendas de gado) ao Colégio (³), ordenando que do seu rendimento se lhe mandassem dizer seis missas quotidianas [sic!], e deem três dotes de órfãs anuais, e outras esmolas na Bahia e na sua pátria [...]". (⁴)
Quanto a Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia no Século XVI, além de autor do valioso Tratado Descritivo do Brasil em 1587, especificou, entre outras disposições, em testamento citado por Varnhagen (⁵), o hábito religioso com que seu corpo seria vestido para o sepultamento; o letreiro a ser posto em sua campa, com os dizeres "Aqui jaz um pecador"; as esmolas que deveriam ser dadas aos pobres que acompanhassem o enterro; a proibição de que houvesse toque de sinos durante o funeral; uma infinidade de missas que por ele e seus pais seriam celebradas; doações para a Santa Casa de Misericórdia e para confrarias; dote suficiente para que cinco moças pobres pudessem se casar; e, por fim, esta curiosa observação: "Acompanhará o meu corpo, se falecer nesta cidade (⁶), o cabido, a quem se dará a esmola costumada, e os padres de S. Bento levarão de oferta um porco e seis almudes de vinho e cinco cruzados" (⁷).
(1) De acordo com a Edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Publicadas formalmente pela primeira vez no início do Século XVII, as Ordenações do Reino eram, em grande parte, uma compilação de leis que já existiam anteriormente.
(2) Rocha Pita se refere, aqui, à construção de um local para o noviciado dos jesuítas na Bahia, que Domingos Afonso patrocinou.
(3) Colégio dos Jesuítas.
(4) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 370.
(5) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, pp. 384 - 389.
(6) Cidade da Bahia (Salvador).
(7) VARNHAGEN, F. A. Op. cit., p. 385.
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Acumular e fruir, em vida, o mais que se pode; às portas da morte, pelo sim, pelo não, tentar comprar um lugar no céu. Curiosa filosofia, que continua bem viva.
ResponderExcluir(Veio-me à memória, enquanto lia, a obra "Um certo capitão Rodrigo", de Érico Veríssimo. Coisas...)
Tenha um excelente dia, Marta! :)
Bem lembrado!
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