terça-feira, 6 de setembro de 2022

Independência do Brasil

"Contudo, sempre lhes direi, aqui, que ninguém nos ouve: o conselho de ministros no paço, as palavras de José Bonifácio ao Bregaro; a volta de D. Pedro depois de declarar a Independência; a gente que correu a São Cristóvão; a imperatriz, que, não tendo mais fitas verdes para fazer laços, fê-los com as do próprio travesseiro; D. Pedro, um rapaz de 24 anos, impetuoso e ardente; José Bonifácio, grave e forte, e, quando preciso, alegre; a gente que encheu à noite o teatro; as senhoras de laço verde ao peito; toda essa nossa aurora dá-me uma certa sensação profunda e saudosa, que não encontro... onde? no nariz do leitor, por exemplo."
Machado de Assis, Balas de Estalo, 10 de janeiro de 1884

É 1822. O príncipe regente D. Pedro sai do Rio de Janeiro em viagem a São Paulo, porque os ânimos politicamente exaltados requerem atenção - é verdade, São Paulo nunca fora, e não é, nesse tempo, uma Província muito pacífica. Percorre o Vale do Paraíba, mas são tantas as lendas que cercam esse trajeto que, por si mesmas, já evocam suspeitas. Chega a São Paulo, de onde, em seguida, vai a Santos. Cumpridos ali alguns compromissos, retorna a São Paulo e, já perto da cidade, é alcançado, no final da tarde do dia 7 de setembro, por um correio enviado às pressas do Rio de Janeiro. Lê afoitamente as cartas e, num arroubo de fúria, declara, teatralmente, bem a seu gosto e ao de sua época, que o Brasil, dali por diante, está separado de Portugal. É este evento, ocorrido há duzentos anos, que se comemora, embora nem mesmo saibamos se tudo aconteceu exatamente assim.
José Bonifácio de Andrada e Silva (¹)
Não, não sabemos, mas a viagem a São Paulo é real e a entrega da correspondência ao príncipe (cartas das Cortes de Lisboa, da princesa Leopoldina e de José Bonifácio de Andrada e Silva) igualmente aconteceu. Mas era preciso um evento icônico para assinalar a Independência. Se o chamado "grito do Ipiranga" não ocorresse, não há dúvida de que outro incidente seria escolhido, porque a humanidade parece carecer desesperadamente de acontecimentos gloriosos, aos quais se apega, sejam autênticos ou não, e os brasileiros, nesse sentido, não são nenhuma exceção. A Independência, de verdade, foi um longo e difícil processo. E, se querem saber minha opinião, há, nela, muito ainda por fazer.
D. Pedro, depois, seguiu com a comitiva a São Paulo, onde já era esperado e foi festivamente recebido, não por causa da declaração de Independência, da qual poucos talvez soubessem, mas porque já havia uma recepção dignamente preparada, dentro dos recursos de que a cidade dispunha. Relatos da época sugerem que a noite foi agradável, mas sem nenhuma animosidade contra Portugal.
É razoável supor que Pedro Américo, ao pintar o mais famoso quadro do episódio às margens do Ipiranga, não tivesse a intenção de um retrato fiel, e nem isso era possível, tantos anos após o incidente (²). Estava apresentando uma concepção artística do acontecimento, e não há nisso nenhuma fraude deliberada: uma visita a qualquer museu sério, mundo afora, convencerá quem duvida de que as paredes estão repletas de supostas reconstituições históricas sem qualquer compromisso com a realidade. De "históricas" muitas obras só têm mesmo os valores da época em que foram produzidas, não do tempo a que pretendem remeter. Servem, muitas vezes, mais como um estímulo a certa espécie de patriotismo, orgulho nacionalista e culto a alguma personalidade, do que, propriamente, como versões historiográficas fidedignas, compostas em pinceladas a óleo (ou outra tinta qualquer) sobre tela.

O beija-mão em São Paulo no dia 8 de setembro de 1822


D. Pedro, príncipe regente e primeiro
imperador do Brasil (⁵) 
Em 8 de setembro, ainda em São Paulo, mas já refeito da árdua cavalgada do dia anterior - para vir de Santos foi preciso transpor a Serra do Mar - Dom Pedro teve de aturar uma cerimônia entediante e pouco higiênica, embora muito valorizada na época: o beija-mão. Registrou-se na Ata da Câmara de São Paulo:
"Vereança e ajuntamento que fez a Câmara para ir ao beija-mão de S. A. R. (³) 
Aos oito dias de setembro de 1822 nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho (⁴) dela, [...] foram vindos o juiz de fora pela lei presidente o capitão Bento José Leite Penteado e atuais vereadores e atual procurador [...] para efeito de sessão, e depois de estarem juntos deliberaram que se devia ir ao beija-mão, e findo o qual recolheram-se a estas mesmas casas desta Câmara (⁶)."
Nenhuma palavra sequer sobre separação de Portugal! O termo "independência" somente apareceria em ata vinte dias mais tarde, ou seja, em 28 de setembro de 1822, em cujo registro se lê: "[...] por todos foi unanimemente acordado que concordavam com a [...] Câmara da Corte e Cidade do Rio de Janeiro em que S. A. R. entrasse desde já no exercício ilimitado de todas as atribuições do Poder Executivo pela constituição que lhe devem competir na qualidade de chefe do mesmo Poder, visto ser este o único meio seguro e adequado para poder salvar este Reino [sic] das indiscretas tentativas dos seus inimigos [sic!], e conservar ilesa a sua dignidade e independência já proclamada pelo mesmo Augusto Senhor." 
Ainda no ano de 1822, D. Pedro seria aclamado imperador constitucional em 12 de outubro, dia de seu aniversário.

(1) Cf. SOUSA, Alberto. Os Andradas Vol. 2. São Paulo: Tipographia Piratininga, 1922, p. 3. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) "Independência ou Morte" é obra de 1888. Do final do Império, portanto.
(3) Sua Alteza Real.
(4) Concelho: unidade municipal portuguesa.
(5) Cf. ARMITAGE, John. História do Brasil. Rio de Janeiro: J. Villeneuve e Comp., 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(6) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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