terça-feira, 31 de janeiro de 2017

"Guerra justa" contra indígenas do Brasil

Veremos hoje, leitores, um exemplo prático daquilo que, nos tempos coloniais, recebia o nome de "guerra justa" contra indígenas. Como foi o próprio padre Antônio Vieira, jesuíta, quem contou, não é possível supor que houvesse intenção difamatória; além disso, o relato, em si, é sumamente interessante como documento histórico daquilo que, no Século XVII, era o tratamento dispensado aos povos nativos do Brasil.
Uma tribo, chamada dos inheiguaras por Vieira, vivia em algum ponto nas proximidades do rio Tocantins. Sucede que a dita tribo teria tentando impedir que outros grupos deixassem suas terras e fossem viver sob a tutela dos padres em uma missão, conforme esclarecimento oferecido em carta ao rei de Portugal: "[...] com morte de alguns cristãos tinham impedido a outros índios de sua vizinhança de se descerem para a Igreja e vassalagem de Vossa Majestade [...]". (¹)
O pretexto estava dado. Na expedição para escravizá-los, liderada pelo jesuíta Manoel Nunes, foram quatrocentos e cinquenta índios "de arco e remo" e quarenta e cinco soldados portugueses, comandados por um capitão de infantaria. Os inheiguaras (seguimos com a descrição do padre Vieira), "foram buscados, achados, cercados, rendidos e tomados quase todos, sem dano mais que de dois índios nossos levemente feridos. Ficaram prisioneiros duzentos e quarenta, os quais [...], a título de haverem impedido a pregação do Evangelho, foram julgados por escravos e repartidos aos soldados." (²) 
Este fato ocorreu em 1659. A ideia de que a escravização (de quem quer que fosse) era uma coisa má em si mesma, não passava, ao que parece, pela cabeça de quase ninguém, nem mesmo no caso de um sujeito esclarecido, como era o padre Antônio Vieira.

(1) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 19.
(2) Ibid., p. 20.


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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Lentilhas


Dois irmãos - gêmeos - tinham muito pouca coisa em comum. Um dia, ao voltar de uma caçada, um deles encontra o outro cozinhando lentilhas. Esfomeado, pede um pouco da comida e, como resposta, é informado de que será prontamente atendido, se abrir mão do direito de ser considerado primogênito, coisa que, naquele contexto seminômade, era reputada de muita importância. O faminto concorda, recebe pão e um prato generoso de lentilhas. A fome acaba, a confusão está apenas começando. Vocês sabem, leitores, estou falando daquela que talvez seja a história mais famosa envolvendo lentilhas. Os gêmeos? Esaú e Jacó, claro. 
Qualquer um dos leitores tem todo o direito de não gostar de lentilhas, mas, se fosse criança e vivesse no Egito Antigo, talvez não houvesse a possibilidade da escolha. É que os egípcios achavam que as crianças alimentadas com lentilhas ficavam mais inteligentes. Nenhuma mãe zelosa, portanto, deixaria de fazer com que os filhos, de boa ou má vontade, engolissem toda a comida.
Se quisermos entender por que, na Antiguidade, as pessoas valorizavam demais alguns alimentos, enquanto desprezavam outros, será preciso levar em conta mais que o sabor. Os antigos gregos e romanos achavam que a comida afetava o temperamento ou estado de humor do indivíduo. Então, coitadinhas das lentilhas! Em Roma, dizia-se que seus apreciadores eram preguiçosos. A palavra "lentilha" vem de lentus, que significa exatamente aquilo que parece. Não é mesmo uma grande injustiça? 
Talvez para atenuar tamanha maldade, Plínio, na sua História Natural, e ainda dentro da ideia de que o temperamento é afetado pela alimentação, entendeu dizer que as lentilhas faziam com que as pessoas fossem mais suaves, mais moderadas. Está bem, da preguiça para a moderação, já é notável progresso.
Não tendo conhecimentos científicos suficientes para avaliar o valor nutricional dos alimentos, os antigos só podiam fazê-lo empiricamente. É isto que explica, afinal, o apreço dos egípcios pelas lentilhas, enquanto romanos não davam tanto valor a elas. Sabemos, por outro lado, que em tempos de guerra ou de colheitas ruins, ter alimento suficiente já era um privilégio. Não era raro que populações fossem dizimadas pela fome. Gostar de lentilhas, como de qualquer outro alimento, não era, para muitos, uma opção pura e simples. Era preciso, às vezes, comer o que estava disponível. Lentilhas, portanto, eram boas para quem tinha a sorte de dispor de um prato delas, ainda quando não estava em questão o direito à sucessão na liderança do clã que, nos velhos tempos, competia ao filho mais velho.


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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O Tratado de Comércio e Navegação de 1810

Pergunta: O que aconteceu em 19 de fevereiro de 1810? 
Bem, se levarmos em consideração o mundo todo, deve ter acontecido muita coisa, mas, por agora, a nós interessa o fato de que, nesse dia, Portugal e Grã-Bretanha firmaram o Tratado de Comércio e Navegação. Não, leitores, não esperava que se lembrassem disso. Afinal, nenhum de nós viveu naquele tempo...
Estudantes brasileiros aprendem que, pelo Tratado de Comércio e Navegação, produtos ingleses, quando entrassem nos portos do Brasil, pagariam direitos de 15%, o que é uma verdade, mas o conhecimento escolar não costuma ir muito além disso. Faz-se, assim, uma grande injustiça, porque o Tratado de Comércio e Navegação foi muito mais do que um acordo de tarifas alfandegárias.
Todo o documento era fundamentado no princípio da mais estrita reciprocidade entre as partes - tem-se  um exemplo no  Artigo V: "[...] Os navios e embarcações portuguesas gozarão do mesmo favor [...] nos domínios de sua majestade britânica que se conceder aos navios e embarcações britânicas nos domínios de sua alteza real o príncipe-regente de Portugal, e vice-versa." Expressões semelhantes perpassam todo o texto. Observem os leitores que o Tratado era válido em todos os domínios dos dois monarcas, e não só no Brasil, como ainda há quem imagine. No caso de Portugal, abrangia, por suposto, não apenas o território português na Europa e o Brasil, mas também as colônias na Ásia e na África.
Mas vamos em frente, com dois outros aspectos pouco conhecidos. 
Pelo Tratado, ficava assegurada a liberdade de consciência (com algumas restrições) aos súditos ingleses que vivessem nos domínios de Portugal, valendo o mesmo para os portugueses que residissem em domínios da Grã-Bretanha. Não sendo um problema na Inglaterra, isso era uma grande novidade no Brasil, e na Constituição de 1824, a primeira do Brasil independente, o princípio da tolerância religiosa seria estendido a todos os residentes no País, ainda que, na mesma Carta, fosse definido o catolicismo como religião oficial.
Outro ponto interessante é que Portugal e Grã-Bretanha assumiam o compromisso de não dar asilo a criminosos da outra parte que estivessem foragidos, nem tampouco para desertores, conforme o Artigo XIV: "[...] As pessoas culpadas de alta traição, de falsidade e de outros crimes de uma natureza odiosa, dentro dos domínios de qualquer das Altas Partes Contratantes, não serão admitidas e nem receberão proteção nos domínios da outra. E que nenhuma das Altas Partes Contratantes receberá de propósito e deliberadamente nos seus Estados, e entreterá ao seu serviço, pessoas que forem vassalos da outra potência, que desertarem do serviço militar dela, quer de mar, quer de terra [...]."
Sobre as questões econômicas, que constituíam o cerne do Tratado, cabe dizer ainda que:
  • Além da já mencionada tarifa aduaneira de 15%, ficava entendido que Portugal podia criar impostos mais pesados sobre produtos coloniais britânicos (como açúcar e café), que fizessem concorrência à produção colonial lusitana, e, reciprocamente, a Grã-Bretanha podia taxar acima dos 15% tudo o que viesse das possessões portuguesas e fizesse concorrência à sua própria produção colonial;
  • Seriam adotadas medidas para combater a pirataria e o saque de embarcações que sofressem naufrágio;
  • O porto de Santa Catarina, no Brasil, e o porto de Goa, seriam considerados portos francos;
  • Não haveria qualquer alteração no Tratado de Panos e Vinhos (ou Tratado de Methuen), celebrado em 1703.
Depois de todas essas considerações, não duvido de que alguns dos leitores estejam intrigados com o aspecto negativo com que o Tratado de Comércio e Navegação sempre é referido. Se havia reciprocidade, onde estaria o problema?
É fato que havia uma equivalência relativa de obrigações, mas toda a questão muda de aspecto quando se vê que, em 1810, Portugal e Grã-Bretanha eram potências de capacidade econômica e política completamente diferentes, e não pode haver igualdade quando as forças são tão desiguais. À vista disso, a balança, como é óbvio, era favorável a um dos lados, que não era o de Portugal e, com ele, o do Brasil.


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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Os elefantes de Pirro

Conforme asseveram vários autores da Antiguidade, foi Pirro, rei do Épiro, quem primeiro mostrou ao exército romano o que eram elefantes. Sim, elefantes de guerra, que iam à frente dos combatentes e aterrorizavam os inimigos. Isso aconteceu no Século III a.C, quando as tropas de Pirro, para socorrer os tarentinos, enfrentaram os romanos na batalha de Heracleia. 
De acordo com Tito Lívio em Ab Urbe Condita Libri, o exército de Pirro constava de vinte e dois mil infantes, três mil cavalarianos e vinte elefantes. Ora, ao ser deflagrado o combate, ainda segundo Tito Lívio, a soldadesca de Roma, em pânico, acreditou "ver algum grande monstro estupendo [...]", enquanto "os cavalos, apavorados pelo que viam, pelo cheiro e pelo barulho daquilo que presenciavam pela primeira vez, arremessavam de si os cavaleiros [...]."
Sim, Pirro venceu, mas foi mesmo o que se convencionou, mais tarde, chamar de "uma vitória de Pirro", já que, por informação de Tito Lívio, sabemos que "morreram, entre os romanos e seus aliados, pouco menos de 15 mil homens; entre os vencedores, caíram uns 13 mil. Por isso é que Pirro afirmou: "Ai, se venço deste modo novamente, voltarei ao Épiro sem exército!"" (¹) 
Essa guerra teria ainda outros desdobramentos, que, por ora, deixaremos de lado. O que nos interessa, aqui, são os elefantes. Esses, sim, como já vimos, impressionaram de verdade os romanos. Muito mais tarde, no Século I d.C., Plínio, o Velho, na seção de sua História Natural destinada a tratar dos animais, começou justamente pelos elefantes - sintomático, não acham, leitores? Escreveu ele:
"O maior animal terrestre é o elefante, que é quase tão inteligente quanto o homem; é capaz de compreender a língua de sua terra de origem, de obedecer a comandos e de memorizar tarefas que já aprendeu [...], apresentando virtudes escassas até em humanos, como honestidade, sabedoria, justiça e [...] reverência para com o sol e a lua." (²)
Só por isso já percebem os leitores que Plínio andava a fazer uma belíssima mistura de informações confiáveis e tolices cabeludas. Querem mais? A História Natural assegurava, por exemplo, que o sangue de elefantes machos era considerado útil para tratar reumatismo (³), e introduzia o debate sobre quanto durava a gestação desses animais, afirmando que "supõe-se geralmente que a gestação de um elefante dura dez anos, mas Aristóteles afirma que são apenas dois [...]." (⁴) Convenhamos: Aristóteles chegou perto, já que o tempo máximo é de vinte e dois meses. O elemento curioso é que este assunto virou tema de debates teológicos (!) na Idade Média, quando o elefante era considerado um verdadeiro modelo de continência, que os humanos deveriam imitar (!!!).
Já quase nos desgarramos do assunto de hoje, que é o dos elefantes de Pirro. Pois bem, voltemos a ele. Plínio confirma a história de que elefantes estrearam na Itália na batalha de Heracleia:
"Elefantes foram vistos na Itália pela primeira vez ao tempo da guerra contra o rei Pirro, sendo então chamados "bois lucanos", porque foram avistados na Lucânia, no ano 474 da fundação da cidade [280 a.C.], mas somente apareceram em Roma por ocasião de um triunfo, cinco anos mais tarde." (⁵) Ainda segundo o relato de Plínio, no triunfo de Pompeu fez-se uma tentativa de atrelar elefantes à carruagem do general vencedor, mas os animais teriam entalado no portão da cidade... 
Animais de guerra que eram, os elefantes foram mandados para os espetáculos circenses. A História Natural aponta o ano 655 da fundação de Roma [99 a.C.] como sendo o da primeira ocasião em que isto ocorreu; o combate de um elefante contra touros estreou vinte anos mais tarde. Como podem observar, leitores, tudo perfeitamente dentro do gosto pelos entretenimentos brutais, que então imperava em Roma.

(1) As citações das obras de Tito Lívio e de Plínio, o Velho que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Naturalis Historia, Livro VIII.
(3) Ibid., Livro XXVIII.
(4) Ibid. Livro VIII.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Quanto tempo de mandato?

Quanto tempo um governante deve permanecer no poder? Os povos da Antiguidade, como sabem os leitores, tinham monarcas vitalícios. Se, por um lado, isso conduzia a desmandos absurdos, por outro, era um estímulo para que os descontentes, passando dos pensamentos à ação, contribuíssem para abreviar um reinado - pondo fim à existência do rei, é claro. 
Sabe-se que essa perigosa ciranda do poder durou muito tempo (milênios), mas, gradualmente, a humanidade foi se convencendo de que era melhor negócio ter governantes cujo mandato fosse previamente delimitado. No exercício do poder, a rotatividades de políticos e de seus respectivos partidos é absolutamente essencial à saúde de uma democracia, seja ela presidencialista ou parlamentarista. Apesar disso, houve, e ainda há, quem, sendo eleito para um determinado período de governo, tenha burlado ou, pelo menos, tentado burlar as regras, tudo com a pérfida intenção de permanecer mandando pelo maior tempo possível. A história está repleta de exemplos. É errado dizer, porém, que fulano ou sicrano deu um golpe "para se eternizar no poder", já que não vive neste planeta nenhum ser humano que seja eterno. Eu, pelo menos, desconheço criaturas com esse atributo.
A Constituição brasileira de 1891, primeira dos tempos republicanos, prescrevia, na Seção II, Capítulo I, Art. 43:
"O Presidente exercerá o cargo por quatro anos, não podendo ser reeleito para o período presidencial imediato." 
Vê-se, portanto, que uma mesma pessoa não podia ter dois mandatos consecutivos como presidente, mas nenhum ex-presidente ficava impedido de tentar um novo quadriênio mais tarde. Foi o caso de Rodrigues Alves, presidente entre 1902 e 1906, eleito novamente em 1918, que, todavia, não chegou a tomar posse no cargo, já que foi vitimado pela gripe conhecida como "espanhola".
A Constituição de 1934 determinava uma regra parecida. Basta ver o que dizia no Título I, Seção II, Capítulo I, Art. 37:
"O Presidente será eleito por um quadriênio e não poderá ser reeleito senão seis anos depois de terminado o seu período presidencial."
Ora, já parece um tanto esquisita a possibilidade de reeleição após seis anos, se levarmos em conta que os mandatos eram de quatro. Mas, como sabem os leitores bem-informados, nesse quesito a Constituição de 1934 jamais foi cumprida: Getúlio Vargas, que chegara ao poder na chamada Revolução de 30, articulou um golpe de Estado em 1937 - o do Estado Novo - e permaneceu na presidência até 1945 (¹), tendo, por ocasião do golpe, outorgado uma nova Constituição. Vê-se, pois, que, para garantir eleições e rodízio de mandatários, não basta que haja leis escritas. Elas devem ser cumpridas. Quem tiver a paciência de verificar o que as Constituições subsequentes (1946, 1967, 1988) determinaram e o que de fato aconteceu comprovará facilmente a veracidade desse fato.
Ninguém imagine, porém, que o debate quanto ao que seria um tempo razoável de mandato, que possibilite ao governante "mostrar serviço", sem cair na tentação de permanecer no cargo indefinidamente, seja coisa apenas do Brasil. Abram os olhos, leitores, vejam o que aconteceu e/ou acontece ao redor do mundo, e terão uma lição bastante instrutiva a respeito das tendências humanas, quando o assunto é amor ao poder.

Na República Velha...

Temos aqui um exemplo prático de que o debate sobre a duração do mandato do presidente da República é antigo. Vejam este cartoon que apareceu na revista carioca O Malho, edição de 1º de setembro de 1923 (²):

A legenda superior diz:
"A Reforma
"Assegura-se que um dos pontos da anunciada revisão constitucional é o aumento, para sete anos, do período de mandato do presidente da República." (Dos jornais)"


Na legenda inferior, temos:
"D. Democracia - Boa tarde!... Já vejo que, cada vez mais, andam esquecidos de mim..."

(1) Voltou ao poder em 1951; dessa vez, eleito por voto popular.
(2) O MALHO, Ano XXII, nº 1094, 1º de setembro de 1923. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Ovelhas devoradoras de homens

A relação entre o cercamento dos campos e a Revolução Industrial inglesa


Humanos devoram ovelhas (*). Fato curioso é que, na mitologia de vários povos da Antiguidade, era corrente que os homens, de início vegetarianos, haviam, a partir de certo momento, se tornado carnívoros. Entre os antigos gregos alguns pensavam que os humanos, que eram frugívoros, só experimentaram carne depois que Prometeu entregou a eles o fogo - entende-se facilmente a relação de causalidade. Seria, desde então, que animais começaram a ser oferecidos em sacrifício aos deuses... E, se era permitido aos deuses, por que não aos homens?
Mas pode ser pior. Houve quem atribuísse a origem dos hábitos carnívoros à deusa Deméter (Ceres, entre os romanos), aquela, que, segundo se supunha, amparava as searas. A contradição é apenas aparente: tendo a deusa cultivado uma bela plantação de cereais, que prometia farta colheita, um suíno teve a ideia de lá entrar e estragar tudo. Furiosa, Deméter cortou o fio da existência ao pobre animal, e, por conseguinte, condenou à morte todos os demais porcos, que passaram a ser criados apenas para morrer. Destino inglório, esse!
Bem, meus leitores, as lendas desse tipo são muitas, mas é melhor abandonar o assunto dos humanos carnívoros e passar ao caso das ovelhas devoradoras de homens. Pois saibam que foi Thomas Morus, em sua Utopia, quem, no Século XVI, acusou as ovelhas inglesas de antropofagia. Não que as meigas criaturas lanígeras houvessem, de súbito, adotado mudanças em seus hábitos alimentares, e nem mesmo eram elas as culpadas. O problema começara (suprema inovação!) com os homens. 
Expliquemos.
A ordem rural que prevalecera na Inglaterra da Idade Média andava a ruir. Criar carneiros tornou-se lucrativo, de modo que os proprietários de terras, pondo em uso uma série de expedientes, trataram de expulsar os camponeses, e, em pouco tempo, nuvens de ovinos eram vistas cobrindo os campos outrora cultivados. A lavoura da época requeria muita mão de obra; para a criação de carneiros, poucos pastores eram necessários.
Esse fenômeno, que ficou conhecido como "cercamento dos campos", desencadeou uma série de consequências, dentre as quais:
  • Os camponeses expulsos, que só sabiam trabalhar na agricultura, não encontravam outra ocupação;
  • Houve uma elevação considerável na criminalidade e na mendicância;
  • Leis severas e enforcamentos em série não eram suficientes para debelar a incidência de crimes;
  • Declinou a produção de alimentos, havendo, portanto, uma elevação nos preços dos que estavam disponíveis;
  • Mesmo que a produção de lã não fosse um monopólio legalmente reconhecido, os produtores, controlando o mercado, passaram a regular os preços, mantendo-os artificialmente elevados, de modo que os tecidos de lã não mais estavam ao alcance dos pobres.
Vejam então, leitores, que a acusação de "antropofagia", com que Thomas Morus invectivou as ovelhas, melhor caberia aos proprietários de terras - a nobreza e o clero, como o próprio Morus explicou. Exagero ou não, segundo esse autor, depois que os camponeses eram expulsos, nada mais ficava em pé entre as construções das aldeias, a não ser as igrejas. Eram usadas como estábulos.
O tempo da Revolução Industrial estava ainda longe, mas entende-se que o cercamento dos campos foi um dentre muitos fatores que proporcionaram condições para o surgimento da atividade fabril, na qual o ramo da tecelagem alcançou destaque. A enorme produção de lã assegurava um suprimento contínuo de matéria-prima para as fábricas. A configuração urbana mudou drasticamente, com o aparecimento de vastos e miseráveis subúrbios de onde provinha a mão de obra. Em quantidade e qualidade, tecidos ingleses mostraram-se superiores e, gradualmente, conquistaram mercados, mesmo em terras distantes. O que aconteceu na Inglaterra influenciou o mundo.

(*) Nem todos os seres humanos devoram ovelhas; a blogueira, por exemplo, tem horror dessa carnificina.


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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Tropas de muares que iam de Goiás ao porto de Santos no Século XIX

Detalhe de uma sela antiga

Antes que estradas de ferro fossem estabelecidas, o transporte entre as províncias litorâneas do Império do Brasil era, em grande parte, feito por via marítima. Já as províncias interiores permaneciam restritas ao multissecular transporte de mercadorias mediante o emprego de tropas de muares. A desvantagem era enorme.
No contexto da proposta de mudar a capital da Província de Goiás, e procurando defender a ideia de que o transporte fluvial de mercadorias seria vantajoso em relação ao sistema geralmente adotado, Couto de Magalhães, em seu livro Viagem ao Rio Araguaia (¹), fez uma lista dos trabalhadores que, costumeiramente, conduziam cada tropa de muares que ia do Brasil Central ao porto de Santos: dois arreeiros, dois ajudantes, dois camaradas dianteiros, dezoito tocadores de lote, um cozinheiro e um ajudante de cozinheiro (²). Toda essa gente devia receber pagamento pelo tempo que permanecia nas estradas, ainda que esse não fosse o único custo a ser considerado por quem se aventurava a exportar algum produto.
Se, porém, o escoamento da produção de Goiás fosse efetuado por navegação fluvial (³), talvez fosse possível alcançar as províncias do Norte, e daí o litoral, a um custo menor do que o admitido pela tradicional rota terrestre até o porto de Santos. Sem entrar no mérito dessa questão, cabe lembrar que, ainda de acordo com o mesmo autor, havia outro grave inconveniente no transporte terrestre com o emprego de mulas, ou seja, o limite óbvio às cargas que podiam ser levadas, tanto em massa quanto em volume, supondo tropas geralmente compostas por cerca de cento e oitenta animais, divididos em dezoito lotes, para uma carga equivalente a nove arrobas por animal (⁴) - lembrem-se, leitores, de que cada arroba corresponde a cerca de quinze quilos. Não era nada fácil ser mula de tropa...
Entende-se, portanto, a dificuldade que havia em fazer o transporte de cargas muito pesadas, principalmente quando não podiam ser divididas entre vários animais. Mas havia também o problema do volume: "[...] Por via das estradas do sul muitos objetos essenciais à nossa indústria aqui [em Goiás] não podem chegar, como sejam grandes alambiques, cilindros de ferro, etc. e mil outros instrumentos necessários para a indústria da cana, da extração do ouro e diamantes e para outras que jazem inexploradas até hoje por esse obstáculo [...]" (⁵), escreveu Couto de Magalhães.
O correr do tempo foi responsável por comprovar que, a despeito de todas as sugestões contrárias, os negócios entre províncias continuaram a fluir na direção da capital do Império e, gradualmente, também no rumo do porto de Santos, fortalecido pela expansão das exportações de café. Quanto à ideia de mudar a capital de Goiás, ela efetivamente saiu do papel - a partir da quarta década do Século XX.

(1) O objetivo da obra publicada por Couto de Magalhães em 1863 era a defesa da necessidade de uma mudança da capital da então Província de Goiás, já que Vila Boa (ou Cidade de Goiás), que fora muito conveniente no Século XVIII em virtude da mineração, estava situada em uma posição geográfica bastante desfavorável para a nova realidade da Província, depois que as jazidas auríferas haviam declinado.
(2) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 24.
(3) O projeto de Couto de Magalhães é que a navegação fluvial evoluísse o suficiente para ser feita por embarcações a vapor.
(4) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Op. cit., p. 24.
(5) Ibid., pp. 25 e 26.


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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Feriados e mais feriados

Os feriados, na Roma Imperial, chegaram a ser quase tão numerosos quanto os dias de trabalho


Um pequeno desafio para vocês, leitores: encontrem alguém que não goste de feriados. Talvez haja neste planeta algumas exceções, é verdade, mas a regra entre os mortais é que os feriados sejam da maior estimação.
De vez em quando, alguém diz que há feriados em excesso, que deveríamos ter mais dias de trabalho, que ter menos feriados seria bom para a economia do País - por certo quem atua no setor de turismo não há de concordar com essa ideia. Basta comparar o calendário brasileiro com os que vigoram em outros países para ver que não há tantos feriados assim.
Já na Roma Antiga o número de feriados ao longo do ano veio a ser problema sério. É que, com tantos deuses, e cada deus ou deusa (ou seus respectivos devotos) reclamando um feriado, tornou-se difícil haver uma sequência razoável de dias "comuns", ou seja, de trabalho. O problema era tão grave que virou debate no Senado em 59 d.C. (ou 812 da fundação de Roma, se preferirem). De acordo com Tácito (¹), Caio Cássio, defendendo a limitação das festividades, argumentou ser necessário "dividir os dias sagrados e de trabalho, de tal maneira que não se impedissem as celebrações dos deuses e nem as ocupações dos homens". Em sua lógica, se fosse o caso de homenagear os deuses por todos os benefícios para com os humanos, não haveria no calendário dias suficientes - algumas festas, portanto, bastavam (²).
Roma, porém, passava por tempos turbulentos, tendo o instável Nero à frente do governo. Desagradá-lo era perigoso, e não é surpresa que houvesse uma multidão de aduladores, inclusive entre a elite senatorial. O debate sobre os feriados fora desencadeado justamente em razão das seguidas festas para dedicar estátuas e outras homenagens ao imperador, e dar graças aos deuses que favoreciam a cidade com tão ilustre mandatário - não seriam muitos, portanto, os que ousariam dizer: Romanos, tratem de ir trabalhar!...

(1) Annales, Livro XIII; o trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(2) Os membros da elite romana que pretendiam seguir carreira política aprendiam, desde muito cedo, a arte da argumentação. 


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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O preço do açúcar

Fundamental nos primeiros séculos da colonização, a produção açucareira perdeu importância depois da descoberta de jazidas auríferas no interior do Brasil


Querem uma definição de açúcar, leitores? Frei José Mariano da Conceição Veloso, no final do Século XVIII, publicou, em O Fazendeiro do Brasil: "Todos sabem que o açúcar é uma substância sólida, branca, doce, agradável ao gosto, muito usada nas oficinas, cozinhas, e ainda na farmácia para a confecção dos xaropes e preparação de outros remédios, de fácil dissolução na água, à qual dá um sabor agradável, sem lhe comunicar cor ou cheiro." (¹) Não satisfeito, ainda diria: "O açúcar é, sem dúvida, o maior benefício que o homem recebeu da natureza." (²)
Que exagero! E, quanto à última parte, uma completa tolice. No entanto, se levarmos em conta que o religioso pretendia, com seu livro, estimular o desenvolvimento da indústria açucareira nos domínios lusitanos, entenderemos o entusiasmo que procurava demonstrar.
A cana-de-açúcar foi introduzida no Brasil ainda no Século XVI. Embora haja alguma divergência quanto à sua origem e data de primeiro cultivo, é fato que não foi preciso esperar muito para que os engenhos de açúcar viessem a ser a principal força da economia brasileira, ao menos nos dois primeiros séculos de colonização (³).
A prioridade atribuída à produção açucareira pode ser facilmente explicada: o açúcar do Brasil não dificultava a comercialização de nenhum produto do Reino, sua venda obtinha preços compensadores na Europa e, nos primeiros tempos, a concorrência não era muito grande. Alie-se a tudo isso o fato de que a cana-de-açúcar encontrou, em algumas áreas do Brasil, as melhores condições de clima e solo para seu desenvolvimento, e ter-se-á um panorama que justifica muito bem a estima de que desfrutava como elemento a proporcionar riqueza, quer para os senhores de engenho no território colonial, quer para os comerciantes na Europa.
No entanto, o livro de Frei José Mariano da Conceição Veloso tinha, como já foi dito, o objetivo de melhorar a produção açucareira e as técnicas de refino do açúcar. Foi ele buscar inspiração nas práticas adotadas em colônias francesas, uma evidência de que, em seus dias, os métodos empregados no Brasil já eram tidos por ultrapassados Em lugar de um incentivo ao desenvolvimento de novas tecnologias, quase sempre a mania era copiar (ou tentar copiar) o que outros faziam com sucesso.

No Século XX...

Este cartoon apareceu na revista carioca O Malho, edição de 1º de setembro de 1923 (⁴). A ideia, como se vê, era satirizar o preço do açúcar, que andava pelas alturas, "açu-caríssimo":


Diz a legenda:
"JECA - Então, "seu" Cardoso?
CARDOSO - Horrível, Jeca. À proporção que ele sobe, vai perdendo aquelas virtudes adocicadas. É melhor importar beterraba..."

(1) VELOSO, Frei José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil  Tomo I, Parte II. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1799, p. 1.
(2) Ibid., p. 383.
(3) A descoberta de jazidas auríferas, as chamadas "Minas Gerais", provocou uma grande crise no setor açucareiro.
(4) O MALHO, Ano XXII, nº 1094, p. 17. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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