quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Lentilhas


Dois irmãos - gêmeos - tinham muito pouca coisa em comum. Um dia, ao voltar de uma caçada, um deles encontra o outro cozinhando lentilhas. Esfomeado, pede um pouco da comida e, como resposta, é informado de que será prontamente atendido, se abrir mão do direito de ser considerado primogênito, coisa que, naquele contexto seminômade, era reputada de muita importância. O faminto concorda, recebe pão e um prato generoso de lentilhas. A fome acaba, a confusão está apenas começando. Vocês sabem, leitores, estou falando daquela que talvez seja a história mais famosa envolvendo lentilhas. Os gêmeos? Esaú e Jacó, claro. 
Qualquer um dos leitores tem todo o direito de não gostar de lentilhas, mas, se fosse criança e vivesse no Egito Antigo, talvez não houvesse a possibilidade da escolha. É que os egípcios achavam que as crianças alimentadas com lentilhas ficavam mais inteligentes. Nenhuma mãe zelosa, portanto, deixaria de fazer com que os filhos, de boa ou má vontade, engolissem toda a comida.
Se quisermos entender por que, na Antiguidade, as pessoas valorizavam demais alguns alimentos, enquanto desprezavam outros, será preciso levar em conta mais que o sabor. Os antigos gregos e romanos achavam que a comida afetava o temperamento ou estado de humor do indivíduo. Então, coitadinhas das lentilhas! Em Roma, dizia-se que seus apreciadores eram preguiçosos. A palavra "lentilha" vem de lentus, que significa exatamente aquilo que parece. Não é mesmo uma grande injustiça? 
Talvez para atenuar tamanha maldade, Plínio, na sua História Natural, e ainda dentro da ideia de que o temperamento é afetado pela alimentação, entendeu dizer que as lentilhas faziam com que as pessoas fossem mais suaves, mais moderadas. Está bem, da preguiça para a moderação, já é notável progresso.
Não tendo conhecimentos científicos suficientes para avaliar o valor nutricional dos alimentos, os antigos só podiam fazê-lo empiricamente. É isto que explica, afinal, o apreço dos egípcios pelas lentilhas, enquanto romanos não davam tanto valor a elas. Sabemos, por outro lado, que em tempos de guerra ou de colheitas ruins, ter alimento suficiente já era um privilégio. Não era raro que populações fossem dizimadas pela fome. Gostar de lentilhas, como de qualquer outro alimento, não era, para muitos, uma opção pura e simples. Era preciso, às vezes, comer o que estava disponível. Lentilhas, portanto, eram boas para quem tinha a sorte de dispor de um prato delas, ainda quando não estava em questão o direito à sucessão na liderança do clã que, nos velhos tempos, competia ao filho mais velho.


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4 comentários:

  1. Acredito que quase tudo é comestível, com o temperamento certo. É certo que algumas coisas são comestíveis apenas uma vez, haha. Tirando as maravilhas venenosas com que a natureza nos presenteou, o melhor é manter a mente aberta neste quesito.
    Quanto às lentilhas, sendo leguminosas, devem fazer bem à saúde. E quando temos fome, um prato de lentilhas deve saber ao mais requintado manjar
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Concordo apenas em parte: há coisas que, só pelo aspecto, parecem dizer que é melhor nem chegar perto hhahahha...

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  2. A questão cultural tudo condiciona, como se deduz do que a Marta escreve, e tendo a concordar. De qualquer forma, no relato de Esaú e Jacob, as lentilhas são questão menor. Para os intentos de quem escreveu, o que estava em causa era o ensinamento, alertando para a fraqueza humana, num tempo em que haver algo para comer era assaz fundamental.
    Espero não ter sido "lentus" no comentário, Marta. :)

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    1. Hahahahha... É verdade, o ensinamento talvez fosse prioridade, mas nas histórias dos antigos podemos descobrir também muita coisa interessante sobre seu estilo de vida.

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