quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A implantação de ferrovias e o desenvolvimento da lavoura cafeeira em São Paulo

Que impacto exerceu a implantação de ferrovias no Estado de São Paulo? Segundo dados citados por Adolpho Augusto Pinto em História da Viação Pública em de São Paulo (¹), no ano em que foi inaugurado o primeiro trecho ferroviário na então Província de São Paulo, a situação era a seguinte:


Já na entrada do Século XX podia ser constatada uma mudança radical:


Muita coisa aconteceu nesses poucos anos. O Brasil, que era um Império, viera a ser uma República, de modo que a antiga Província agora recebia o nome de Estado de São Paulo. O trabalho escravo fora extinto e os trens vinham de Santos apinhados de imigrantes que jogavam todas as suas esperanças nas férteis terras do chamado Oeste Paulista (²). A virada econômica, para Adolpho Augusto Pinto, um entusiasta das ferrovias, era decorrente da implantação dos "caminhos de ferro":
"Pois bem, aparece o caminho de ferro, aperfeiçoa-se a viação pública, e o resultado é como se no organismo social se tivesse inoculado o seu princípio vital. [...]." (³)
Ora, leitores, seria ingenuidade supor que a simples implantação de ferrovias produziu essa mágica. As ferrovias - muito importantes, sim - foram estabelecidas porque havia uma demanda por transportes que justificava o investimento. Por outro lado, é forçoso considerar que, havendo ferrovias, era mais fácil exportar café e o produto chegava ao porto em melhores condições para satisfazer às exigências do mercado. Compensava, pois, expandir a lavoura, e isso se fez com tal exagero que, por superprodução, acarretou um decréscimo nos preços internacionais do café (embora essa não fosse a única causa).
Para produzir mais, nas condições vigentes no Brasil do Século XIX, em que predominava baixíssima mecanização da agricultura, era necessário mão de obra além da já existente no País, daí a ênfase na imigração, secundada pela situação política e econômica na Europa. Populações que se viam sem perspectivas favoráveis no país de origem vinham buscar novas oportunidades no Continente Americano.
No limiar do Século XX, São Paulo não era só café. Mas era principalmente café. As ferrovias foram, em parte, causa e consequência para esse cenário. 

(1) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, p. 315.
(2) Que não correspondia ao Oeste geográfico do Estado de São Paulo.
(3) PINTO, Adolpho Augusto. Op. cit., p. 315.


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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Palas Atena

Como nasceu a deusa favorita dos atenienses


Imaginem, leitores, a mais terrível dor de cabeça. Pois saibam que, de acordo com a mitologia, Zeus teve uma dessas, e não foi no sentido figurado. Iria começar um "parto" estranhíssimo. É que da cabeça de Zeus, que tanto doía, saiu sua filha favorita, Palas Atena, retratada, entre os gregos, como a deusa do conhecimento, das decisões ponderadas, da perspicácia, mas que, a despeito disso, friamente pérfida, amava o som das batalhas, o tropel dos cavalos que corriam para a luta, o choque dos escudos dos combatentes, os gritos de comando, as demonstrações de bravura. 
Palas Atena era a deusa mais importante na cidade-Estado de Atenas. Não que os outros deuses não tivessem lá seu espaço, mas, usando uma linguagem de nossos dias, pode-se afirmar que ela era a padroeira. Teria a cidade se desenvolvido buscando ter, em si, as características da deusa ou, ao contrário, atribuía-se a Palas Atena aquilo que os atenienses valorizavam em si mesmos e em sua cidade? Afinal, Atenas foi, em seu máximo poderio, um centro de cultura absolutamente espetacular, mas era, também, imperialista, dominadora, escravocrata. Vejam, leitores, que, em uma ou outra hipótese, a cidade e sua deusa combinavam muito bem.
Tanta sabedoria - na deusa, bem entendido - estava, porém, condicionada à perpétua virgindade (*). Tudo tem seu preço, e nem mesmo para a queridinha de Zeus houve uma exceção.

(*) Essa é, portanto, a razão pela qual o templo consagrado à deusa em Atenas foi chamado Pártenon.


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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Leis sobre a venda de pão e vinho não eram cumpridas em São Paulo no Século XVII

Legisladores de todas as épocas foram e/ou são conscientes de que dificilmente haverá pólvora mais eficaz para iniciar uma revolução do que um número elevado de estômagos vazios, em particular quando reunidos em uma área pouco espaçosa. Mesmo no tempo das monarquias absolutas, quando o rei era visto como "lei animada sobre a terra" (¹), era prudente garantir ao povo pelo menos um suprimento dos alimentos considerados básicos, para evitar que a coroa trepidasse na cabeça dos monarcas.
Como sabem os leitores, no Período Colonial vigoravam no Brasil as leis portuguesas, sempre que aplicáveis. Se dermos uma olhada no que determinavam as Ordenações do Reino (²) em relação ao fornecimento de víveres, será fácil constatar que havia grande preocupação de que alimentos nunca estivessem em falta na Corte: 
"E serão obrigados os regatães trazer à nossa Corte em qualquer lugar que nós estivermos, pão, vinho, carne, pescado e todos os outros mantimentos abastadamente, que necessários forem [...]." (³)
Duas breves explicações: "regatães" eram mercadores ou barqueiros que vinham fazer comércio de seus produtos; "nós" era apenas o rei que, como era mania entre os monarcas, falava de si mesmo usando o chamado plural majestático... 
Fora da Corte, a obrigação de fiscalizar o abastecimento competia aos vereadores de cada localidade (⁴); mesmo tendo eles autoridade para lançar alguns impostos sob os moradores de sua jurisdição, jamais poderiam taxar o pão, o vinho e o azeite, pelo óbvio motivo de que tal medida acarretaria elevação nos preços de artigos considerados de primeira necessidade - isso era de competência exclusiva do rei: 
"Porém não porão taxa no pão, vinho e azeite. E quando houver alguma necessidade evidente de pôr taxa nos ditos mantimentos, no-lo farão saber, alegando as razões que para isso houver, para provermos como for nosso serviço." (⁵)
Ainda no sentido de impedir abusos no comércio de artigos de primeira necessidade, havia uma prescrição segundo a qual a venda de pão e outros alimentos acima dos preços fixados era crime inafiançável: 
"Não se passarão isso mesmo alvarás de fiança às pessoas que forem culpadas por venderem pão, carne e outros mantimentos e coisas a maiores preços das taxas por mim feitas, ou pelas Câmaras [...], porque passarem-se os tais alvarás às ditas pessoas não seja causa de se não guardarem as ditas taxas, visto o muito prejuízo que disto se segue ao povo." (⁶)
Havia, porém, no Brasil, uma pequena povoação de serra-acima, somente acessível pelo dificílimo e malsinado Caminho do Mar, em que as leis do Reino se não guardavam... Ou só se guardavam quando aprazia aos moradores. De acordo com Affonso de E. Taunay, a gente de São Paulo, no Século XVII, sofria com os desmandos de padeiros que vendiam pães abaixo do peso estipulado:
"Exploravam [...] os padeiros a paciência do bom povo. Em dezembro de 1623, representava o Procurador Luís Furtado contra tais extorsões: "Havia muito trigo na terra" e, no entanto, "o pão que vendia a este povo nas vendagens era pequeno"." (⁷)
Também o vinho, informa o mesmo autor, era alvo de trapaças nas tabernas:
"Contra os tratantes bramava, em Câmara, a 14 de fevereiro de 1609, o solícito Procurador Antônio Camacho, a lembrar "que na vila havia muitas tabernas em as quais se vendia vinho muito ruim e muito caro por medidas muito ruins e pequenas".
[...].
Tabelas de preço? Nem sinal! Medidas? Eram as que queriam, de pau ou de barro sem vestígio da aferição municipal." (⁸)
Lembremo-nos de que as leis do Reino determinavam a aferição periódica dos pesos e medidas usados no comércio. Mas, na pequena São Paulo do Século XVII, o Reino era uma realidade muito distante e, com danos e prejuízos de um lado, lucro ilícito de outro, a vida dos colonizadores seguia seu rumo de sempre, com os mais fortes levando vantagem. Nesse cenário, quem tinha juízo, mas não tinha poder, fechava a boca e fazia vistas grossas. Melhor era conservar a cabeça em cima do pescoço que ir brigar por diferenças no peso do pão ou na quantidade e qualidade do vinho, e acabar sem pão, sem vinho e sem vida.

(1) Ordenações do Reino, Livro Terceiro, Título LXXV, § 1º, de acordo com a Edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Publicadas formalmente pela primeira vez no início do Século XVII, as Ordenações do Reino eram, em grande parte, uma compilação de leis que já existiam muito antes.
(3) Livro I, Título XVIII, § 1º.
(4) Cf. Livro I, Título XVIII, § 8.
(5) Livro I, Título XVIII, § 34.
(6) Regimento Novo dos Desembargadores do Paço, § 26, de 16 de setembro de 1586.
(7) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 103.
(8) Ibid,. p. 117.


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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O "beija-mão"

O "beija-mão" na Corte do Rio de Janeiro ao tempo de D. João VI (¹)

O "beija-mão" era uma cerimônia que nós hoje consideraríamos ridícula, mas que já foi muito prezada no passado: nela, o monarca dava a mão a beijar a seus leais súditos, que para isso faziam fila e, conseguindo seu intento, tinham-se na conta de muito favorecidos.
Esqueçam o componente da brutal falta de higiene, que é preocupação nossa; antigamente quase ninguém dava muita importância para isso. Afinal, era mão do rei ou imperador... Está bem, havia gente que achava nojento, concordo, mas vamos adiante.
Segundo relato de Alexandre J. de Mello Moraes (²), D. João VI, durante sua estada no Rio de Janeiro (³), costumava realizar o beija-mão quase todos os dias, quando retornava ao Palácio de São Cristóvão, após seu passeio vespertino. Ao que parece, sempre que estava de bom humor, o rei demonstrava a maior complacência com o ritual, ainda que isso atrasasse um pouco a ceia, essa, sim, um acontecimento da maior importância em sua agenda. Quanto aos beijoqueiros, lá se iam, felizes da vida, a contar para meio mundo que haviam beijado a mão do rei. Em datas importantes o beija-mão era mais cerimonioso e acontecia no interior do palácio.
Com as devidas formalidades, o beija-mão prosseguiu no Brasil durante o governo de D. Pedro I, sendo a cerimônia restrita, em alguns casos, à gente da Corte, embora, em certos dias, fosse considerada geral, ou seja, para quem quisesse ou fosse admitido à presença de Sua Majestade. Um acontecimento nada desprezível, também referido por Mello Morais, é que, quando faleceu a imperatriz D. Leopoldina, houve beija-mão do cadáver, por parte dos filhos e da criadagem.
O Príncipe Adalberto da Prússia, que esteve no Brasil em 1842 e teve a oportunidade de presenciar um beija-mão na data comemorativa da Independência, quando o imperador era o jovem D. Pedro II, observou: "Vieram então os militares e civis por corporações para o beija-mão." (⁴) 
A ocasião era muito importante e, por isso, leitores, nada de esperar a quase informalidade do beija-mão ao pé da escada em São Cristóvão, como no "tempo do rei". Vê-se apenas que, malgrado o passar dos anos, a mania de oscular devotamente a mão do monarca continuava em vigor. Lembremo-nos de que, em 1842, Robert Koch nem havia nascido - só veio ao mundo no ano seguinte - mas faria, ao longo da vida, um trabalho notável para informar à humanidade a existência de coisas tão minúsculas que, mesmo não estando ao alcance da vista, tornavam o beija-mão muito pouco recomendável.

(1) A.P.D.G. Sketches of Portuguese Life London: Geo. B. Whittaker, 1826.
(2) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, pp. 155 e 258.
(3) 1808 - 1821
(4) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazonas - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 58.


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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Embarcações que navegavam nas águas do Mediterrâneo na Antiguidade

Birremes, trirremes, quadrirremes, quinquerremes...


Embarcação grega da Antiguidade (¹)

"Não deves jamais colocar todos os teus bens nos navios..."
                                              Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias

As embarcações que cruzavam o Mediterrâneo e adjacências na Antiguidade eram dotadas de velas, mas não era só o vento que as impulsionava - havia também a força dos músculos de muitos remadores - primeiro gente livre e, mais tarde, escravos.
Quando uma embarcação tinha duas filas de remos (os remadores eram dispostos em dois "andares"), recebia o nome de birreme; se tivesse três filas de remadores, era trirreme, se fossem quatro as fileiras, era quadrirreme e, se tivesse cinco, seria então quinquerreme. Estas duas últimas só eram usadas em batalhas navais, e não eram muito numerosas porque suas proporções tornavam as manobras mais difíceis. Ainda assim, eram úteis para impressionar adversários.
Se pensarmos no Mediterrâneo como um gigantesco lago de água salgada, cercado por diferentes povos que falavam uma variedade de línguas e que desenvolveram diversas e notáveis culturas, será fácil entender que o desenvolvimento da navegação e, por conseguinte, das embarcações, não foi obra de um único povo. Um invento aparecia em um lugar, logo era adotado em outro, recebia aperfeiçoamentos que, por sua vez, eram copiados pela vizinhança. Qual era o melhor formato para um navio mercante? E para um navio de guerra? Quantos deviam ser os remos, e de que comprimento? E se dois remadores manipulassem um único remo? Velas quadradas ou redondas? Vê-se que o mundo mediterrânico vivia em efervescência, e a arte náutica se beneficiava disso. Fenícios, cartagineses, gregos, romanos e outros povos da Península Itálica, todos deram sua contribuição, ainda que nem sempre voluntária, conforme veremos.
Atenienses, na batalha naval de Salamina (²), impuseram notável derrota aos persas, provando a eficiência das trirremes gregas contra as desajeitadas, ainda que numerosas, embarcações adversárias. Isso aconteceu depois que Temístocles, segundo conta Heródoto, conseguiu que seus concidadãos acreditassem que uma estranha profecia vinda de Delfos, segundo a qual os gregos venceriam se, para sua defesa, fizessem uma muralha de madeira, era referência ao uso de uma frota que barrasse a passagem dos comandados de Xerxes, rei dos persas.
Mas como é que Atenas tinha prontas tantas trirremes com que enfrentar a poderosa frota persa? Heródoto, em suas Histórias, explica:
"O tesouro de Atenas tinha grande quantidade de dinheiro para uso público, como resultado de terem explorado as minas de Láurion, e os atenienses julgavam que deviam reparti-lo entre si; porém Temístocles convenceu-os a [...] construir duzentos navios de guerra para lutar contra Egina. Embora as embarcações não tenham sido usadas para seu primeiro objetivo, foram a salvação dos gregos, ao fazer de Atenas uma grande força naval."
Ainda segundo Heródoto, não satisfeitos com a frota que já tinham, os cidadãos atenienses fizeram mais navios, converteram embarcações mercantes em vasos de guerra e convocaram a participação de outros gregos que quisessem juntar-se a eles na luta contra Xerxes, convencidos que estavam de que, assim fazendo, obedeciam à determinação de Apolo. Venceram!

Combate naval retratado em um vaso grego da Antiguidade (³)

Tito Lívio registrou, em Ab urbe condita libri, que, durante a Primeira Guerra Púnica (⁴), os romanos perceberam que era grande desvantagem não dispor de uma esquadra que fizesse frente aos hábeis marujos cartagineses. Foi então que caiu em poder dos romanos uma embarcação do tipo quinquerreme. Seguimos com Tito Lívio:
"Sobre aquele modelo os cônsules determinaram a construção de uma frota, na qual tanto empenho foi posto que, passados sessenta dias desde que se preparara a madeira, já havia de prontidão uma armada de cento e sessenta velas."
Exagero? Talvez, mas salta os olhos o fato de que a gente de Roma, ainda neófita em questões navais, tivesse a capacidade de, rapidamente, copiar uma nau inimiga. Esse pragmatismo, é bom lembrar, caracterizou a Roma Antiga. Se alguma coisa era útil, devia ser admitida, independente de sua origem.
Ocorre que os romanos, percebendo que era agora possível chegar perto das embarcações adversárias, tiveram a ideia de inventar um maquinismo que permitisse prender os navios inimigos aos seus. Estendia-se logo uma ponte, de tal modo que soldados de Roma, passando por ela, podiam travar combate corpo a corpo com os homens de Cartago. Nesse tipo de luta os romanos levavam, quase sempre, enorme vantagem.
Para concluir, será interessante considerar se os navios que os povos mediterrânicos usavam tão bem em águas "domésticas" seriam igualmente eficazes em outros mares. Poderiam navios como esses fazer longas viagens? Heródoto, por exemplo, falou de uma viagem que marinheiros fenícios teriam empreendido a serviço de um faraó, na qual, tendo partido do Mar Vermelho, retornaram ao Egito pelo Mediterrâneo, depois de costear a África. Não há provas definitivas de que essa viagem tenha mesmo acontecido, mas sabe-se que não era impossível.
Por outro lado, o tipo de embarcações que os romanos usavam com eficiência no Mediterrâneo mostrou-se inadequado quando, comandados por Germânico, tiveram de enfrentar as águas revoltas do Mar do Norte, em meio a uma tempestade. Muitos soldados romanos morreram, enquanto sobreviventes foram arremessados a terras distantes, algumas delas ainda desconhecidas para os habitantes da Península Itálica.
Políbio (⁵), em sua História, explicou: 
"Faz-se muito pouco uso do mar das Colunas de Hércules, porque são muito poucos os que comerciam com povos que vivem nos extremos da África e da Europa, e também porque o mar exterior é desconhecido para nós." (⁶) 
Parece que, ao menos em seus dias, viagens além do Mediterrâneo não eram usuais.

(1) BUSCHOR, Ernst. Griechische Vasenmalerei. Mûnchen: R. Piper & Co., 1913, p. 142.
(2) Em 480 a.C., durante as chamadas Guerras Médicas.
(3) KNOWLTON, Daniel C. Illustrated Topics for Ancient History. Philadelphia: McKinley Publishing Company, 1913.
(4) As Guerras Púnicas foram guerras entre Roma e Cartago, travadas, com intervalos, entre 264 a.C. e 146 a.C.. Recebem esse nome porque os romanos chamavam punos aos cartagineses. 
(5) Políbio de Megalópolis (c. 203 - 120 a.C.) foi um grego que passou a maior parte da vida entre romanos; escreveu, entre outros assuntos, sobre as Guerras Púnicas.
(6) As citações de Hesíodo, Heródoto, Tito Lívio e Políbio que aparecem nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Lá se foram as lâmpadas incandescentes

Propaganda de lâmpada
incandescente, 1923 (²)
Tácito, historiador romano que viveu entre os Séculos I e II, escreveu: "Todas as coisas que agora achamos velhíssimas, já foram novas." (¹)
Duvida, leitor? Olhe para aquilo que, em seu conceito, é o máximo de tecnologia que está à sua mão. Tenha certeza de uma coisa: algum dia esse seu motivo de orgulho tecnológico terá o status de velharia, e, para tanto, nem será preciso muito tempo, se o ritmo atual de inovação for mantido.
No Brasil do começo do Século XX quase todas as casas, assim que anoitecia, precisavam de velas, lampiões ou lamparinas para que houvesse alguma luz - afinal, humanos não têm olhos de coruja. O máximo do luxo, só disponível em umas poucas localidades, era ter iluminação residencial a gás. Mas aí veio o uso da eletricidade e, com ela, as lâmpadas incandescentes entraram em cena. 
Agora que as lâmpadas incandescentes foram embora, substituídas por outras mais econômicas, como negar que o velho Tácito tinha razão?

(1) Annales, Livro XI
(2) O MALHO, 17 de março de 1923. O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Utopia (não muito utópica) de Thomas Morus

Utopia, hoje, é uma palavra geralmente usada para descrever um sonho ou projeto impossível ou, pelo menos, muito difícil de ser concretizado. A palavra surgiu, porém, como título de uma obra que falava de uma ilha imaginária, na qual existia uma civilização ideal. Apareceu quando era, ainda, a época dos grandes descobrimentos, e a possibilidade da existência de civilizações avançadas e até então desconhecidas passava pela cabeça de muitos europeus, mais ou menos como se discute, agora, se há vida inteligente em planetas distantes.
Ocorre, entretanto, que a "civilização perfeita" da ficção política escrita no Século XVI por Sir Thomas Morus, tinha muitos dos valores típicos do tempo em que viveu seu autor, ou mesmo elementos bem conhecidos de civilizações do passado, e, sob esse aspecto, não poderia ser classificada como um arroubo de originalidade. Querem ver, meus leitores?
  • À semelhança de alguns povos da Antiguidade, como os hebreus e os gregos de Esparta e Atenas, por exemplo, os utopianos tinham um legislador-fundador, cujo nome era Utopus e que, depois de civilizar a população selvagem da ilha, formulara a legislação que a regia;
  • Um príncipe, com mandato vitalício, era o governante supremo da Utopia, o que comprova que Morus não conseguia caminhar muito longe da ideia de monarquia então corrente na Europa;
  • Para auxiliar o príncipe vitalício havia um conselho de anciãos ou senado (lembram-se do senado romano?);
  • Questões de interesse público somente podiam ser debatidas no âmbito do senado e/ou das assembleias populares, atribuindo-se pena de morte para os desobedientes - apesar de supostamente impedir que decisões fossem tomadas às escondidas, pode-se questionar que havia, afinal, um tipo de censura ou restrição à liberdade de expressão dos cidadãos comuns da Utopia, cuja finalidade prática era evitar qualquer questionamento franco das regras estabelecidas;
  • Com exceção da agricultura, praticada tanto por homens como por mulheres, os demais ofícios eram divididos por sexo;
  • Filhos, como regra, aprendiam o ofício de seus pais (como nas corporações de ofício medievais), embora isso não fosse estritamente obrigatório;
  • O pai era a maior autoridade da família e cada grande grupo familiar (a que nós talvez déssemos o nome de clã) era regido pelo homem mais idoso, ou seja, pelo patriarca;
  • Ao casar-se, a moça é que ia viver com a família de seu marido, jamais o contrário, mais ou menos como acontecia na Grécia e Roma antigas;
  • Era permitido que os maridos castigassem as respectivas mulheres e que os pais castigassem os filhos;
  • Durante as refeições, as mulheres deviam servir a seus maridos, assim como os filhos estavam obrigados a servir a seus pais;
  • Trabalhos pesados na cozinha eram feitos por escravos, mas cozinhar e servir às mesas eram tarefas para as mulheres;
  • O casamento era, como regra geral, considerado indissolúvel, embora em casos graves de incompatibilidade o senado pudesse autorizar uma separação;
  • Na Utopia, a escravidão era admitida: os escravos eram, entre outros, prisioneiros de guerra, pessoas que haviam cometido adultério e criminosos sentenciados (como nas antigas penas de galés);
  • Condenados à escravidão eram, em caso de revolta, punidos com a morte;
  • Com o objetivo de encontrar uma solução para o excedente populacional que a ilha não poderia comportar, os utopianos, de modo análogo aos antigos gregos, fundavam colônias;
  • Ao fundar uma nova colônia em um lugar qualquer, os utopianos, se encontrassem ali habitantes, usavam a força para expulsá-los, e a isso consideravam uma guerra justa;
  • Em caso de guerra, os habitantes da Utopia costumavam contratar mercenários estrangeiros que fossem ao combate, de preferência a arriscar a pele dos cidadãos durante a luta;
  • Utopianos tinham inquietações filosóficas muito semelhantes àquelas que povoavam a mente de estudiosos europeus, quer do Medievo, quer do Renascimento.
Creio que, para nosso propósito, esta lista já é suficiente.
A que conclusão chegamos, leitores? Mesmo a Utopia utopicamente original não conseguiu fugir às amarras de sua época. Seu autor, um crítico mordaz das injustiças sociais que permeavam a Inglaterra de seu tempo, não teve destino muito feliz: Thomas Morus, no contexto do terremoto político-religioso que sacudiu a Europa e, em seu caso particular, a Inglaterra do Século XVI, acabou condenado à morte e foi decapitado em 1535. Sua Utopia, porém, se não foi a primeira fantasia de uma sociedade ideal a ser composta, veio a ser a mais popular, pelo menos no nome. 
Popularidade, porém, não é tudo. A despeito de sua sincera preocupação com questões relacionadas à justiça social, a Utopia (a obra, não a ilha) fazia a defesa de um controle tão estrito dos indivíduos que, sob a capa da igualdade, raiava à opressão. Que dizer de um país, ainda que hipotético, no qual toda a vida do cidadão era regulada por leis, desde a hora em que acordava até o momento em que ia dormir, assim como quando e quantas eram as refeições diárias que podiam ser feitas, qual era o tempo de trabalho, qual o tempo de lazer e como podia ser gasto, que atividade profissional devia ser exercida, quando e com quem se casaria e que posição ocuparia dentro de seu grupo familiar? Havia mais: Se o cidadão quisesse fazer uma viagem, somente poderia empreendê-la com o consentimento dos governantes, que predeterminavam a data de regresso e estipulavam que, na localidade a ser visitada, devia, enquanto lá estivesse, trabalhar com os que fossem da mesma profissão. 
Parece asfixiante, leitores? Nesse sentido, a Utopia imaginada e descrita por Thomas Morus estava mais para arcabouço de um Estado totalitário do que para fundamento de uma sociedade livre.


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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A lenda da Serra dos Martírios

É difícil determinar com exatidão quando nasceu a lenda relativa à "Serra dos Martírios", mas há quem defenda a ideia de que Bartolomeu Bueno da Silva, o famoso bandeirante conhecido como Anhanguera, afirmava tê-la avistado quando, ainda na infância, fizera parte de uma bandeira comandada por seu pai. Durante uma tempestade horrenda, os homens, apavorados, teriam encontrado abrigo em um lugar de onde se descortinava uma serra, no topo da qual, resplandecendo ao fulgor dos relâmpagos, podiam ser vistos, moldados no mais fino ouro, os instrumentos da crucifixão de Jesus: a coroa de espinhos, os pregos e, naturalmente, a própria cruz. Portanto, sob a perspectiva dessa lenda, as expedições que levaram Bartolomeu Bueno, já homem feito, a descobrir o ouro de Goiás, seriam apenas o resultado de sua obsessão por rever os Martírios e a serra riquíssima em metais preciosos que julgava estar em sua base. 
Ora, meus leitores, podemos já fazer algumas considerações. Primeiro, não é inconcebível que a gente religiosa (à própria moda, é certo) dos Séculos XVII e XVIII desse asas à imaginação, interpretando à luz de suas fantasias qualquer simulacro que avistasse à distância, mesmo que embaçado por uma chuva intensa. Quem conhece o relevo do Centro-Oeste brasileiro sabe muito bem da existência de formações que, à semelhança das figuras que supomos ver nas nuvens, podem ser comparadas àquilo que se quiser. Aqueles eram tempos de misticismo, e mesmo indivíduos com um currículo de maldades notável, como tinham quase todos os bandeirantes, achavam-se algo predestinados à descoberta de riquezas incalculáveis para si mesmos e para as cabeças coroadas do Reino. Fama, glória, honra, ouro, ouro, ouro... 
Demais disto, é inegável que na lenda dos Martírios há uns resquícios das lendas medievais relacionadas à procura do Santo Graal. Velhas tradições amalgamavam-se ao desejo irreprimível de encontrar metais preciosos.
O que teria feito Bartolomeu Bueno, ou qualquer outro bandeirante, com coroa de espinhos, pregos e cruz em ouro maciço se os houvessem encontrado? Bem, jamais saberemos a resposta, porque, como é óbvio, a lendária Serra dos Martírios nunca foi localizada. Curioso é que, mesmo no Século XIX, ainda houvesse gente à sua procura. Hércules Florence, desenhista francês que participou da Expedição Langsdorff (¹), escreveu em seus registros de viagem:
"Uns seis anos atrás subira um padre chamado Lopes esse rio (²) à procura de uma pretensa serra denominada Os Martírios, vista, por antigos sertanistas que a proclamavam a mais rica em ouro de todo o Brasil. Ora, se serra existe, de longe há de ser avistada e nessa ninguém pôs os olhos: o padre Lopes, intrépido explorador, debalde a procurou. [...] Depois de sofrer fome, perder gente em combate, de febres e por deserção de vários [...], teve que retrogradar." (³)
Com o tempo, até os mais crédulos entenderam que a existência da Serra dos Martírios não passava de uma lenda, que nem poderia ser rotulada de piedosa. Sim, na aparência tinha uns traços de religiosidade, mas quem arriscava a própria carcaça indo à sua procura, tinha, quase sempre, interesses bem pouco devotos.

(1) A viagem completa da Expedição ocorreu entre 1825 e 1829.
(2) Rio dos Peixes.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 221.


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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Ferrovias perigosas

Vistas como um símbolo de progresso, as primeiras ferrovias também despertavam medo


A implantação de ferrovias introduziu um novo pavor entre a população das áreas cortadas pelos trilhos: era a possibilidade de que alguém, ao atravessá-los, não tivesse a rapidez suficiente, ou mesmo que ficasse com os pés presos entre os dormentes e, não conseguindo sair a tempo, acabasse estraçalhado por uma locomotiva. E olhem, leitores, que aqueles eram tempos em que as pequenas composições circulavam a alucinantes trinta ou quarenta quilômetros por hora!
Vou compartilhar com vocês uma história - real, ao que parece - que teria acontecido na primeira década do Século XX, ou talvez no começo da segunda. Eu a ouvi, há bastante tempo, de uma velhinha, que me falava de suas memórias de infância.
Foi em uma pequena cidade do interior de São Paulo. Havia lá um professor que dava aulas aos meninos que frequentavam a escola primária, e que era verdadeiramente odiado. Entende-se, porque aqueles eram tempos em que bolos de palmatória ou uns bons cascudos eram vistos como excelente recurso pedagógico, e nem mesmo os pais se importavam muito se os filhos voltavam para casa choramingando por algum castigo excessivo. Era até provável que uma reclamação resultasse em mais alguns tabefes. 
Pois bem, o tal professor (Borges era seu nome), quando ia para a escola, precisava atravessar os trilhos da ferrovia, daí resultando que, entre os meninos, não era raro ouvir algum dizendo: "Lá vem o Borges, mas um dia desses o trem ainda pega esse maldito professor, e aí é que nós vamos ver!"
Leitores, sem mais delongas e cerimônias, registro aqui o que me dizia a velhinha contadora de histórias - não é que certo dia o desejo dos alunos acabou por virar realidade? 
É óbvio que havia risco, e ainda há, em atravessar os trilhos de uma ferrovia, e atender às leis de trânsito é vital para a segurança. Os administradores das antigas ferrovias sabiam disso, e recorriam a um instrumento que costuma ser bastante eficaz para garantir boa conduta, ou seja, estipulavam uma multa para os desobedientes. Vejam só esta placa, que pertenceu à Companhia Mogiana de Estradas de Ferro:


Para os padrões da época, a quantia de cinco mil réis era um "dinheirão". Tenho, porém, curiosidade em saber como seria possível notificar eventuais infratores e fazer a cobrança...


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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Poder absoluto, crueldade sem limite

Muitos monarcas da Antiguidade governavam com autoridade ilimitada, mesmo quando havia algum tipo de conselho de anciãos ou senado que podia ser ouvido. Isso acontecia por várias razões, dentre as quais:

  • a) A maioria das monarquias estava associada às crenças religiosas do respectivo povo, de modo que o rei era visto como um representante dos deuses, às vezes como o mais importante dos sacerdotes, ou, eventualmente, como uma autêntica divindade em figura humana;
  • b) Politicamente, os reis podiam ser representantes de um determinado grupo da sociedade, que lhe garantia apoio e sustentava as decisões em troca de vantagens econômicas significativas (como ocorria, por exemplo, em relação à camada sacerdotal no Egito Antigo);
  • c) O exército de um determinado povo era, frequentemente, um sustentáculo importante para os monarcas, mantendo, pela força, a autoridade do governante, embora, em alguns casos, pudesse significar também a ruína de um rei ou imperador desagradável aos homens de armas (aconteceu uma porção de vezes no Império Romano);
  • d) Apesar de absolutos, os monarcas também se mantinham no poder quando adotavam medidas favoráveis aos interesses de uma parte considerável da população, e não apenas de uma determinada camada da sociedade - poucos iriam gastar o cérebro em questionar a falta de participação política se, economicamente, as coisas andassem muito bem.

Acontece que, não raro, os monarcas-quase-deuses eram (ou, se não eram, vinham a ser, com o passar do tempo), pessoas muito cruéis, até como resultado do poder ilimitado de que dispunham. Veremos apenas um exemplo, bastante útil para elucidar esse ponto. Veremos? Leitores, só prossigam se tiverem estômago. Mas, já que chegaram até aqui, é melhor seguir em frente.
Dario I, rei dos persas, estava, segundo conta Heródoto, ultimando os preparativos para uma guerra, quando foi procurado por um amigo, cujos três filhos estavam no exército. Pedia ao rei que ao menos um dos rapazes fosse dispensado, para que ele não ficasse sozinho em casa, ou para que não acontecesse, na eventualidade de que os três viessem a morrer em combate, ficasse ele sem sucessor. Dario, com mostras de compreensão, disse ao pai aflito que isso não seria problema, já que daria ordens imediatamente para que nenhum dos rapazes fosse à guerra. Aliviado, o amigo aparentava satisfação, quando veio a perceber que o rei cumpriu mesmo a promessa: os três jovens foram degolados, e, por consequência, nenhum deles teve de ir ao campo de batalha. 
Não podemos ter certeza de que as coisas de fato aconteceram assim, mas não há dúvida de que a naturalidade com que historiadores e/ou cronistas da Antiguidade relatavam cada ação cruel atesta que, afinal, decisões brutais por parte de monarcas eram coisa mais ou menos corriqueira, embora houvesse gente de "segundo escalão" que, para provar que também tinha poder, perpetrava, quando podia, grandes maldades. Sêneca, o filósofo e professor de Nero (que discípulo, não?), contava de um procônsul que, parecendo ter grande ideia de si mesmo, dizia que, em um só dia, teria feito executar nada menos que trezentas pessoas. 
O que acontecia quando um rei era modelo acabado de perversidade? O povo suspirava pelo dia de sua morte, intrigas palacianas às vezes redundavam em assassinato (perpetrado até por membros da própria família real) e, menos comum, o monstrinho em forma humana acabava deposto, aprisionado e/ou executado. Tudo isso apenas para ser, talvez, substituído por alguém ainda pior. É só lembrar de algumas sucessões na Roma Antiga.
O problema, já se vê, era a concentração de autoridade decisória nas mãos de uma só pessoa. Para sorte da maioria, um rei podia ser justo, generoso, preocupado com o bem-estar dos súditos, magnânimo na guerra e na paz. No pior dos cenários, podia ser um crápula ensandecido. Os leitores que conhecem um pouco de História não terão qualquer dificuldade em determinar de que lado pendia balança. O mundo teria que esperar até o Século XVIII para ver, nas ideias de Montesquieu, a estrutura formal de pensamento segundo a qual uma divisão de poderes era imprescindível para limitar a autoridade de quem exerce o mando e (se possível) evitar desmandos.


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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Missionários jesuítas como pesquisadores do território brasileiro no Século XVI

Quem vem primeiro à sua mente, leitor, quando se fala em exploradores e descobridores de riquezas no Brasil Colonial? 
Navegadores? Condenados a degredo? Náufragos? Bandeirantes?
Inclua em sua lista os missionários jesuítas, porque também eles andaram a investigar territórios nos quais, segundo se presume, jamais europeus haviam pisado, como foi o caso do interior da Capitania de São Vicente. Tinham suas expedições facilitadas porque contavam com o auxílio de indígenas, detentores de certo conhecimento da região. Como quase não havia caminhos terrestres, era frequentemente através de rios que viajavam e, nesse sentido, a existência do Tietê, um rio que corre rumo ao interior e não para o oceano, foi de grande valia.
Suas viagens eram empreendidas, primariamente, com o objetivo de fazer contato com grupos indígenas isolados que pretendiam catequizar. Na explicação de Anchieta, em carta escrita em São Vicente a 12 de junho de 1561, e tendo por destinatário o Geral dos jesuítas Diego Lainez, os missionários viajavam e visitavam os índios "por suas aldeias, parte pelos rios, parte por terra, com não pequeno trabalho [...]". (¹)
É certo que havia perigo nessas viagens. Na mesma carta dizia Anchieta que os caminhos para quem ia de São Vicente a Piratininga (²) eram "mui ásperos e despovoados, onde não há conversação senão dos tigres (³), cujas pisadas achamos muitas vezes frescas, por onde passamos" (⁴)
Mas não era só. Sendo a neblina, às vezes, tão intensa, era possível que alguém se perdesse em meio ao arvoredo. Seguimos ainda com a carta de Anchieta:
"Uma vez, depois de termos corrido todas as igrejas, partimos delas por terra mui de manhã, por poder vir à missa, que era domingo, e um irmão saiu adiante, o qual assim por saber mal o caminho, como pela grande escuridade das nuvens, que muito tempo do ano duram quase até dez horas e são frigidíssimas, pensando caminhar para casa, tomou o caminho em contrário e perdeu-se, sem achar caminho até quase meio-dia, que se desfez de todo a névoa [...]." (⁵)
Eventualmente jesuítas, na condição de capelães, acompanhavam expedições que iam ao interior. O padre Aspilcueta Navarro, segundo menção do também padre Simão de Vasconcelos, integrou, no Século XVI, uma entrada ao sertão, cuja meta era descobrir jazidas de metais preciosos. O próprio missionário é que pediu ao superior que entrasse em ação para que a ele, Aspilcueta Navarro, fosse dado lugar entre os expedicionários: 
"[...] Pede ao padre Nóbrega se aproveite da ocasião e o mande a ele com título de capelão daquela gente em busca de almas (pois outra semelhante não se acharia facilmente) e a explorar aqueles sertões e denunciar por eles a fé de Cristo, e que por esta via se faziam dois serviços, juntamente a Deus e ao rei, que não tinha capelão que mandar." (⁶) 
Procurariam ouro também os jesuítas? Muita especulação já se construiu a respeito, majoritariamente após a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e de seus domínios em 1759, quando se pretendia justificar a medida com base em um suposto interesse dos missionários em construir um império na América. Entretanto, em uma carta escrita em São Paulo de Piratininga em 1554, Anchieta dizia:
"[...] Agora finalmente se descobriu uma grande cópia de ouro, prata, ferro e outros metais, até aqui inteiramente desconhecida (como afirmam todos), a qual julgamos ótima e facílima razão, de que já por experiência estamos instruídos." (⁷)
Quem descobriu? Onde? Anchieta não diz, e há quem afirme que as tais minas teriam sido encontradas pela expedição chefiada por certo Francisco Bruza de Espiñosa. Se for esse o caso, as descobertas não valiam grande coisa, mas nessa expedição é que esteve o padre Aspilcueta Navarro como capelão. Já se vê, portanto, que, de um ou outro modo, os jesuítas podem ser contados entre os que exploraram o território brasileiro, ainda que, quase sempre, tivessem por objetivo principal a catequese, ao contrário de outros expedicionários, que assumiam declaradamente o propósito de descobrir riquezas minerais em razão do lucro que trariam.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 166.
(2) Caminho do Mar.
(3) Onças.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., p. 165.
(5) Ibid., p. 167.
(6) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 72.
(7) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., p. 49.


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sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Como eram despachados os diamantes que iam para Portugal

Comboio de diamantes passando por Caeté, de acordo com M. Rugendas (¹)

Desde a descoberta de jazidas de diamantes no Brasil (no atual Estado de Minas Gerais), o Distrito Diamantino foi administrado com grande severidade. Durante algum tempo o governo português fez concessão do direito de exploração a particulares, porém mais tarde passou a administrar a área diretamente. O sistema de controle estrito durou décadas, cabendo ao Intendente, governante máximo naquele território, uma autoridade absoluta, desde que enquadrada nos regulamentos estipulados no famoso "Livro da Capa Verde", nome algo folclórico dado pelo povo ao Regimento Diamantino.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a administração direita pela Coroa foi um grande fracasso. Os métodos empregados na extração de diamantes eram arcaicos e, malgrado a vigilância que se alardeava onipresente, o contrabando atingia níveis altíssimos. Quem saberá dizer quanto diamante do Brasil terá chegado às casas especializadas na Europa, sem que deles a Coroa tivesse qualquer conhecimento?
No entanto, a burocracia campeava. Os diamantes oficialmente extraídos, quando de seu envio ao Reino, passavam por registro escrupuloso, conforme explicou Joaquim Felício dos Santos em suas Memórias do Distrito Diamantino:
"As partidas de diamantes extraídos eram remetidas para Lisboa pelo Rio de Janeiro em cofres fechados e lacrados na presença do intendente; de cada remessa se lavrava um termo no livro competente, destinado para esse fim. Deste termo se tiravam três cópias: uma que se remetia aos diretores, outra ao inspetor-geral do erário e outra que ficava em poder dos caixas para sua descarga." (²)
Devidamente escoltados por guarda numerosa, os diamantes saíam das Minas e eram levados ao Rio de Janeiro, de onde davam adeus à terra de origem. Pela administração equivocada, tamanha riqueza não fazia a prosperidade nem do Reino e nem do Brasil Colonial.

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio. Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1868, p. 173.


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quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Guido d'Arezzo, as notas musicais e uma lição de piano nada agradável

Não longe daqui uma menininha de sete anos martela, pela milésima vez, sua lição de piano. Bate as teclas com entusiasmo (ai!), e cantarola as notas, dizendo seus nomes com a duração correspondente. Ela não tem a menor ideia de que a nomenclatura das notas musicais nasceu na Idade Média, mais precisamente na virada do primeiro para o segundo milênio, quando um monge italiano, Guido d'Arezzo, quis tornar menos penosa a vida dos aprendizes e, para facilitar a memorização, usou um canto sacro antigo e muito conhecido, cuja composição é atribuída a Paulo Diácono (¹), o Hino a São João Batista, no qual os cantores pediam que o dito santo purificasse seus lábios para que pudessem cantar melhor:

Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Iohannes

Ut, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si... Com a pequena modificação de Ut para , feita séculos mais tarde por uma questão de eufonia (²), tem-se a nomenclatura adotada até hoje em boa parte deste planeta, embora não seja a única. 
Guido d'Arezzo foi um teórico muito influente, não só em seus dias, mas também nos séculos posteriores. Já mereceria aplausos, no entanto, ainda que só tivesse inventado os nomes das notas musicais.
A menina continua a torturar o piano. Miserere nobis...

(1) Paulo Diácono viveu no Século VIII; existe alguma controvérsia quanto à autoria do Hino a São João Batista que, convencionalmente, lhe é atribuída.
(2) Quem acha que isso não tem importância deve tentar solfejar usando Ut em lugar de .


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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Tarefas diárias impostas aos escravos

Escravo descansando,
de acordo com Thomas Ender (²)
Escravos, como se sabe, não recebiam salários (¹) pelo trabalho que faziam e, como é óbvio, nunca seriam demitidos se não fossem eficientes. Portanto, proprietários de escravos adotavam algumas estratégias para extrair de seus cativos a maior quantidade de trabalho possível, evitando que a falta de estímulo pecuniário tornasse indolentes os trabalhadores. 
Tarefas mínimas que deviam ser cumpridas a cada dia, ou, em alguns casos, semanalmente, eram estipuladas, e os leitores não terão dificuldade em imaginar o que sucedia ao escravo que não realizasse o trabalho requerido - disso falaremos mais adiante. Nos engenhos açucareiros do Brasil Colonial, por exemplo, as tarefas eram impostas durante o corte da cana, e, segundo Antonil, os senhores acenavam aos escravos com a possibilidade de algum tempo livre, tão logo realizassem a quota diária:
"Consta o feixe de doze canas, e tem por obrigação cada escravo cortar em um dia sete mãos de dez feixes por cada dedo, que são trezentos e cinquenta feixes, e a escrava há de amarrar outros tantos com os olhos da mesma cana, e se lhes sobejar tempo, será para o gastarem livremente no que quiserem, o que não se concede na limpa da cana, cujo trabalho começa desde o sol nascido até o sol posto, como também em qualquer outra ocupação que se não dá por tarefa." (³)
Também nos engenhos havia tarefa para os escravos encarregados de cortar a lenha que mantinha em funcionamento as caldeiras e outros equipamentos:
"Tem obrigação cada escavo de cortar e arrumar cada dia uma medida de lenha alta sete palmos e larga oito, e esta é também a medida de um carro, e de oito carros consta a tarefa." (⁴)
O procedimento de impor a cada escravo uma quota a ser extraída vigorou, como regra, nas minas, tanto de ouro como de diamantes. O problema é que em jazidas muito ricas era facílimo obter o "jornal", ou seja, a tarefa diária, enquanto que em outros lugares, com baixo rendimento, os cativos tinham grande dificuldade em dar conta daquilo que se considerava sua "obrigação". Embora venha de pouco depois da independência, uma explicação de Hércules Florence, relativa ao Diamantino, pode perfeitamente ser estendida à maior parte das regiões mineradoras no Período Colonial:
"Ora, como em parte alguma pode-se furtar tão facilmente como em minas, ainda debaixo dos olhos do próprio dono, podem os pretos sonegar diamantes, donde resulta que os mineiros se veem forçados ou a empregarem um feitor que os engana ou fixarem aos escravos um tanto por dia que obrigatoriamente eles têm que dar. Quase sempre segue-se o segundo alvitre, isto é, impor ao negro a obrigação de dar por semana um diamante de 4$800, devendo ele sustentar-se e vestir-se com o excedente que achar. Se encontrar uma pedra de grande valor, tanto melhor para ele, coisa rara contudo hoje, acontecendo muito pelo contrário não conseguir no trabalho, nem sequer com o que pagar o tributo ao senhor." (⁵)
Já na cafeicultura praticada desde as primeiras décadas do Século XIX, o trabalho era dividido em duas partes, sendo a primeira relacionada à manutenção ordinária do cafezal e a segunda relativa aos dias de colheita.
Em geral os grandes cafeicultores entendiam que cada escravo devia ser plenamente capaz de cuidar de pelo menos mil cafeeiros, limpando o mato, removendo galhos secos, etc. Foi o que observou Saint-Hilaire, ao viajar, pouco antes da Independência, pelo Vale do Paraíba: 
"Calcula-se que um negro possa cuidar de mil cafeeiros [...]." (⁶)
Mas esses eram tempos em que, por assim dizer, a cafeicultura brasileira ainda engatinhava. O aumento das áreas cultivadas levaria os proprietários a exigir mais de seus escravos, que deviam cuidar dos cafezais e também de outros cultivos que a fazenda porventura tivesse, de acordo com a Arte da Cultura e Preparação do Café:
"Importa muito que os cafeeiros sejam divididos em quadrados de mil pés, número que um trabalhador pode tratar facilmente, e um bom trabalhador pode mesmo cultivar dois mil pés de café, sem lhe ser penoso à cultura da demais lavoura." (⁷)
Vinha, então, a época de safra, e era aí que a tarefa diária era imposta também nos cafezais, conforme explicação do segundo Barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck:
"A colheita varia conforme a abundância da fruta; se esta for rara ou desigual, um apanhador não pode às vezes dar mais do que um a três alqueires (⁸); porém se for abundante ou tornar-se toda madura, então deve a tarefa passar a cinco, seis e sete alqueires." (⁹)
Para o mesmo autor, era importantíssimo que, a cada dia, fosse verificado o cumprimento da "obrigação" de cada escravo, daí ter concluído:
"Às horas de medir, que deve ser ao entrar do sol, o administrador deve estar presente a fim de fazer castigar aqueles que não deram a tarefa, que se deve graduar conforme o estado do café e as forças do indivíduo." (¹⁰)

(1) O fato de que alguns proprietários de escravos, para estimular o trabalho, ofereciam eventualmente pequenos prêmios em dinheiro, não caracteriza, em hipótese alguma, trabalho assalariado.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 44.
(4) Ibid., p. 60.
(5) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 200 e 201.
(6) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 119.
(7) CUNHA, Augustinho Rodrigues. Arte da Cultura e Preparação do Café. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1844, p. 33.
(8) O alqueire era uma medida antiga de capacidade (havia alqueire também para a medida de áreas), com valor variável de um lugar para outro. O chamado alqueire paulista equivalia a 40 litros. 
(9) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 52 e 53.
(10) Ibid., p. 53.


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