segunda-feira, 30 de junho de 2014

O padre Manuel da Nóbrega tinha dificuldade para falar

Nos primeiros tempos da catequese empreendida por jesuítas no Brasil o líder era o Padre Manuel da Nóbrega. Embora Anchieta tenha, posteriormente, se destacado, vale lembrar que este, ao vir ao Brasil, era ainda um jovenzinho inexperiente, enquanto Nóbrega era um religioso de elevada reputação, tanto pela severidade dos costumes como pelo zelo missionário. Não obstante, é a Anchieta que se deve, em grande parte, o que sabemos sobre a obra de Manuel da Nóbrega no Brasil, pois era ele, desde noviço, quem em geral escrevia, tanto cartas como outros registros.
Assim, sabemos, por exemplo, que o Padre Manuel da Nóbrega tinha muita dificuldade para falar, o que resultava em longas missas; além disso, como não compreendia bem o falar dos povos indígenas, precisava de um intérprete para ouvir confissões (!):
"Dizia sempre missa e como era muito gago, gastava de ordinário nela uma hora e ali se lhe comunicava muito Nosso Senhor. Era mui solícito no rezar do Ofício Divino, no qual usava sempre do companheiro pelo mesmo impedimento da língua; mas não bastava isso para deixar o ofício da pregação, o qual exercitava visitando as povoações dos portugueses a miúdo, ouvindo juntamente suas confissões e remediando a todos; e as de suas mulheres, filhos, escravos e índios livres ouvia por intérprete, enquanto os Irmãos línguas não eram sacerdotes." (¹)
Deve-se esclarecer que "irmãos línguas" eram religiosos que ainda não haviam recebido a ordenação sacerdotal, mas que conheciam bem a língua dos indígenas e, por isso, atuavam como intérpretes. Aliás, era usual, naqueles tempos, em meio ao falar diário do Português, chamar "língua" a qualquer um que atuasse como intérprete, independente do idioma. Isto se explica em outro trecho, da mesma memória sobre Nóbrega:
"Como os Padres sacerdotes não sabiam a língua da terra, serviam os Irmãos de intérpretes para as doutrinas e pregações e confissões, ainda dos mestiços, mulheres e filhos dos portugueses, principalmente nas confissões gerais, para melhor se darem a entender e ficarem satisfeitos." (²)
Concluímos, pois, com uma constatação que o trecho acima nos permite: se as mulheres (índias ou mamelucas) e seus filhos com portugueses não falavam Português, é porque em casa deviam falar apenas a língua indígena. Ora, como se sabe, foi assim mesmo em São Paulo, até ir bem adiantado o Século XVIII.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 476.
(2) Ibid., p. 478.


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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Para que se usava algodão no Brasil Colonial

Embora não fosse o produto agrícola prioritário - a cana-de-açúcar tinha a preferência - o algodão era também bastante cultivado nos tempos coloniais, para usos que talvez a maioria das pessoas nem suspeite.
Em fins do Século XVI Gabriel Soares escreveu, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, que "...em todos os anos se fazem grandes carregações de algodão, de que se dá muito na terra, do qual podem fazer grandes teais de pano grosso, que é muito bom para velas, de muita dura e muito leves, de que andam velejados os navios e barcos da costa [...]." (¹)
Não era esse, porém, o único uso do algodão que se produzia no Brasil. É verdade que a gente da Bahia, tendo recursos, amava vestir-se com tecidos finos, alardeando a sua condição de triunfadores dentro da estrutura colonial, mas havia aqueles que, ou por falta de recursos ou por não terem a liberdade da escolha, viam-se como que obrigados ao uso de vestuário confeccionado com tecido de algodão - um indício certo, na época, de baixa condição social. Seguimos com Gabriel Soares:
"Dentro na Bahia trazem muitos barcos as velas de pano de algodão que se fia na terra, para o que há muitas tecedeiras, que se ocupam em tecer teais de algodão, que se gastam em vestidos dos índios, escravos de Guiné e outra muita gente branca de trabalho." (²)
Será muito bom lembrar que, aqui, "vestir os índios" não se fazia por caridade cristã ou excesso de pudor. Nada disso. É que eram os indígenas escravizados em massa (ao contrário do que durante muito tempo se disse e ensinou), e eram vestidos inclusive como forma de assegurar que obedeceriam e viveriam segundo as regras dos colonizadores. Até porque, a crermos no testemunho de muitos religiosos daquele tempo, era bem sumária essa vestimenta fornecida aos índios, mesmo nos aldeamentos com propósitos missionários.

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 359.
(2) Ibid.


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quarta-feira, 25 de junho de 2014

Índios guaicurus - Parte 2

Os guaicurus estavam para a América do Sul como os comanches para a América do Norte. Ferozes e destemidos, afeiçoaram-se grandemente aos cavalos, animais que não eram nativos do Continente Americano (foram trazidos pelos colonizadores europeus) e que tanto comanches como guaicurus passaram a apreciar, desenvolvendo método próprio de conduzi-los. Se devemos crer em testemunhos de contemporâneos, pensavam que tinham pleno direito a todos os cavalos do Universo. Portanto, assumindo que os cavalos eram seus, nada mais justo que capturá-los de quem estivesse com eles. Não constituiria roubo. Os outros é que os roubavam...
Devemos, todavia, como já afirmei na postagem anterior, ser cautelosos, mesmo com relatos provenientes dos tempos coloniais. Tanto comanches quanto guaicurus tiveram as terras nas quais viviam sistematicamente ocupadas por colonizadores, que tinham voz, através de seus escritos, de modo que podemos, ainda hoje, saber seu ponto de vista nos confrontos com indígenas; já os nativos da América, muitos deles não dispondo de escrita e muito menos de registros sistemáticos, não deixaram testemunhos equivalentes aos dos colonizadores. É difícil, pois, estabelecer uma avaliação imparcial. Certo, mesmo, é que os confrontos foram sangrentos, tanto na América do Norte quanto na América do Sul.

*****

No Brasil do Século XIX os enfrentamentos entre gente de origem europeia e índios guaicurus já haviam diminuído bastante de intensidade, quando comparados a combates ocorridos no século precedente, durante o período das chamadas monções cuiabanas. Não obstante,  o relato feito por Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, é ainda muito similar aos que aparecem em obras mais antigas. Embora seja razoável supor que Florence tenha lido Ayres de Casal e outros autores, ele deveria ter também material de primeira mão a apresentar a seus leitores:
"Estão, com efeito, os anais de Mato Grosso cheios das traições desses infiéis. Errantes nas margens do Paraguai e Taquari e estendendo suas excursões em vastíssimo território, fizeram no princípio do descobrimento grande dano às monções que por entre eles passavam. Foram já por vezes até Camapuã e, não há muito tempo, arrebataram de lá perto de 500 cavalos. Costumam também entranhar-se pelo país dos caiuás e caiapós perto do Paraná, a fim de reduzi-los à escravidão."(¹)
"Não poupam em suas devastadoras correrias nem sequer os espanhóis das margens do Paraguai, indo mesmo em tempo de paz saquear-lhes as povoações, cujos despojos vendem aos brasileiros. Não sei se depois de pacificados continuam nessas práticas." (²)
Não deixa de ser curioso que um europeu, francês, supusesse que os indígenas da América tinham a obrigação de respeitar as fronteiras que representantes de países europeus (no caso, Portugal e Espanha), haviam combinado entre si ainda no Século XVIII. Aliás, fronteiras combinadas depois de uma quantidade de tratados e guerras... Isso demonstra o quanto pode ser difícil romper com a mentalidade reinante.

Guaicurus indo ao comércio com europeus, de acordo com Debret (³)

Segue H. Florence contando sobre uma menina branca que fora raptada e criada pelos guaicurus:
"Esses bárbaros levam tão longe a ousadia que não trepidam meter nos ferros da escravidão até os próprios espanhóis. Vi chegar a Cuiabá uma menina branca dessa nacionalidade e de 12 anos de idade, que o Tenente-Coronel Jerônimo tinha tirado de entre os guaicurus, onde vivia em cativeiro. Fora com a mãe raptada de sua aldeia natal no Paraguai, ainda criança de peito, ficara só no mundo e tomara todos os hábitos dos índios, cuja língua se tornara a dela." (⁴)
Finalmente, passa a tratar da notável habilidade que havia levado os colonizadores a atribuírem aos guaicurus o apelido de “gentio-cavaleiro”:
"Os guaicurus são todos cavaleiros e bons corredores. Possuem numerosa cavalhada roubada aos espanhóis ou criada nos campos. Às vezes vão vender em Cuiabá animais de sela por 9$000 ou 10$000. Há índios que têm dois, três e mais. Montam na anca, o que faz com que usem de rédeas muito compridas." (⁵)
Nesse aspecto é possível outra comparação entre guaicurus e comanches: aos europeus e/ou seus descendentes causava estranheza o método pelo qual os indígenas controlavam e conduziam os cavalos.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 83.
(2) Ibid., pp. 83 e 84.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) ,FLORENCE, Hércules. Op. cit., p. 84.
(5) Ibid., p. 84.


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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Índios guaicurus - Parte 1

Os guaicurus estavam entre os indígenas mais temidos do período colonial - a própria menção a seu nome era suficiente para provocar calafrios entre os monçoeiros, que eram frequentemente por eles atacados - era o "gentio cavaleiro", como então se dizia, gente que montava de um modo estranho, ao menos segundo as regras de equitação seguidas por europeus e seus descendentes. Não causa espanto, pois, que Ayres de Casal não tivesse, sobre esses indígenas, uma visão lá muito favorável, como, de resto, não a tinham muitos dos autores da época sobre quaisquer dos povos nativos da América:
"São os guaicurus de mediana estatura, bem feitos, sadios, nutridos, e ao parecer adaptados a qualquer trabalho penoso; mas poltrões. Comem muitas vezes no dia, e mui devagar; seus manjares são muito cozinhados e sem asseio. Jamais padecem indigestões. É notável a dieta de que usam nas suas raras moléstias. Jamais apareceu um escorbutado entre eles, nem memória de mortes repentinas.
[...].
Pintam o corpo com tinta de urucum e jenipapo, no que guardam assaz de simetria. No cabelo os moços não têm uso certo; os velhos trazem a cabeça rapada em roda à semelhança dos leigos franciscanos. As mulheres também rapam a cabeça em redondo e despontam o cabelo [...]." (¹)
Depois, prossegue o padre Ayres de Casal:
"Os homens cuidam na caça, pesca, em tirar mel, frutas silvestres, palmitos, dos cavalos, feitura de armas e canoas [...]; as mulheres fiam, tecem panos e cintas de algodão, fazem cordas, louça e esteiras. Ambos os sexos se ocupam igualmente no mister da cozinha." (²)

Carga de cavalaria guaicuru, de acordo com Debret (³)

E, se devemos crer no que escreveu Ayres de Casal, não era apenas com os portugueses colonizadores que os célebres guaicurus entravam em confronto:
"São tão soberbos que a todas as nações dos gentios confinantes tratam com desprezo; a todas fazem crua guerra, sendo delas de alguma sorte respeitados e temidos pela vantagem que têm na cavalaria e armas de que usam [...]." (⁴)
Lembro aqui, no entanto, que, sem escrita, os guaicurus não deixaram seus próprios relatos para que pudéssemos compará-los aos dos colonizadores. De qualquer modo, percebe-se que havia interesses conflitantes: europeus e seus descendentes buscavam explorar novos territórios e riquezas, não importando, muitas vezes, os métodos empregados na execução de seus projetos; populações indígenas aí anteriormente estabelecidas sentiam-se ameaçadas e viam os colonos como invasores, passando então à defesa e/ou tomando a iniciativa do ataque. Nada muito diferente do que tem ocorrido em boa parte da história da humanidade neste planeta. Como sempre, quem tinha melhores armas acabou levando vantagem - não sem muitas perdas, porém.

(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica,  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 277.
(2) Ibid., pp. 278 e 279.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) CASAL, Manuel Ayres de. Op. cit., p. 279.


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sexta-feira, 20 de junho de 2014

O cofre do Juizado de Órfãos

As Ordenações do Reino - legislação portuguesa compilada e publicada no início do Século XVII - determinavam que, se um homem morresse e deixasse herdeiros ainda legalmente menores, podiam ficar os bens a cargo da mãe, se esta, segundo os magistrados, tivesse capacidade para tanto. Se não fosse esse o caso, era então indicado um tutor, que se encarregaria de gerir os negócios dos herdeiros até que, ainda segundo as leis da época, chegassem à idade de fazê-lo por si mesmos.
Ocorre que, às vezes, entendiam os magistrados que era mais adequado converter os bens em dinheiro, que deveria ser aplicado para assegurar que o patrimônio dos órfãos não sofresse dano. É aí que entra o tal cofre ou arca do Juizado de Órfãos. Dizia o Livro Primeiro das Ordenações, no Título LXXXVIII, § 31 (¹):
"Mandamos que o dinheiro dos órfãos se deposite em uma arca com três chaves, em poder de um depositário, pessoa abonada, que haverá em cada cidade, vila e concelho." (²)
E prosseguia, com mais detalhes, no § 32:
"... E mandará fazer à custa do dinheiro dos órfãos uma arca com três chaves de diferentes guardas, das quais terá o Juiz dos Órfãos uma, o Depositário outra e o Escrivão dos Órfãos outra; [...] E o escrivão que tiver a dita chave, terá na arca dois livros, um para a receita e outro para a despesa do dinheiro que se houver de meter e tirar dela, os quais livros serão encadernados e de tantas folhas e intitulados um como o outro, e as folhas serão contadas e assinadas, segundo forma de nossas Ordenações, sob as penas nelas conteúdas, e serão assinadas pelo provedor da Comarca, os quais livros não se tirarão da arca, senão quando se neles houver de escrever."
Em São Paulo, nos tempos do Brasil Colonial, as mesmas Ordenações deveriam estar em vigor (às vezes, acontecia...). Portanto, tinha São Paulo seu próprio cofre do Juizado de Órfãos, com suas três chaves, de acordo com Pedro Taques de Almeida Paes Leme (³), pelos menos a partir de começos do Século XVIII:
"João Dias da Silva, foi nobre cidadão de São Paulo, em cuja república teve grande parte e voto respeitoso nas matérias do governo civil ou do real serviço, tratando-se por assembleia. Foi juiz de órfãos por provisão de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, pela qual tomou posse em 16 de julho de 1711, e estando servindo teve provisão régia para servir até haver proprietário, e nela se faz menção de ser o dito João Dias o que mandou fazer cofre de três chaves para segurança dos órfãos."
Ora, sucede que, em grande parte do Brasil daqueles tempos, havia um problema crônico de falta de dinheiro amoedado, que obrigava a população a viver fazendo trocas diretas de mercadorias. Um grave inconveniente, é claro, que tornava o acesso ao Cofre dos Órfãos, onde havia "dinheiro de verdade", um privilégio muito disputado. É o que conta Affonso de E. Taunay:
"O pouco dinheiro amoedado se concentrava nas mãos de alguns argentários e no cofre de órfãos, cujo papel na vida econômica do burgo pode ser comparado servatis servandis ao dos estabelecimentos bancários hodiernos.
Quase sempre os bens dos herdeiros menores são vendidos em praça, a fim de se evitarem "descaminhos e defraudos", e o produto aplicado em empréstimos vencendo juros de 8% ao ano. Obrigava o prestamista sua pessoa e bens móveis e de raiz havidos e por haver, comprometendo-se a pagar a dívida ao pé do juízo, no cabo e fim de um ano, sem contradição alguma e sem a isto pôr dúvida nem embargo algum. Os empréstimos exigiam ainda a garantia pessoal de um fiador e principal pagador. Tão disputado o numerário que nunca permanecia no cofre do juízo, aparecendo logo quem o pretendesse." (⁴)
Vê-se, pois, que do dinheiro dos órfãos era feito um grande negócio, principalmente em São Paulo, na qual a morte de homens com filhos menores não era nada incomum. Metiam-se os pais interior adentro para apresamento de índios ou procura de ouro, e muitas vezes tudo o que voltava eram os ossos em um saco de couro, para sepultamento em alguma igreja; a morte de mulheres no parto era coisa corriqueira, de modo que, ao longo da vida, não raro um homem casava-se várias vezes, e seguia tendo filhos enquanto conseguia, o que resultava, eventualmente, em homens bastante velhos com filhos muito pequenos e, daí, uma orfandade precoce; as doenças, na época, levavam muita gente à morte por absoluta falta de tratamento. Disso se conclui que o número de órfãos não era assim tão exíguo. Por outro lado, como deveria ser pobre a povoação em que uma parte substancial do dinheiro amoedado disponível provinha, muitas vezes, do Cofre do Juizado de Órfãos!

(1) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Concelho (sim, com "c"), nome dado à divisão municipal portuguesa.
(3) De acordo com a Nobiliarchia Paulistana.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 115.


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quarta-feira, 18 de junho de 2014

Os jesuítas, o Colégio da Bahia e a instrução no Brasil Colonial

Ao empreenderem a catequese no Brasil, os primeiros jesuítas que vieram do Reino encontraram grandes dificuldades. Não tinham ainda na terra qualquer estabelecimento, desconheciam completamente a língua e a cultura da população nativa e alguns dos recém-chegados missionários acabaram por contrair doenças sérias.
Quem quer que leia o relato de Anchieta sobre as condições do primeiro colégio em Piratininga (São Paulo) facilmente perceberá que os padres, por vezes, viviam em grande penúria. É até surpreendente que alguns tenham escapado com vida em situações de confronto com indígenas. Fosse como fosse, porém, gradualmente a Companhia de Jesus chegou a lançar raízes na América, de modo que melhores casas para os religiosos foram estabelecidas, à medida que se firmava a reputação dos padres como educadores e catequistas. Alguns religiosos alcançaram ótima compreensão da “língua geral”, falada e entendida por indígenas do litoral, de modo que o ensino religioso podia ser feito mais facilmente. Chegou-se, na época, a haver publicação de gramática, esperando-se dos padres que se aplicassem em aprender o “grego da terra”, indispensável, por exemplo, para ouvir confissões dos que eram adicionados ao “grêmio da Igreja”.
Se devemos crer no que escreveu Gabriel Soares, antes mesmo do fim do Século XVI já os jesuítas viviam em boas condições na Bahia, pelo que se depreende deste relato, no qual descreve o Colégio que então tinham na primeira capital do Brasil:
"Tem este Colégio ordinariamente oitenta religiosos, que se ocupam em pregar e confessar alguma parte deles, outros ensinam latim, artes, teologia e casos de consciência, com o que tem feito muito fruto na terra; o qual está muito rico, porque tem de Sua Majestade cada ano quatro mil cruzados [...], e importar-lhe-á a outra renda que tem na terra outro tanto; porque tem muitos currais de vacas, onde se afirma que trazem mais de duas mil vacas de ventre, que nesta terra parem todos os anos, e tem outra muita granjearia de suas roças e fazendas onde tem todas as novidades dos mantimentos, que se na terra dão em muita abastança." (*)
Uma crítica que se faz aos jesuítas enquanto educadores é que seu currículo era demasiadamente teórico, enquanto o Brasil Colonial precisava desesperadamente de mestres de ofícios práticos; afinal, latim e teologia podiam ser úteis para formar novos religiosos segundo os valores europeus, embora fossem, talvez, menos urgentes na América. Meninos portugueses que iam aos colégios obtinham instrução que deveria ser completada na Europa, mas poucos teriam condições de fazê-lo. Ainda assim, há que se valorizar o trabalho dos jesuítas como alfabetizadores, mesmo que, pelo menos entre os brancos, tal obra se restringisse a crianças do sexo masculino. Com raríssimas exceções, as meninas brancas da colônia eram absolutamente ignorantes de tudo que não dissesse respeito aos rudimentos do catolicismo e aos trabalhos domésticos.
Diante disso, não faltou quem atribuísse o enorme desamor de muitos brasileiros às profissões manuais e/ou mecânicas à educação ministrada pelos jesuítas nos tempos coloniais. Mas já, aí, há um certo exagero. Essas deficiências de mentalidade podem ter (e quase sempre têm) origens remotas, mas nada as obriga à persistência, quando se sabe, conscientemente, que devem mudar, mesmo porque, tão forte quanto a valorização das chamadas “artes liberais”, no sentido de desestimular o interesse pelo trabalho manual, era o ininterrupto e eloquente discurso da escravidão, que berrava a todo homem livre que trabalho era coisa de escravo.
Quanto aos jesuítas, não levaria muito tempo para que seu número se tornasse insignificante diante do crescimento da população, espalhada, além disso, pelo enorme território da Colônia. Simplesmente não havia padres-professores suficientes para atender à instrução básica das crianças em todas as cidades e vilas. Não surpreende, pois, que o mais crasso analfabetismo imperasse, a ponto de ser difícil, até, nomear quem exercesse o cargo de escrivão.

(*) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 121.


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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Uma virtude de Duarte da Costa, segundo governador-geral do Brasil

Se procurarmos em livros didáticos de História do Brasil, não teremos muita dificuldade em encontrar referências a Duarte da Costa, o segundo governador-geral, como sendo homem pouco apto à direção da Colônia. É bastante provável que essa ideia derive do fato de ter ocorrido, em seu governo, a invasão francesa no que hoje chamamos Rio de Janeiro e, como a expulsão dos "intrusos" só aconteceu no governo-geral seguinte (o de Mem de Sá), ficou Duarte da Costa com a má fama. Acrescente-se a isso o fato ter tido indisposições com autoridades eclesiásticas, particularmente o Bispo D. Pero Fernandes Sardinha (as intrigas com o clero eram muito frequentes na Colônia - não escasseavam as "disputas de precedência"), e ter-se-á o caldo de cultura ideal para o mau conceito que fazem de Duarte da Costa muitos livros com os quais se pretende ensinar História à criançada.
Repete-se e repete-se a mesma coisa, sem muita preocupação com que sejam verificadas outras e melhores fontes.
Frei Vicente do Salvador, cujo manuscrito da História do Brasil deve ter sido concluído por volta de 1627, viveu bem mais perto do tempo de Duarte da Costa que nós, gente que somos do Século XXI (¹). Sucede que o religioso parecia ter do governante uma visão bem mais favorável do que aquela que popularmente hoje se tem. Escreveu:
"Teve Dom Duarte da Costa, além de ser grande servidor de El-Rei, uma virtude singular, que por ser muito importante aos que governam não é bem que se cale, e é que sofria com paciência as murmurações que de si ouvia, tratando mais de emendar-se que de vingar-se dos murmuradores, como lhe aconteceu uma noite, que andando rondando a cidade (²), ouviu que em casa de um cidadão se estava murmurando dele altissimamente, e depois que ouviu muito lhes disse de fora: Senhores, falem baixo, que os ouve o Governador. Conheceram-no eles na fala, e ficaram mui medrosos que os castigaria, mas nunca mais lhes falou nisso, nem lhes mostrou ruim vontade ou semblante." (³)
Admitamos: se isso já seria incomensurável virtude política em uma democracia, que dizer em tempos de absolutismo? Era, a esse respeito, muito virtuoso, portanto, o homem.

(1) Duarte da Costa foi governador-geral entre 1553 e 1557.
(2) Era então a capital do Brasil chamada Cidade da Bahia; hoje a chamamos Salvador.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, c. 1627.


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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Duas aranhas na literatura brasileira

Não sei quantas aranhas aparecem na literatura brasileira; tampouco sei se as há personagens importantes ou insignificantes. Só sei que conheço duas. Vamos a elas.
Vem a primeira de ninguém menos que Machado de Assis, em Quincas Borba:
"Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre."
Ouve? Talvez por preguiça de mover-se a outro lugar; talvez goste. Como saber se Machado tinha razão?
Já a segunda aranha (que também, por suposto, nada devia saber de Mozart, nem de músico algum...), aparece em Os Bruzundangas, de Lima Barreto. Ora, na Bruzundanga, país fictício com notáveis semelhanças com um outro bem real, uma aranha deu-se à veleidade de fazer teia no gabinete de um ministro de Estado - pretexto para o autor discorrer sobre a enorme importância de um secretário de ministro de Estado:
"Creio que as aranhas, tanto as daqui como as da Bruzundanga, não têm em grande conta o cargo de Ministro de Estado. É de lastimar que insetos [sic] de tanto talento desconheçam a importância de tão sublimado bímano; entretanto, não está nos poderes humanos obrigá-las a respeitar o que respeitamos, senão devíamos fazê-lo, para que tais aracnídeos não procedessem como um deles procedeu irreverentemente com um ministro da Bruzundanga."
Sim, sim, sim, aranhas são classificadas entre os aracnídeos, não entre os insetos, embora tanto aracnídeos como insetos sejam artrópodes. Uma vez salvo o patrimônio lineano, é hora de abrir passagem a Lima Barreto para que venha nos contar o tal incidente:
"Caso foi que uma aranha comum, totalmente despida de qualquer notoriedade entre as aranhas, completamente sem destaque entre as suas iguais, teve o desaforo de pôr-se a tecer a sua teia no próprio teto do gabinete de um ministro da Bruzundanga e bem por cima de sua majestosa cadeira.
Houve, quando o trabalho ia adiantado, não sei que espécie de cataclismo, próprio ao universo das aranhas; e, tão forte foi ele, que um bom pedaço de labor do engenhoso articulado veio a cair em cima da sobrecasaca da poderosa autoridade da República da Bruzundanga.
Apesar do seu imenso poder e da sua forte visão de seguro guia de povos, o grave ministro não deu conta do desrespeito - involuntário, é verdade, mas desrespeito - de que acabava de ser objeto, por parte de uma miserável aranha, hedionda e minúscula.
Mas, não dando pelo fato, tratou de tomar o coupé para ir ao despacho coletivo, levando tão estranha condecoração nas costas, quando o secretário, chapéu na mão, todo mesuroso, pedindo licença, tirou a prova da indignidade do bichinho das vestes do seu amo. E ele já entrava no carro!...
[...] Ah!, Os secretários de ministro! Como são úteis!"
Lima Barreto escreveu nos tempos da República Velha, nos tempos em que a Capital (do Brasil, não da Bruzundanga) estava junto ao mar, nos tempos em que ministro de Estado tomava "coupé para ir ao despacho coletivo". Na Bruzundanga, é claro!
Como veem, senhores leitores, eram mesmo outros tempos.
Quase onipresentes, no entanto, as aranhas continuam a ouvir Mozart (talvez com menos frequência, infelizmente) e, cem anos mais tarde, talvez ainda sejam bastante atrevidas parar irem tecer suas moradias em lugares insólitos.


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quarta-feira, 11 de junho de 2014

As ocas, habitações coletivas dos indígenas do Brasil

Tendo percorrido as missões jesuíticas na Bahia durante a década de oitenta do Século XVI, o Padre Fernão Cardim escreveu um interessante relato, a ser entregue ao Provincial da Ordem em Portugal, no qual inclui informações preciosas sobre um mundo que ia desaparecendo à medida que a colonização avançava: o dos povos indígenas sem nenhuma influência do contato com europeus.
Assim, descreve, por exemplo, como era uma habitação coletiva dos indígenas, antes que os nativos fossem aldeados em missões, sob a liderança dos padres da Companhia:
"Moravam os índios antes da sua conversão, em aldeias, em umas ocas ou casas mui compridas, de duzentos, trezentos ou quatrocentos palmos, e cinquenta de largo, pouco mais ou menos, fundadas sobre grandes esteios de madeiras, com as paredes de palha ou de taipa de mão, cobertas de pindoba, que é certo gênero de palma que veda bem água, e dura três ou quatro anos; cada casa destas tem dois ou três buracos sem portas nem fecho [...]." (¹)
Não tendo os índios sua própria escrita, não deixaram relatos próprios. Temos, portanto, que contar apenas com relatos de europeus. Os jesuítas, porém, estavam, nesse sentido, em situação privilegiada, já que tinham maior contato com a população nativa que outros colonizadores e, embora não deixassem de fazer suas descrições sob a ótica de europeus e religiosos, podem ser considerados confiáveis em muito do que escreveram. Não podemos, todavia, supor que todos os povos indígenas tivessem o mesmo tipo de moradia - a descrição de Cardim refere-se, naturalmente, apenas àquilo que ele conhecia.
Um fato que se destaca nessa descrição de uma oca, feita pelo Padre Cardim, é que, como habitação, não podia durar muito. Ora, sendo os índios nômades, isso não era um grande problema, pois fariam outra(s) quando se mudassem; ou já se mudavam porque as habitações se estragavam?
Segue o depoimento de Cardim, com uma descrição do interior das habitações indígenas que conheceu:
"Dentro nelas vivem logo cem ou duzentas pessoas, cada casal em seu rancho, sem repartimento nenhum, e moram duma parte e outra, ficando grande largura pelo meio, e todos ficam como em comunidade, e entrando na casa se vê quanto nela está, porque estão todos à vista uns dos outros, sem repartimento nem divisão; e como a gente é muita, costumam ter fogo de dia e de noite, verão e inverno, porque o fogo é sua roupa, e eles são mui coitados sem fogo." (²)
Pode sorrir, leitor; essas expressões antigas são, às vezes, muito divertidas. Mas prossigamos.

Ritual de sepultamento em aldeia indígena, vendo-se nela as longas ocas (⁵)

Para os europeus foi surpreendente constatar que os indígenas tinham poucas coisas que consideravam suas próprias - as armas estavam entre os poucos pertences individuais. Quase tudo era de uso coletivo e, por isso, de difícil compreensão para os colonizadores. A própria vida em comunidade, tão diversa daquela experimentada na Europa sob o conceito da propriedade privada, causava espanto, como podemos facilmente depreender do que escreveu Cardim:
"Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros comem, outros fazem farinhas e vinhos, etc. e toda a casa arde em fogos; porém é tanta a conformidade entre eles, que em todo ano não há uma peleja, e com não terem nada fechado não há furtos; se fora outra qualquer nação, não puderam viver da maneira que vivem sem muitos queixumes, desgostos e ainda mortes, o que se não acha entre eles." (³)
Nos aldeamentos dos jesuítas na Bahia essas moradias foram preservadas, conforme assevera Cardim: "Este costume das casas guardam também agora depois de cristãos" (⁴). Não foi o que ocorreu nas reduções no sul do Brasil, nas quais os índios aldeados eram levados a viver segundo uma estrutura quase monástica, habitando cada casal uma pequena casa que era parte de uma aldeia onde toda a rotina se regulava pela estrita disciplina dos padres.

(1) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 36.
(2) Ibid..
(3) Ibid., pp. 36 e 37.
(4) Ibid.,, p. 37.
(5) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 9 de junho de 2014

Uso de mantilha no Vale do Paraíba na segunda metade do Século XIX

Nos tempos coloniais era costume, em muitos lugares do Brasil, que as mulheres consideradas "honestas" apenas saíssem em público se estivessem quase completamente cobertas por mantilhas ou biocos. A tradição, provavelmente vinda de Espanha e com origem mourisca, perdurou, e, já no começo do Século XIX, Saint-Hilaire, naturalista francês, observou com horror que, em vários lugares, era ainda assim que as mulheres se apresentavam, principalmente quando iam às igrejas.
Velhos costumes têm, no entanto, dificuldade em sair de cena.
No início da década de sessenta do Século XIX o tal costume ainda tinha lugar em áreas do Vale do Paraíba, que era, na época, região econômica importante por sua produção de café. Augusto-Emílio Zaluar observou-o em Lorena e Taubaté, na Província de São Paulo.
Sobre a conduta para com as visitas, notou em Lorena que "...as senhoras raramente aparecem na sala, onde os homens somente recebem as visitas e conversam para entreter o tempo. Esses costumes ir-se-ão perdendo pouco a pouco (¹), como já vão desaparecendo as mantilhas (²), que apenas figuram hoje para ocultar as rugas de alguma matrona sexagenária, ou são usadas pela gente das classes menos abastadas." (³)
Escreveu depois sobre Taubaté:
"Em Taubaté ainda se usa muito de mantilhas, não só na classe baixa como entre algumas senhoras mais distintas.
Este gênero de trajo e o aspecto sombrio da cidade concorrem para dar à povoação um certo cunho de vetustez, que faz lembrar algumas cidades espanholas e os costumes severos dos séculos anteriores." (⁴)
No caso de Taubaté, ao contrário do que observara em Lorena, o uso de mantilha não se restringia às idosas e às mulheres de baixo estrato social.
Não é preciso dizer que mantilhas e biocos perderam sua utilidade há muito tempo. Apenas fica a questão: As razões que impunham seu uso desapareceram ou ainda passeiam por aí, sob outros disfarces?

(1) Nisso, estava certíssimo.
(2) Desapareceram, mas muito tarde.
(3) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, p. 109.
(4) Ibid., p. 158.


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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Quem ia procurar ouro nas Minas?

A população que vivia nas regiões mineradoras do Brasil Colonial


A notícia de que se achara ouro no Brasil - não no litoral, ou perto dele, mas no interior - espalhou-se rapidamente. O Século XVII ia chegando ao fim e a situação da tesouraria real em Lisboa não era das melhores (grande novidade...). O próprio rei assumia esse fato, em carta a seus leais vassalos no Brasil, nas quais mandava procurar ouro, por estar "exausta a sua fazenda". Acenava com honrarias, já que outra coisa não poderia ser.
As leis sobre o direito de exploração das minas eram parte das Ordenações do Reino, mas diante da avalanche humana que correu ao interior do Brasil no rumo da miragem do ouro pouco podia uma lei distante que ninguém estava muito interessado em respeitar. Não espanta, pois que, quando finalmente Portugal resolveu tomar as rédeas da mineração, mandando governantes, estabelecendo jurisdições e impondo a criação de casas de fundição que assegurassem a quintagem do metal precioso, pipocassem rebeliões contra a autoridade lusa, como a Revolta de Filipe dos Santos, por exemplo, em 1720.
Vale observar que a Revolta de 1720 não foi, como já se tentou fazer crer, um movimento nativista que precedeu a luta pela Independência. Ao que tudo indica, Filipe dos Santos era português, e chegou a Vila Rica como tantos outros que sonhavam com riqueza. A rebelião aconteceu porque o representante luso, Conde de Assumar, simplesmente procurou impor a disciplina das leis, aliás bastante duras, mas que não eram muito diferentes no resto do mundo daquela época.
O que nos interessa, agora, é saber quem eram as pessoas que acorriam, em multidões, às minas. Temos uma boa descrição em Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas, de André João Antonil:
"Cada ano vem nas frotas quantidade de portugueses e estrangeiros para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos, pretos e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa." (*)
É fácil perceber que, na ânsia febril de enriquecer, havia gente de toda e qualquer situação arriscando tudo para tentar a sorte nas minas. Até mesmo os religiosos, que se supunha dedicados a propósitos menos ligados à materialidade, estavam dispostos à aventura do ouro, ainda que isso significasse o sacrifício dos votos que haviam feito.
Essa era a gente das minas. Dessa gente se fez a primeira sociedade verdadeiramente urbana do Brasil, ainda que um tanto mutante: no dizer de Antonil, "como os filhos de Israel no deserto". Povoações surgiam, desordenadamente, quase de um dia para outro, aonde se anunciava um terreno promissor; declinavam igualmente rápido os povoados, sempre que as esperanças eram frustradas. Desnecessário é dizer o quão difícil era manter a ordem em tais lugares, nos quais os crimes mais absurdos viravam coisa corriqueira. Ao mesmo tempo, a riqueza arrancada da terra inspirava em gente devota o desejo de expressar, na construção de igrejas, o sentimento de gratidão.
Alguns desses ajuntamentos acabaram persistindo, tornaram-se cidades e vilas importantes, desenvolveram a cultura e a arte, bem como um estilo de vida próprio. Permanecem até hoje, como um testemunho do que a humanidade pode ter de melhor e de pior.

(*) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 136 e 137.


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quarta-feira, 4 de junho de 2014

Lutero e o comércio de especiarias

Martinho Lutero é bem conhecido como um dos expoentes da Reforma Protestante do Século XVI. O que talvez poucos saibam é que, até mesmo em algumas de suas obras de caráter eminentemente religioso, costumava ele dar seus palpites sobre questões relacionadas à economia e à política - o que mostra, afinal, uma pessoa de interesses variados.
Assim, em Von den guten Werken (Sobre as Boas Obras), datado de 1520, aparece uma observação sobre o crescente comércio de especiarias do Oriente em terras alemãs.
Habituados à lógica da economia de nossos dias, na qual a Alemanha se destaca e, pelos menos nos últimos tempos, os países ibéricos enfrentam sérios problemas, talvez esse pequeno trecho escrito por Martinho Lutero nos pareça surpreendente. Vale lembrar, porém, que nas primeiras décadas do Século XVI Portugal era, em questões econômicas, o "dono da força", em decorrência, entre outros fatores, do lucrativo comércio de especiarias do Oriente. Comerciantes lusos tiveram lucros altíssimos, (ainda que efêmeros), despejando um mundo de temperos nas praças comerciais de países que não negociavam diretamente com os mercados fornecedores de especiarias.
Justamente por isso é que Lutero observou:
"Através de temperos, especiarias e coisas semelhantes, sem as quais os homens podem viver muito bem, não é pequena a perda de riqueza temporal que diariamente ocorre em nossas terras."
Vejam, leitores, que Lutero não estava discutindo o sabor das especiarias. O que questionava era o peso econômico que representavam para os alemães, desde que dar mais sabor à comida havia se tornado moda na Europa. Na lógica de Lutero, o comércio, a cada dia, drenava recursos da Europa do Norte para a Península Ibérica. Como os do Norte não tinham, naquele momento, nada equiparável às especiarias para oferecer, o dinheiro ia embora e não voltava mais. Portanto, os alemães ficavam mais pobres e os ibéricos, mais ricos. Notem, era tão somente a lógica do mercantilismo em ação.
Entende-se a fúria pelas especiarias. A comida na Idade Média era desgraçadamente sem sabor. Não havia muitas opções para quem ousasse tentar um prato mais sofisticado. As pessoas comiam sem nada daquilo que hoje chamamos de "boas maneiras", sem a menor compostura. Garfo e faca, de uso individual? Nem pensar, usavam-se as mãos, mesmo, para ir arrancando nacos de carne do animal que era servido...
Os cruzados que foram, em guerra, à chamada "Terra Santa", descobriram um sem-número de pequenos luxos entre os habitantes do Oriente. Como a vida ficava mais simpática com boas roupas, comidas saborosas, perfumes e outras coisinhas mais! Logo, nem era preciso criar um desejo de consumo - ele já existia.

Especiarias (canela, cravo e pimenta)
Antes das navegações pelo Atlântico e Índico, as especiarias vinham da Ásia à Europa por rota terrestre, sendo transportadas, pacientemente, nas costas de camelos e de outros animais de carga. Compreende-se que, nessas condições, a quantidade de especiarias disponível nos mercados europeus era pequena e seu preço, obviamente, muito elevado. Pouquíssimas pessoas tinham acesso a elas, e não chegavam, pois, a ser problema para a economia de nenhuma nação.
Dificilmente se poderá medir a importância da chegada de Vasco da Gama à Índia em maio de 1498. Teve, salvaguardadas as proporções possíveis à época, o impacto de uma verdadeira revolução. Nada mais de mesquinhas quantidades de especiarias. Os navios vinham carregados delas, os lucros dos que investiam nessas viagens podiam chegar a uns 3.000 % (isso mesmo, três mil) e, pela quantidade em que eram oferecidas, tornavam-se artigos disponíveis e cobiçados até pelas nascentes camadas médias urbanas da Europa. Ainda eram caras, mas era coisa de que todo mundo gostava e que desejava ostentar à mesa. Entende-se, pois, que a mentalidade monástica de Lutero visse nisso tudo um enorme desperdício. Era muito mais razoável, raciocinava ele, que os laboriosos alemães continuassem a viver frugalmente, poupando seu dinheiro, em lugar de fazer a alegria de comerciantes de especiarias que levavam embora o ouro dos países do norte da Europa.
Como se sabe, todavia, a festa das especiarias não iria durar eternamente. O dinheiro que elas trouxeram não foi empregado maciçamente em investimentos produtivos. Não demoraria muito e a economia lusitana ver-se-ia dependente da vigorosa industrialização britânica. Bem antes disso, porém, pelo menos para Portugal, o foco mudaria das Índias para o Brasil, fazendo com que, na colônia sul-americana, a procura por ouro e outras riquezas minerais virasse uma obsessão.


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segunda-feira, 2 de junho de 2014

Como se vestiam os habitantes de Salvador em fins do Século XVI

Não são poucos os autores que, no Período Colonial, criticavam a mania de ostentar luxo entre os habitantes da primeira capital do Brasil, a Cidade da Bahia, hoje chamada Salvador. Religiosos, em suas pregações nas igrejas, invectivavam as vaidades; autores de obras de caráter moral faziam o mesmo.
Ora, se devemos crer no que escreveu Gabriel Soares, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, padres e escritores estavam gastando, respectivamente, saliva e tinta à toa. Senão, vejamos:
"Há na Bahia mais de cem moradores que têm cada ano de mil cruzados até cinco mil de renda, e outros que têm mais, cujas fazendas valem vinte mil até cinquenta e sessenta mil cruzados [...], os quais tratam suas pessoas mui honradamente, com muitos cavalos, criados e escravos, e com vestidos demasiados, especialmente as mulheres, porque não vestem senão sedas, por a terra não ser fria, no que fazem grandes despesas, mormente entre a gente de menor condição." (¹)
Compreende-se: muita gente chegava do Reino em grande pobreza, sonhando enriquecer na Colônia; aqueles que porventura alcançavam a realização de suas ambições, não tardavam em alardear prosperidade. Faziam-se notar como vencedores.
Sucede, no entanto, que a mania de grandeza contaminava praticamente toda a sociedade da capital colonial, e até mesmo gente de baixo estrato social fazia questão de pavonear-se em público:
"Qualquer peão anda com calções e gibão de cetim ou damasco, e trazem as mulheres com vasquinhas e gibões do mesmo, os quais, como têm qualquer possibilidade, têm suas casas mui bem concertadas e na sua mesa serviço de prata, e trazem suas mulheres mui bem ataviadas de joias de ouro." (²)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 125.
(2) Ibid.


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