Os guaicurus estavam entre os indígenas mais
temidos do período colonial - a própria menção a seu nome era suficiente para
provocar calafrios entre os monçoeiros, que eram frequentemente por eles
atacados - era o "gentio cavaleiro", como então se dizia, gente que montava de um modo estranho, ao menos segundo as regras de equitação seguidas por europeus e seus descendentes. Não causa
espanto, pois, que Ayres de Casal não tivesse, sobre esses indígenas, uma visão
lá muito favorável, como, de resto, não a tinham muitos dos autores da
época sobre quaisquer dos povos nativos da América:
"São os guaicurus de mediana estatura,
bem feitos, sadios, nutridos, e ao parecer adaptados a qualquer trabalho
penoso; mas poltrões. Comem muitas vezes no dia, e mui devagar; seus manjares
são muito cozinhados e sem asseio. Jamais padecem indigestões. É notável a
dieta de que usam nas suas raras moléstias. Jamais apareceu um escorbutado
entre eles, nem memória de mortes repentinas.
[...].
Pintam o corpo com tinta de urucum e
jenipapo, no que guardam assaz de simetria. No cabelo os moços não têm uso
certo; os velhos trazem a cabeça rapada em roda à semelhança dos leigos
franciscanos. As mulheres também rapam a cabeça em redondo e despontam o cabelo [...]." (¹)
Depois, prossegue o padre Ayres de Casal:
"Os homens cuidam na caça, pesca, em
tirar mel, frutas silvestres, palmitos, dos cavalos, feitura de armas e canoas [...]; as mulheres fiam, tecem panos e cintas de algodão, fazem cordas, louça e
esteiras. Ambos os sexos se ocupam igualmente no mister da cozinha." (²)
Carga de cavalaria guaicuru, de acordo com Debret (³) |
E, se devemos crer no que escreveu Ayres de
Casal, não era apenas com os portugueses colonizadores que os célebres
guaicurus entravam em confronto:
"São tão soberbos que a todas as nações
dos gentios confinantes tratam com desprezo; a todas fazem crua guerra, sendo
delas de alguma sorte respeitados e temidos pela vantagem que têm na cavalaria
e armas de que usam [...]." (⁴)
Lembro aqui, no entanto, que, sem escrita, os
guaicurus não deixaram seus próprios relatos para que pudéssemos compará-los
aos dos colonizadores. De qualquer modo, percebe-se que havia interesses
conflitantes: europeus e seus descendentes buscavam explorar novos territórios e
riquezas, não importando, muitas vezes, os métodos empregados na execução de
seus projetos; populações indígenas aí anteriormente estabelecidas sentiam-se
ameaçadas e viam os colonos como invasores, passando então à defesa e/ou tomando
a iniciativa do ataque. Nada muito diferente do que tem ocorrido em boa parte
da história da humanidade neste planeta. Como sempre, quem tinha melhores armas
acabou levando vantagem - não sem muitas perdas, porém.
(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 277.
(2) Ibid., pp. 278 e 279.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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