Os guaicurus estavam para a América do Sul
como os comanches para a América do Norte. Ferozes e destemidos, afeiçoaram-se
grandemente aos cavalos, animais que não eram nativos do Continente Americano (foram trazidos pelos colonizadores europeus) e que tanto comanches como
guaicurus passaram a apreciar, desenvolvendo método próprio de conduzi-los. Se devemos crer em testemunhos de contemporâneos, pensavam que tinham pleno
direito a todos os cavalos do Universo. Portanto, assumindo que os cavalos eram seus, nada
mais justo que capturá-los de quem estivesse com eles. Não constituiria roubo. Os
outros é que os roubavam...
Devemos, todavia, como já afirmei na postagem anterior, ser cautelosos, mesmo com relatos provenientes dos tempos coloniais. Tanto comanches quanto guaicurus tiveram as terras nas quais
viviam sistematicamente ocupadas por colonizadores, que tinham
voz, através de seus escritos, de modo que podemos, ainda hoje, saber seu ponto de vista
nos confrontos com indígenas; já os nativos da América, muitos deles não dispondo de escrita
e muito menos de registros sistemáticos, não deixaram testemunhos equivalentes
aos dos colonizadores. É difícil, pois, estabelecer uma avaliação imparcial.
Certo, mesmo, é que os confrontos foram sangrentos, tanto na América do Norte
quanto na América do Sul.
*****
No Brasil do Século XIX os enfrentamentos entre gente de origem europeia e índios guaicurus já haviam diminuído bastante de intensidade, quando comparados a combates ocorridos no século precedente, durante o período das chamadas monções cuiabanas. Não obstante, o relato feito por Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, é ainda muito similar aos que aparecem em obras mais antigas. Embora seja razoável supor que Florence tenha lido Ayres de Casal e outros autores, ele deveria ter também material de primeira mão a apresentar a seus leitores:
"Estão, com efeito, os anais de Mato
Grosso cheios das traições desses infiéis. Errantes nas margens do Paraguai e
Taquari e estendendo suas excursões em vastíssimo território, fizeram no
princípio do descobrimento grande dano às monções que por entre eles passavam.
Foram já por vezes até Camapuã e, não há muito tempo, arrebataram de lá perto
de 500 cavalos. Costumam também entranhar-se pelo país dos caiuás e caiapós
perto do Paraná, a fim de reduzi-los à escravidão."(¹)
"Não poupam em suas devastadoras
correrias nem sequer os espanhóis das margens do Paraguai, indo mesmo em tempo
de paz saquear-lhes as povoações, cujos despojos vendem aos brasileiros. Não
sei se depois de pacificados continuam nessas práticas." (²)
Não deixa de ser curioso que um europeu,
francês, supusesse que os indígenas da América tinham a obrigação de respeitar
as fronteiras que representantes de países europeus (no caso, Portugal e Espanha), haviam combinado
entre si ainda no Século XVIII. Aliás, fronteiras combinadas depois de uma quantidade de tratados e
guerras... Isso demonstra o quanto pode ser difícil romper com a mentalidade
reinante.
Guaicurus indo ao comércio com europeus, de acordo com Debret (³) |
Segue H. Florence contando sobre uma menina
branca que fora raptada e criada pelos guaicurus:
"Esses bárbaros levam tão longe a
ousadia que não trepidam meter nos ferros da escravidão até os próprios
espanhóis. Vi chegar a Cuiabá uma menina branca dessa nacionalidade e de 12
anos de idade, que o Tenente-Coronel Jerônimo tinha tirado de entre os
guaicurus, onde vivia em cativeiro. Fora com a mãe raptada de sua aldeia natal
no Paraguai, ainda criança de peito, ficara só no mundo e tomara todos os
hábitos dos índios, cuja língua se tornara a dela." (⁴)
Finalmente, passa a tratar da notável
habilidade que havia levado os colonizadores a atribuírem aos guaicurus o apelido de
“gentio-cavaleiro”:
"Os guaicurus são todos cavaleiros e
bons corredores. Possuem numerosa cavalhada roubada aos espanhóis ou criada nos
campos. Às vezes vão vender em Cuiabá animais de sela por 9$000 ou 10$000. Há
índios que têm dois, três e mais. Montam na anca, o que faz com que usem de
rédeas muito compridas." (⁵)
Nesse aspecto é possível outra comparação
entre guaicurus e comanches: aos europeus e/ou seus descendentes causava
estranheza o método pelo qual os indígenas controlavam e conduziam os cavalos.
(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do
Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 83.
(2) Ibid., pp. 83 e 84.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) ,FLORENCE, Hércules. Op. cit., p. 84.
(5) Ibid., p. 84.
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