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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Um quilombo junto ao rio Tietê

Quando se fala em quilombo, Palmares vem à mente da maioria das pessoas. Foi, de fato, o mais famoso, tanto pelas proporções alcançadas quanto pela resistência. Mas não foi o único. Muitíssimos outros existiram, nos mais diversos pontos do Brasil. Houve um, de acordo com Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (¹), às margens do rio Tietê, em algum lugar, portanto, do território que hoje pertence ao Estado de São Paulo:
"[...] passamos pela embocadura do rio Quilombo e, pouco abaixo, pela ilha e cachoeira do mesmo nome. Ali se haviam antigamente refugiado muitos negros, pois quilombo é palavra que designa o asilo onde eles se reúnem nas matas. Foram descobertos por negociantes que voltavam de Cuiabá (²) e que, apenas chegados a Porto Feliz, armaram, por espírito de ganância, uma expedição com a qual atacaram aqueles infelizes, aprisionando mais de cento e vinte. Amontoados em canoas, voltaram os mal-aventurados aos pontos em que sofriam o cativeiro. Foi-nos o fato contado pelo guia." (³)
Florence foi didático em suas explicações. Registrava os acontecimentos para si mesmo, mas é possível que imaginasse que eventuais leitores de seus escritos talvez desconhecessem as circunstâncias do escravismo no Brasil. Quilombos não eram incomuns, tampouco o eram as expedições para destruí-los. Captores de escravos queriam, se possível, encontrar quilombolas vivos, para reconduzi-los à escravidão. Este quilombo das margens do Tietê foi apenas mais um, a abrigar - quem saberá por quanto tempo? -, os sonhos de liberdade de quem fugia do cativeiro.

(1) A Expedição Langsdorff saiu de Porto Feliz no dia 22 de junho de 1826.
(2) Monçoeiros, infere-se. 
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 38

terça-feira, 18 de setembro de 2018

A canjica dos indígenas de São Paulo

Canjica branca
Indígenas faziam canjica - foi o que disse Manoel da Fonseca, jesuíta do Século XVIII - explicando tratar-se de "guisado especial de São Paulo, e mui próprio de penitentes [sic!]. Consta de milho grosso de tal sorte quebrado em um pilão, que tirando-lhe a casca e o olho, fique o mais quase inteiro" (¹). E acrescentou:  "É manjar tão puro e simples que, além da água, em que se coze, nem sal se lhe mistura." (²)
Sob tal preparo é que a canjica era usada pelos índios como alimento, ainda de acordo com o padre Manoel da Fonseca: "É sustento próprio de pobres, pois só a pobreza dos índios e a falta do sal por aquelas partes podiam ser os inventores de tão saboroso manjar" (³). Deixando de lado o sarcasmo da explicação, cumpre notar que, para o jesuíta, o jeito certo de preparar canjica devia ser com adição de sal. Reajam como quiserem, leitores.
Canjica amarela
Mais tarde, os colonizadores se encarregariam de fazer canjica com leite e açúcar (⁴). Desse modo, chegou a ser muito apreciada. Hércules Florence, desenhista francês que passou por São Paulo com a Expedição Langsdorff em 1825, relatou: "A princípio achei esse manjar singular, mas com o correr dos tempos habituei-me tanto a ele como se fora natural do país" (⁵). Opinou, também: "Com açúcar e leite é coisa deliciosa." (⁶) 
Hoje há quem faça canjica adicionando leite condensado, leite de coco, coco ralado, canela, amendoim e outros ingredientes mais. A nomenclatura também varia um pouco, de acordo com a região. Não sei se deu para notar, mas não gosto muito de canjica. No entanto, este blog, como sabem, é um espaço democrático para debates e, por isso, fiquem os leitores à vontade para manifestar apreço ou desgosto por ela. Se estiverem no primeiro caso, podem até deixar as receitas favoritas nos comentários...

(1) FONSECA, Manoel da S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752 /Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo, p. 55.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) Em algumas regiões do Brasil há outros modos de preparo que remetem a tradições africanas, sugerindo, pois, um sincretismo culinário muito interessante.
(5) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 15.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Incêndios durante a estiagem

Incêndio no cerrado

Vejam, leitores, estes versos de A Confederação dos Tamoios:

"Era o tempo em que o sol abrasa tudo,
Em que as secas florestas se incendeiam,
E se extinguem as águas das torrentes."

De saída, cabe um reparo: a obra citada de Gonçalves de Magalhães (da chamada Primeira Geração Romântica) supõe descrever a natureza do Brasil no território em que viviam os tamoios. Pois digo que a descrição está errada. Os tamoios viviam principalmente em terras dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, áreas cuja vegetação nativa é a Mata Atlântica. Não tem cabimento, portanto, a descrição contida nos versos. Ela se aplicaria, com toda correção, ao que sucede no cerrado durante a estiagem. Na Mata Atlântica, mesmo na estação em que as chuvas são menos frequentes, a vegetação jamais perde o verde, embora a ocorrência de incêndios seja sempre uma possibilidade. Sabe-se, porém, que os tamoios, assim como outros povos indígenas, costumavam atear fogo, intencionalmente, a qualquer área na qual pretendessem fazer algum tipo de cultivo, um costume explicável por não disporem de ferramentas adequadas à derrubada de árvores.
Bombeiros apagando incêndio em uma área
de cerrado em Brasília (ao fundo,
a Esplanada dos Ministérios)
Já no caso do cerrado, incêndios ocasionais são até benéficos e garantem a sobrevivência do bioma - há sementes que só germinam depois do fogo. Basta um raio, e as chamas proliferam. A questão é que, com a presença crescente de bípedes humanoides sem nenhum respeito pelo ambiente, o inferno, que era eventual, tornou-se corriqueiro. Gente descuidada e descumpridora das leis atira pontas de cigarro à beira das estradas (¹), e, não mais que alguns minutos mais tarde, o incêndio se alastra, por estar a vegetação brutalmente ressequida em razão da estiagem prolongada. Com o crescimento dos núcleos urbanos, o problema é gravíssimo, já que as chamas, por vezes, chegam muito perto das cidades. Exageradamente perto.
No Século XIX, quando a Expedição Langsdorff percorria parte do Brasil Central, Hércules Florence notou que as queimadas em áreas de cerrado eram usadas deliberadamente, na suposição de que facilitariam a prática da agricultura e/ou favoreceriam o desenvolvimento das pastagens. O desenhista francês conjecturou, com acerto, que cedo ou tarde a natureza acabaria por cobrar o preço dos repetidos incêndios:
"De pronto não nos era fácil adivinhar a razão por que todos os troncos e ramos das tortuosas árvores desses cerrados negrejavam como azeviche e o capim resplendia de verde tão uniforme. É que o fogo por ali passara e que tudo ressurgia simultaneamente; devendo esse hábito do caipira, que sem trabalho quer todos os anos renovar as pastagens para seu gado, produzir a esterilidade dessas belas regiões, caso não repare cultura mais inteligente tantos e tão seguidos estragos." (²)
É fácil constatar que, na primeira metade do Século XIX, os danos ambientais provocados pelas queimadas recorrentes não eram ainda compreendidos, em particular entre a população que vivia, no interior do Brasil, à margem de qualquer progresso científico. Muito estranho, porém, é que em nosso tempo, quando somos quase soterrados por informação (em quantidade e qualidade), ainda haja quem pense ser aceitável atear fogo à vegetação, da maneira mais inconsequente, seja lá pelo motivo que for.

O cerrado renasce após um incêndio - fotografia infravermelha

(1) Pior que isso: o incêndio é, às vezes, deliberado.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 160.


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terça-feira, 18 de abril de 2017

Anhumas

Uma ave, muitas superstições


Anhuma (Anhima cornuta)

As anhumas (Anhima cornuta) impressionaram os colonizadores. Tudo culpa do espinho córneo que têm na cabeça, que, para os supersticiosos de antigamente, lembrava um chifre e, por isso mesmo, sugeria vínculos sinistros. Bobagem, é claro, mas isso é o que pensamos nós, que vivemos no Século XXI. 
Diz-se que, no passado, o rio Tietê era chamado Iguatemi, cujo significado seria "o rio das aves anhumas". Ora, leitores, isso foi há séculos. Embora eu não diga que seja impossível achar anhumas nas proximidades do Tietê, devo atestar que jamais vi qualquer delas por lá. Alguém dos leitores já viu?
O Padre Anchieta fez referência às anhumas, em carta escrita em São Vicente no ano de 1560. Descrevendo uma delas, observou: "[...] Quando grita parece o zurrar de um asno. [...] Quando acossada pelos cães, não foge, ainda que a grandeza do corpo não a embarace de voar; antes os afugenta, ferindo-os gravemente [...]." (¹) Quanta coragem!
Já no Século XIX, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, registrou em seu diário de viagem, no dia 1º de agosto de 1826:
"De manhã matou-se junto a uma lagoa uma anhuma (²), pássaro raro e notável [...] pela excrescência córnea fina, e de três e meia polegadas de comprido, que lhe nasce na cabeça. Tem também no encontro das asas dois esporões que, como armas defensivas, podem causar ferimentos graves. A plumagem é branca e preta, sarapintada na cabeça. preta e parda ao redor dos olhos, escura no resto do corpo, com exceção da barriga, que é branca. O íris é alaranjado. [...]." (³)
Com essas características, não causa surpresa que as anhumas, entre o povo pouco instruído, fossem alvo de um sem-número de superstições. Foi o que constatou José Vieira Couto de Magalhães, ao percorrer, em 1863, parte da Província de Goiás. O caso é que, tendo abatido uma dessas aves, notou que a tripulação do barco com o qual percorria o rio Araguaia entrou em viva discussão. Motivo? Cada um queria um pedaço da anhuma, e não era para comer, já que os ossos eram o principal assunto da disputa:
"[...] Este requeria uma espécie de unicórnio que elas [as anhumas] trazem sobre a cabeça; aquele queria um esporão; um outro o osso da coxa esquerda, e, como eram muitos, cada um alegava seu direto, sem que nenhum tivesse razão." (⁴)
Disposto a averiguar a causa da porfia, Couto de Magalhães descobriu que a mais crassa superstição motivara o interesse por esquartejar a ave: 
"[...] Segundo eles, eram preservativos contra maus ares, maus olhos, mordedura de animais venenosos, e outras que tais coisas.
Um dos companheiros de viagem contou-me então que em Goiás, e sobretudo no norte da Província (⁵) esta crença é geralmente espalhada. Extraem ossos do animal, fazem-lhes furos, e atam-nos ao pescoço das crianças, como um talismã que lhes preserva de quase todos os males." (⁶)
Hoje achamos graça nessas crendices, e tendemos a interpretá-las como uma espécie de folclore. Mas, há menos de duzentos anos, havia, como se vê, quem de fato acreditasse nelas. No interior do Brasil a instrução pública era quase inexistente, valendo o mesmo quanto aos cuidados médicos, de modo que a população, carente de esclarecimento e desconhecendo tanto práticas de higiene quanto as verdadeiras causas de doenças, buscava, em um conjunto de superstições, a proteção para o mundo que a amedrontava e não conseguia explicar.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 125.
(2) Era comum que animais fossem mortos e empalhados, porque só assim é que poderiam ser expostos em museus pelo mundo afora.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 43.
(4) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 169.
(5) Atualmente, Estado de Tocantins.
(6) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Op. cit., p. 169.


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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Danças dos povos indígenas do Brasil

Uma característica comum aos povos indígenas do Brasil, conforme relatos dos mais variados autores que tiveram contato com eles no Período Colonial, era o grande apreço pela música e pela dança. Os missionários jesuítas, longe de trabalharem por banir essas preferências, trataram de usá-las como aliadas na catequese. No Rio de Janeiro, por exemplo, para celebrar a chegada do visitador dos jesuítas, padre Cristóvão de Gouvêa (¹), os meninos indígenas apresentaram, de acordo com relato do padre Fernão Cardim, "a mais aprazível dança":
"Era para ver uma dança de meninos índios, o mais velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados de certas cores aprazíveis, com seus cascavéis (²) nos pés, e braços, pernas, cinta e cabeças com várias invenções de diademas de penas, colares e braceletes; parece-me que se os viram nesse Reino, que andaram todo o dia atrás deles; foi a mais aprazível dança que destes meninos cá vi [...]." (³)
No Século XIX, em razão do crescimento tanto do interesse como da curiosidade pelo Brasil, viajantes estrangeiros percorreram vários pontos do País, e alguns deles deixaram depoimentos escritos quanto às danças indígenas que tiveram a oportunidade de presenciar. É difícil dizer o quanto as danças observadas eram, ainda, autenticamente indígenas, já que em alguns casos há indícios de que pareciam encomendadas para "agradar aos turistas". Mas vamos a dois registros, apenas para dar uma ideia do que podia ser visto.
Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (1825 - 1829), presenciou uma série de movimentos lúdicos dos bororos, executados a partir da formação de um círculo:
"A princípio não fazem mais do que levantar um pé e depois outro, seguindo uma toada lenta que marcam batendo com as mãos, e acompanhada de um canto rouquenho, baixo e demorado como o compasso. De repente param, dão um grande berro e saltam [...]. Em seguida recomeçam com a monótona dança.
Enquanto os bororos a executavam, dois deles, dentro do círculo, representavam o jogo do tamanduá. Um põe-se de quatro pés com uma criança agarrada às costas: é a fêmea do tamanduá-bandeira e seu filhote. Outro o incita, pondo-lhe a ponta de um pau no nariz, imitando com muita fidelidade os movimentos letárgicos do animal; o que faz de tamanduá levanta devagar a cara e uma das mãos, com os dedos curvos como que querendo agarrar o pau: quando se adianta, o outro recua. [...].
Esses índios imitam também suas lutas com a onça, a caçada da anta, lobo, veado, etc." (⁴)
O Príncipe Adalberto da Prússia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1842, observou uma dança dos puris, cujo propósito era, também, imitar os movimentos de vários animais nativos da América:
"A dança consistia num bambolear dum lado para o outro acompanhado dum canto monótono, muito fanhoso. Devia representar simbolicamente, a luta de um anum (eu porém compreendi que era duma mosca) contra um boi; uma outra mais tarde descrevia o caititu, o porco-do-mato, correndo dum lado para o outro na floresta; assim foi, pelo menos, que me explicou o próprio puri esta espécie de improvisações." (⁵)
Ora, meus leitores, os bovinos não são originários do Continente Americano. Se, de fato, a dança presenciada representava um desentendimento entre um anum (ave) e um boi, já havia nela uma construção posterior ao início da colonização. 

Dança dos índios puris (⁶)
Muitos autores trataram desse tema das danças indígenas em seus diários de viagem e quem quiser um aprofundamento no assunto não terá dificuldade em encontrar material para estudo. Deve-se levar sempre em conta, porém, que viajantes estrangeiros observavam as danças através do filtro de sua cultura de origem e, sendo numerosos os povos indígenas do Brasil, é preciso cuidado para não incorrer em generalizações que empobreçam a investigação de suas expressões rituais e/ou artísticas.

(1) Essa Visitação ao Brasil ocorreu entre 1583 e 1590.
(2) Guizos.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 92.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 169.
(5) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 147.
(6) SPIX, Johann B. von et MARTIUS, Carl F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Músicos livres e escravos no Império do Brasil

A maioria de nós considera que aprender música é importante, até fundamental, para uma boa educação. Não quer isso dizer que todo mundo deveria fazer música como profissão, até porque a maioria das pessoas ou não tem talento natural para isso, ou não tem a disposição necessária aos longos (e muitas vezes) cansativos estudos requeridos para a formação de um executante. A questão é aprender alguma coisa que possibilite cantar e/ou tocar pelo prazer de fazê-lo, desenvolvendo, igualmente, a capacidade de apreciação. 
Ora, senhores leitores, devo dizer-lhes, no entanto, que, no Brasil, o aprendizado de música já teve um outro aspecto.
É verdade: pelas alturas do Século XIX, esperava-se que moças e rapazes de alta posição social tivessem conhecimentos suficientes para tocar, ao piano, peças de Beethoven ou Chopin nas reuniões com familiares e amigos, sendo também desejável que aprendessem um pouco de canto lírico. A essas habilidades concedia-se, na época, mais ou menos a mesma importância dada à aprendizagem de francês. Quem não tinha ditos atributos era visto como grosseiro, pouco civilizado, sem fineza, mesmo. Pior seria ainda o defeito se ocorresse em uma jovem...
Nem toda música, porém, vinha dos profissionais (nos teatros) ou dos filhos da nobreza imperial. Em muitas fazendas, para garantir a sonoridade dos bailes nos quais latifundiários ostentavam seu poderio econômico, havia uma banda ou simulacro de orquestra - formada por músicos que eram escravos.
Relatando uma "festa de batizado" que presenciou em Vila Bela, Hércules Florence, desenhista francês que acompanhou a Expedição Langsdorff, observou:
"No dia do batizado tudo foram festas. Os músicos da fazenda que eram negros cativos tocaram desde a aurora árias debaixo das janelas da casa e passearam em bando ao redor do pátio grande." (¹)
Em um romance ambientado em uma fazenda do Vale do Paraíba, nos dias de D. Pedro II, José de Alencar escreveu:
"A ausência de Mário diminuiu o prazer e alegria da festa; mas não transtornou o programa. Principiou o banquete e prolongou-se até a noite ao som da banda de música dos pretos da fazenda, que tocava quadrilhas e valsas." (²)
Não há como saber, ao certo, qual era o nível de conhecimento musical dos escravos-músicos (ou músicos-escravos...). Uma vez que eram raríssimos aqueles que sabiam ler e escrever (³), era pouco provável que muitos deles fossem capazes de ler uma partitura. 
Essa era a situação no Império. No entanto, quando observamos fotografias antigas de corporações musicais, pouco posteriores à Abolição (1888), logo percebemos que vários de seus integrantes deviam ser ex-escravos ou seus descendentes, algumas vezes atuando junto a músicos imigrantes de origem europeia. Novos estilos musicais estavam, portanto, em fermentação, como recurso para exprimir as vivências da nascente estrutura social livre e urbana que ganharia forças ao longo das décadas seguintes.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 186.
(2) ALENCAR, José M. de. O Tronco do Ipê.
(3) Em geral os senhores consideravam que era um absurdo ensinar um escravo a ler; isso poderia torná-lo esperto demais e, talvez, mais qualificado a organizar uma rebelião.


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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Palafitas

Palafitas nas imediações do porto de Manaus - AM (Rio Negro)

Palafitas, como se sabe, são casas construídas sobre estacas, em áreas facilmente inundáveis, para evitar que as águas atinjam as habitações. Podem, com variações, ser encontradas em diversos lugares deste planetinha. Um deles é a região amazônica.
Em fins da terceira década do Século XIX, Hércules Florence, desenhista francês que participou da Expedição Langsdorff, escreveu:
"Tem o Amazonas, como o Nilo e o Paraguai seus transbordamentos periódicos, pelo que são essas casas edificadas sobre estacas. Durante as inundações as visitas se fazem em canoas, podendo penetrar até debaixo do alpendre ou dentro do corredor das habitações. Quando há festança, na frente se vê uma verdadeira flotilha de canoas." (*)
O tempo passou, mas as palafitas, enquanto técnica de construção de casas, resistiram. Podem ser vistas ainda na Amazônia, malgrado a intenção de fazê-las desaparecer de certas áreas, em razão, supostamente, de algumas propostas relacionadas a uma famosa competição mundial de futebol ocorrida em meados de 2013. 
Conforme me explicou um morador local, "meninos aqui aprendem primeiro a nadar e, só depois, a andar". Exagero, talvez, mas reforça o fato de que as palafitas sobrevivem, até porque são perfeitamente adequadas ao regime das águas dos rios que formam o grande complexo amazônico. Pelo visto, terão vida muito longa.

Palafitas não muito longe de Manaus - AM. Para a população ribeirinha, uma casa-barco
pode também ser uma solução muito eficiente (observe, à direita).

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 272.


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quarta-feira, 25 de junho de 2014

Índios guaicurus - Parte 2

Os guaicurus estavam para a América do Sul como os comanches para a América do Norte. Ferozes e destemidos, afeiçoaram-se grandemente aos cavalos, animais que não eram nativos do Continente Americano (foram trazidos pelos colonizadores europeus) e que tanto comanches como guaicurus passaram a apreciar, desenvolvendo método próprio de conduzi-los. Se devemos crer em testemunhos de contemporâneos, pensavam que tinham pleno direito a todos os cavalos do Universo. Portanto, assumindo que os cavalos eram seus, nada mais justo que capturá-los de quem estivesse com eles. Não constituiria roubo. Os outros é que os roubavam...
Devemos, todavia, como já afirmei na postagem anterior, ser cautelosos, mesmo com relatos provenientes dos tempos coloniais. Tanto comanches quanto guaicurus tiveram as terras nas quais viviam sistematicamente ocupadas por colonizadores, que tinham voz, através de seus escritos, de modo que podemos, ainda hoje, saber seu ponto de vista nos confrontos com indígenas; já os nativos da América, muitos deles não dispondo de escrita e muito menos de registros sistemáticos, não deixaram testemunhos equivalentes aos dos colonizadores. É difícil, pois, estabelecer uma avaliação imparcial. Certo, mesmo, é que os confrontos foram sangrentos, tanto na América do Norte quanto na América do Sul.

*****

No Brasil do Século XIX os enfrentamentos entre gente de origem europeia e índios guaicurus já haviam diminuído bastante de intensidade, quando comparados a combates ocorridos no século precedente, durante o período das chamadas monções cuiabanas. Não obstante,  o relato feito por Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, é ainda muito similar aos que aparecem em obras mais antigas. Embora seja razoável supor que Florence tenha lido Ayres de Casal e outros autores, ele deveria ter também material de primeira mão a apresentar a seus leitores:
"Estão, com efeito, os anais de Mato Grosso cheios das traições desses infiéis. Errantes nas margens do Paraguai e Taquari e estendendo suas excursões em vastíssimo território, fizeram no princípio do descobrimento grande dano às monções que por entre eles passavam. Foram já por vezes até Camapuã e, não há muito tempo, arrebataram de lá perto de 500 cavalos. Costumam também entranhar-se pelo país dos caiuás e caiapós perto do Paraná, a fim de reduzi-los à escravidão."(¹)
"Não poupam em suas devastadoras correrias nem sequer os espanhóis das margens do Paraguai, indo mesmo em tempo de paz saquear-lhes as povoações, cujos despojos vendem aos brasileiros. Não sei se depois de pacificados continuam nessas práticas." (²)
Não deixa de ser curioso que um europeu, francês, supusesse que os indígenas da América tinham a obrigação de respeitar as fronteiras que representantes de países europeus (no caso, Portugal e Espanha), haviam combinado entre si ainda no Século XVIII. Aliás, fronteiras combinadas depois de uma quantidade de tratados e guerras... Isso demonstra o quanto pode ser difícil romper com a mentalidade reinante.

Guaicurus indo ao comércio com europeus, de acordo com Debret (³)

Segue H. Florence contando sobre uma menina branca que fora raptada e criada pelos guaicurus:
"Esses bárbaros levam tão longe a ousadia que não trepidam meter nos ferros da escravidão até os próprios espanhóis. Vi chegar a Cuiabá uma menina branca dessa nacionalidade e de 12 anos de idade, que o Tenente-Coronel Jerônimo tinha tirado de entre os guaicurus, onde vivia em cativeiro. Fora com a mãe raptada de sua aldeia natal no Paraguai, ainda criança de peito, ficara só no mundo e tomara todos os hábitos dos índios, cuja língua se tornara a dela." (⁴)
Finalmente, passa a tratar da notável habilidade que havia levado os colonizadores a atribuírem aos guaicurus o apelido de “gentio-cavaleiro”:
"Os guaicurus são todos cavaleiros e bons corredores. Possuem numerosa cavalhada roubada aos espanhóis ou criada nos campos. Às vezes vão vender em Cuiabá animais de sela por 9$000 ou 10$000. Há índios que têm dois, três e mais. Montam na anca, o que faz com que usem de rédeas muito compridas." (⁵)
Nesse aspecto é possível outra comparação entre guaicurus e comanches: aos europeus e/ou seus descendentes causava estranheza o método pelo qual os indígenas controlavam e conduziam os cavalos.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 83.
(2) Ibid., pp. 83 e 84.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) ,FLORENCE, Hércules. Op. cit., p. 84.
(5) Ibid., p. 84.


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quarta-feira, 14 de maio de 2014

Remédios estranhíssimos de antigamente - Parte 5: O "sacatrapo"

Senhores leitores, termino hoje esta pequena série de postagens sobre os remédios malucos de antigamente com uma referência ao famoso e terrível "sacatrapo" (só um instante, já saberão o que era).
Parece que a imaginação da gente do passado não conhecia limites quando se tratava de inventar tratamentos que podiam ser piores que a própria doença.
Não, não estou exagerando. Foi Hércules Florence, que andou pelo interior do Brasil como desenhista da Expedição Langsdorff na terceira década do século XIX, quem escreveu:
"Nesses dois lugares (¹) existe uma moléstia mais perigosa ainda e que é consequência da outra (²). Chamam-na corrupção.
Quem for atacado fica, pelo que contam, com o ânus dilatado do tamanho de um punho fechado, e cai em sonolência e insensibilidade. O remédio heróico é então o sacatrapo, clister de vinagre, pimenta, pólvora e tabaco. Por meio de um pau, cuja ponta leva um chumaço embebido de cada vez, introduz-se no ânus essa terrível mistura.
Sem tão furibunda medicamentação a morte, dizem, é infalível. [...]." (³)
Seria necessário dizer alguma coisa mais?

(1) Diamantino e Vila Bela, Província de Mato Grosso.
(2) Refere-se às sezões, que são febres intermitentes.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 204.


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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Caldo de macaco

A história de hoje não é coisa de filme de aventura - aconteceu de verdade, durante a Expedição Langsdorff, que percorreu o Brasil entre os anos de 1825 e 1829. Para maior exatidão, deve-se mencionar que o fato deu-se pelas alturas do rio Juruena, o que nos leva a concluir que em território do atual Estado de Mato Grosso.
Foi Hércules Florence, desenhista da Expedição, quem contou sobre as lamentáveis condições em que se encontravam cientistas, artistas, militares e outros corajosos que ousaram enfrentar um Brasil, à época, praticamente desconhecido:
"Acabrunhavam-nos as enfermidades; os mosquitos causavam-nos duros sofrimentos, não nos dando a menor trégua.
Por cima do mais sobreveio uma chuva torrencial que durou dias seguidos, molhando tudo quanto tínhamos, até dentro das barracas.
A pesca e a caça nada produziam. Tudo concorria para tornar-nos aquela parada intolerável." (¹)
Tão desesperadora era a situação, que aos encarregados de prover alimento para os famintos expedicionários não restou alternativa senão preparar nada menos que primatas para as refeições. Prossegue a narrativa de Florence:
"Víamo-nos reduzidos a tomar caldos de coatás e barrigudos, duas espécies de macacos, aí muito numerosos, sem dúvida em razão dos frutos do tucuri, caldos aliás excelentes; pois, embora me tivessem as sezões embotado o paladar e repugnasse a carne, senti que o estômago enfraquecido dava-se bem com aquele restaurador alimento." (²)
Assumam, leitores, é de causar náuseas, só à simples imaginação, não é mesmo? Mas, como se vê, ninguém estava diante de fartas opções em um restaurante fino; tampouco era um caso de propensão ao consumo de acepipes exóticos. Era questão de sobrevivência.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 242.
(2) Ibid., p. 243.


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quarta-feira, 24 de abril de 2013

Formigas, mosquitos, piolhos e outros bichos

Já tratei neste blog do medo que tinham os colonizadores tanto de grandes felinos quanto das serpentes que encontravam no Brasil. Ocorre que, quase tão temidos quando e, talvez até mais odiados, havia insetos que tornavam difícil a vida dos europeus que se aventuravam em busca da sobrevivência na Colônia.
É só uma formiguinha...
Ainda no século XVI, Pero de Magalhães Gândavo observou:
"Toda esta terra do Brasil é coberta de formigas pequenas e grandes, estas fazem algum dano às parreiras dos moradores, e às laranjeiras que têm nos quintais; e se não foram estas formigas houvera porventura muitas vinhas no Brasil ainda que lá são pouco necessárias porque deste Reino vai tanto vinho que sempre a terra dele está provida. Também há muita infinidade de mosquitos, principalmente ao longo de algum rio entre umas árvores que se chamam mangues, não pode nenhuma pessoa esperá-los; e pelo mato quando não há viração são muito sobejos e perseguem muito a gente." (¹)
Deixando de lado essa história da quantidade de vinho que vinha ao Brasil (!), deve-se notar que, em alguns casos, os insetos, além das incômodas picadas, eram transmissores de doenças que, pouco conhecidas dos europeus, causavam estragos entre a população, mesmo porque as práticas médicas da época não eram muito eficazes.
Vale recordar: Gândavo dizia escrever para estimular a vinda de colonos ao Brasil...
Duzentos e tantos anos depois, o Padre Ayres de Casal, louvando as virtudes da cidade de Belém (Pará), observou: "Há poucos dos insetos que se introduzem no corpo humano." (²)
Para os leitores que já sentem coçar até o cérebro, só resta dizer que havemos de prosseguir. Sim, piolhos, foi deles que falou Saint-Hilaire em sua Segunda Viagem a São Paulo, datada de época próxima à da Independência. O trecho refere-se ao Vale do Paraíba:
"Paramos no sítio de um agricultor que nos permitiu, muito delicadamente, pousássemos em sua casa. Está coberta de telhas, é a melhor que vimos depois de Jacareí. Entretanto, veste-se seu dono, tal qual os demais roceiros: camisa e calção de algodão. Não parece mais inteligente e ativo do que o resto de seus compatriotas, e enquanto conversava comigo catava piolhos à cabeça e matava-os sem cerimônia.
Em nenhuma outra parte do Brasil tal sevandija é tão frequente quanto aqui. As crianças e mulheres têm a cabeça cheia. Veem-se umas e outras a matarem reciprocamente os piolhos, tranquilamente sentadas à soleira das portas e não pensando em interromper tal ocupação quando os transeuntes as encaram." (³)
Saint-Hilaire não percorreu todo o Brasil, portanto essa observação de que havia ali mais piolhos que em outros lugares somente poderia valer para as regiões que visitou. Mas vamos logo terminar, que o que se tem até aqui já é de provocar calafrios.
Outro viajante, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (1825 - 1829), anotou em seu diário, como parte do relatório sobre o encontro com índios apiacás, na região do rio Juruena:
"Como nós, tinha aquela pobre gente o rosto, as mãos e os pés, não só pintados de picadas de piuns (inseto alado também chamado mosquito-pólvora, porque em tamanho não excede o de um grão de pólvora), senão também cobertos de feridas provenientes dessas ferroadas. Mais fazem sofrer outros insetos também alados, mas de maior tamanho, os borrachudos, porque a parte do corpo tocada inflama-se logo, sobrevindo tal prurido que é de coçar-se até verter sangue. Vieram-nos martirizando desde o rio Preto.
Por toda a parte víamo-nos cercados de nuvens desses malfazejos bichinhos, entrando-nos pelos olhos, nariz, orelhas e boca, nas horas de refeição. Malgrado o excessivo calor, cobríamo-nos todos, e ainda assim era preciso estar agitando o dia inteiro um pano ou um espanador de penas para afugentá-los. Com a noite desaparecem, mas voltam, mal raia a madrugada, para recomeçarem a diabólica tarefa.
Por vezes causaram-nos essa praga e a febre acessos de raiva e recriminações inconvenientes." (⁴)
Nem era preciso dizer, não é mesmo? Imprecações, neste caso, eram compreensíveis e mais que perdoáveis. E depois ainda há quem imagine tais expedições como aventuras românticas!

(1) GÂNDAVO, Pero de. Magalhães Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 72.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 2. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 299.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 96.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 225 e 226.


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quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os urubus-brancos que fizeram um desenhista "voar"

Há notícias de monçoeiros que acabaram enlouquecendo na viagem às minas - "surtaram", hoje se diria. É que a longa jornada por rios aparentemente intermináveis, rodeados por matas que também pareciam infindas, ao lado de perigos contínuos, reforçados pelo presenciar quase diário da morte de companheiros de viagem, levava os expedicionários a um verdadeiro teste de resistência não apenas física, mas sobretudo mental.
No século XIX, quando as monções cuiabanas já eram coisa do passado, a Expedição Langsdorff seguiu a mesma rota dos monçoeiros rumo ao Brasil central e, dali, para a região amazônica. Entre os expedicionários estava o jovem desenhista francês Hércules Florence, que prestou trabalho verdadeiramente impagável ao registrar em imagens o que se via no caminho. Por certo não enlouqueceu (não se pode dizer o mesmo do líder da Expedição), mas, no relato escrito que deixou, às vezes ocorreu exagerar. Tem-se uma amostra disso nesta descrição que faz do urubu-rei, urubu-branco ou urubutinga (seja lá qual for o nome que se lhe dê, a ave é a mesma):
Cabeça de urubu-rei ou urubutinga
"Os caçadores trouxeram dois urubus-brancos ou urubutingas, um dos mais belos pássaros das florestas do Brasil: o mais formoso sem dúvida em cores e plumagem; o aspecto, porém, e os hábitos são de legítimo corvo. É do tamanho de um ganso. Tem olhos grandes e redondos; íris de brilhante alvura; pálpebras vermelhas; bico como o dos urubus: comprido, recurvado e de um alaranjado vivo. Abaixo do bico, expande-se uma carúncula carnosa que cai de um lado e de outro, de cor também alaranjada. Desde o olho até esta carnosidade, a pele nua puxa para roxo.
Acima da cabeça há uma parte completamente desnudada, rubra, com penazinhas tão pequenas e separadas que parecem pelos. Por baixo dos olhos e do pescoço saem carúnculas unidas e compridas, de um escuro claro e que, em forma de arco, vão-se ligar acima da nuca, unindo-se então num filete carnoso que desce por trás do pescoço até a base do peito. É vermelho claro em cima, preto no meio e amarelo em baixo. As cores da cabeça são realçadas por um fundo negro do ébano, que bem se pode chamar de moldura. O pescoço é totalmente desnudado de penugem. A pele parece pele de luvas: é amarelo vivo na frente, cor que cambia insensivelmente para vermelho carregado. Esse pescoço nu e tão bem colorido sai de um colar de penas acinzentadas que parecem vir das costas e se reúnem no peito, a formarem novamente uma linha de separação que se esbate pouco acima da barriga. O colar semelha um ornato de mulher. O resto das penas é branco, exceto nas extremidades das asas que são pretas. Os pés são brancos." (*)
Percebendo que talvez tivesse ido longe demais, acrescentou:
"Desculpem-me esta descrição, que não é de naturalista."

Um belo exemplar da ave descrita por H. Florence

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, pp. 36 e 37.


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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pilões e monjolos

Pilão manual (⁴)
Os pilões são usados no Brasil desde tempos remotos, principalmente para moer o milho. Já os monjolos, conforme veremos, vieram com a colonização portuguesa. A diferença entre pilões e monjolos está no fato de que os últimos fazem o trabalho de vários pilões. Mas não é só. Enquanto os monjolos funcionam com base na força da água, os pilões pressupõem que seres humanos consumam muitas calorias para mantê-los em funcionamento.
O primeiro monjolo do Brasil, de acordo com Varnhagen (*), foi, em meados do século XVI, instalado na Capitania de São Vicente, na região do porto de Santos, por ideia de Brás Cubas que, segundo o mesmo autor, foi, na Capitania, o procurador do donatário, Martim Afonso de Sousa, que depois de sua famosa viagem ao Brasil na década de 30 do século XVI, não mais tornou a ver a América.
Vamos ao texto de Varnhagen:
"[...] Nesse lugar adquiriu terras, e se estabeleceu, construindo aí o primeiro monjolo que se conheceu no Brasil, e foi pelos índios denominado Enguá-guassú (pilão grande), nome que primitivamente teve o local, onde depois se fundou a vila chamada de Todos os Santos, hoje cidade de Santos, vila que, por influência do mesmo Cubas, desde logo teve hospital e casa de misericórdia, com os privilégios da de Lisboa por alvará régio." (¹)

Monjolo (⁴)
Sim, leitor, com tão precoce introdução do sistema de moagem por monjolo, cujas vantagens em relação aos pilões manuais são evidentes, seria natural que logo até as mais pequenas povoações fossem todas servidas por alguma dessas maquinazinhas. Mas não foi o que ocorreu, pelo que depreendemos de um relato de Hércules Florence, datado de 1826, anotado durante a Expedição Langsdorff, no qual o então jovem desenhista da Expedição manifesta toda a sua fúria diante da demora em Camapuã para que se preparasse a farinha que usariam ao prosseguir viagem, já que toda ela precisaria ser feita em pilões, por não haver um monjolo na localidade, não economizando no palavreado aos descrever os moradores do lugar. Escreveu ele:
Monjolo, detalhe (⁴)
"Como de Porto Feliz partíramos levando a quantidade de farinha de milho necessária para a viagem até Camapuã, a fim de não carregar demais as canoas, tivemos que encomendar 120 alqueires que os moradores se puseram logo a preparar, desperdiçando contudo muito tempo em socar o milho a poder de braços, porque nem sequer possuem um monjolo, a máquina mais estúpida que jamais foi inventada e que é de uso no interior do Brasil para com o emprego da água pilar arroz e milho.
Existira já um em Camapuã, mas como uma enchente do rio o quebrara, esses desgraçados vadios não tinham pensado em substituí-lo por outro." (²)
A seguir, passa a descrever um monjolo em detalhes, mecanismo pelo qual, aliás, parecia não ter também muito afeto:
Monjolo, detalhe (⁴)
"Consiste em grande e pesadíssima peça de madeira de 25 a 30 pés de comprido que tem numa extremidade uma cuba e noutra um furo, onde se adapta um pilão. Coloca-se tudo isso em equilíbrio debaixo de um veio d'água que caia dentro da concavidade. Quando esta se enche, o peso faz descer um dos braços e subir o outro, isto é, o pilão que esmaga na queda os grãos de milho, mal se entorne a água. Semelhante maquinismo não pode trabalhar senão muito lentamente: medeiam 10 a 12 segundos de uma pancada à outro, e a água não faz a sexta parte do serviço que poderia prestar." (³)
Supõe-se, claro, que nosso irritado artista estivesse a pensar quanto tempo mais seria preciso para que alguém resolvesse instalar um moinho verdadeiro. Mas, pelas alturas do século XIX, em questões relacionadas a novidades tecnológicas, a vida no interior do Brasil corria mesmo muito devagar.

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil Antes da Sua Separação e Independência de Portugal Tomo 1, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 167.
(2) FLORENCE, Hércules.  Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 67.
(3) Ibid.
(4) O pilão manual pertence ao acervo do Museu de São Pedro (SP); o monjolo pertence ao acervo do Museu Histórico e Geográfico de Monte Sião (MG).


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cobras, lagartos e outros bichos - De que se alimentava a população das minas coloniais quando faltava comida

Afoitos pela busca do ouro, os mineradores estabelecidos precariamente nas Gerais enfrentaram, por vezes, situações extremas de falta de alimentos. Há relatos de alguns que, na ausência de suprimentos adequados, acabaram comendo lagartixas, lagartos, cobras, içás e lagartas encontradas na madeira apodrecida de algumas árvores. A febre das riquezas que podiam vir rapidamente levava multidões ao esquecimento de uma das mais básicas condições para a sobrevivência, ou seja, a necessidade de que fossem estabelecidas lavouras dos gêneros necessários ao sustento de tanta gente.
Já nas minas de Cuiabá uma série de fatores veio a contribuir para que a fome grassasse no ano de 1725, levando a população mineradora às raias do desespero, em decorrência da falta geral de víveres. Sem poder contar com o abastecimento que vinha de longe, já que uma monção que devia conduzi-los foi exterminada em combate com indígenas, restava à população sobreviver apenas de produtos locais. Ocorre que, a despeito de neste caso haver roças, duas pragas terríveis - de ratos e de gafanhotos - destruíram praticamente toda a safra de milho e feijão. Nos extremos da penúria, consta que um frasco de sal chegou a ser cotado a meia libra de ouro, enquanto que um casal de gatos (para combater os ratos) foi vendido por nada menos que uma libra (¹).
Um século mais tarde, fazer a jornada fluvial pela mesma antiga rota das monções podia, ainda, significar a necessidade de "adaptação" a alimentos que pareciam ser algo estranhos, conforme sabemos pelo relato de um dos desenhistas da Expedição Langsdorff, Hércules Florence:
"Deixando a monção continuar a subir o rio com a habitual lentidão, fomos, eu e os Senhores Riedel e Taunay, por terra umas duas léguas até ao salto do Corau. Não leváramos senão uma espingarda de caça, algumas cargas de chumbo fino, uma bala e dois biscoitos que constituíram nosso jantar. Chegamos antes do pôr do sol ao salto, demo-nos pressa em formar provisório abrigo com folhas de palmeira guacuri. Felizmente matou o Sr. Taunay um lagarto que nos serviu de ceia e que a fome transformou em manjar suculento. Deparou-se-nos também um cacho de bananas que pendia de raquítico tronco. Caso houvessem estado maduras, não teriam escapado à gente de Costa Rodrigues: por incomíveis as deixaram, mas nosso apetite era tal que, assadas assim mesmo verdes, foram regalo precioso." (²)


(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 63.


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domingo, 25 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 8): Preguiças

Preguiça com filhote (²)
As preguiças recebem o nome de preguiças porque nos parecem, afinal, preguiçosas! É como se vivessem em perpétua câmera lenta. Há uma bem conhecida lenda que conta que uma preguiça, estando na floresta quase ao nível do chão, viu uma belíssima fruta no alto de uma árvore. Tal fato aguçou-lhe o apetite, de modo que ela começou a escalar a dita árvore, mas à sua maneira, pre-gui-ço-sa-men-te. Finalmente, alcançou seu alvo, mas ao tocar a fruta, esta caiu prontamente ao solo. Estava podre. Por quê? A preguiça havia gasto tanto tempo na subida que, nesse intervalo, a tão apetitosa fruta completara seu ciclo de maturação, ficando pronta para liberar as sementes. Exagero à parte, isso dá uma ideia de quão velozes são as preguiças, ou, se quisermos ser justos, de quão velozes seu metabolismo permite que sejam.
Ora, perversamente, em sua aparência esses bichos têm algo de humanoide, logo eles a quem nomeamos por um dos piores defeitos que alguém poderia ter, um dos sete pecados capitais. Basta ver como olham, como se movem, como carregam os filhotes. No século XVII, Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escreveu:
Preguiça-de-costas-pretas (²)
"Outro animal há a que chamam preguiça, por ser tão preguiçoso e tardo em mover os pés e mãos, que para subir a uma árvore ou andar um espaço de vinte palmos há mister meia hora, e posto que o aguilhoem, nem por isso foge mais depressa."
Tal descrição pode fazer supor que as preguiças são seres frágeis, facilmente capturáveis. Nem sempre. Este exemplo é ótimo: a preguiça, ainda que mui preguiçosa, foi veloz o bastante para fazer suas lindas garras escaparem das unhas dos taxidermistas da expedição Langsdorff, conforme escreveu Hércules Florence, estando próximo à embocadura do rio Juruena:
"Foi aí contudo que agarramos uma preguiça, que atravessava o Juruena. Metemo-la numa canoa e à noite a amarramos a uma árvore: de manhã, porém, desaparecera." (¹)

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 222.
(2) WIED-NEUWIED, M. v. Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens.


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