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sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Manaus antes da borracha

Casa do presidente da Província em Manaus,
 antes do surto de extração e exportação do látex (¹)

Durante os anos em que a exploração e exportação da borracha fez de Manaus um centro importante no norte do Brasil, a cidade cresceu, tanto economicamente como em população, e ganhou prédios que até hoje são admirados. Mas como era Manaus antes da borracha?
Uma breve descrição, presente nos registros feitos pelo casal Agassiz, que visitou o Brasil entre os anos 1865 e 1866, dará uma resposta simples, se quem lê tiver um pouco de imaginação:
"Que poderei dizer da cidade de Manaus? É uma pequena reunião de casas, a metade das quais parece prestes a cair em ruínas, e não se pode deixar de sorrir ao ver os castelos oscilantes decorados com o nome de edifícios públicos: Tesouraria, Câmara Legislativa, Correios, Alfândega, Presidência. Entretanto, a situação da cidade, na junção do rio Negro, do Amazonas e do Solimões, foi das mais felizes na escolha. Insignificante hoje, Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e navegação. [...]" (²)
Não era mesmo para impressionar ninguém, como muitas outras povoações ribeirinhas contemporâneas, com sua vidinha sossegada, até sonolenta. Mas aí veio a febre da borracha, e tudo mudou. Mesmo com o declínio extrativista do látex, Manaus nunca mais seria a mesma. 

(1) Cf. BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 415. Desenho de E. Riou, sobre esboços de F. Biard. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ. Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866, trad. Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 196.


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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Uma proposta do Século XVIII para imunização de indígenas contra a varíola

O título longo da obra, Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma, seguia uma prática em moda no tempo em que foi escrita, a segunda metade do Século XVIII. Seu autor, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, assim que assumiu o cargo para o qual fora nomeado, decidiu embarcar em canoas, acompanhado pela família, por alguns funcionários públicos e por remadores indígenas, para conhecer de perto as localidades habitadas na Capitania de São José do Rio Negro. 
Entendam, leitores: isso significava percorrer a Amazônia no Século XVIII. Não era tarefa fácil, e chega a ser uma surpresa que alguém se aventurasse a tanto, quando muitos outros haviam preferido a comodidade da permanência na sede de governo. As anotações que fez, em forma de diário da viagem essencialmente fluvial, ocorrida entre 1774 e 1775, foram mais tarde publicadas sob a forma de um pequeno livro. Poucos tinham, então, a oportunidade de viajar para terras distantes, e um registro assim podia despertar interesse. Em certa localidade, notou que a população indígena sofria bastante com a varíola, também chamada de "bexigas", conforme o dizer popular da época, e escreveu: 
"Grassavam [...] funestamente as bexigas, ainda que já estavam terminando. Além dos índios que morreram, tinham desertado muitos, principalmente da nação Purus, com medo delas [...], porque as bexigas em índios são mal mortal, e de que raros escapam.  Atribui-se a causa à dificuldade de erupção das bexigas, considerando-se que a cútis dos índios é menos porosa [...]. Seria coisa felicíssima que se introduzisse nas povoações dos índios o fácil e proveitoso método de inocular ou enxertar as bexigas. Que milhares de vidas se não poupariam!" (¹)
Hoje parece cômico que alguém explicasse a tragédia da varíola entre indígenas pela suposta diferença na porosidade da pele - como todos sabem, a questão é outra. Porém, muito interessante, é que esse autor, administrador público e viajante sugerisse o emprego da inoculação, um método rústico (e um tanto perigoso) de imunização, que, se devidamente aplicado, poderia salvar vidas entre a população nativa. É pouco provável que se referisse à imunização com a vacina proveniente da varíola bovina, que já se experimentava com sucesso na Europa, e que, mais tarde, Edward Jenner formalizaria (²). Contudo, esse trecho do diário, escrito em 12 de outubro de 1774 por Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio demonstra, sem margem a dúvida, que mesmo na Amazônia, tão distante dos grandes centros de pesquisas médicas do Século XVIII, se cogitava a utilização de um método que reduzisse o impacto da varíola em indígenas, talvez por já ser usado em parte da população colonial de origem europeia. 
A vacinação, propriamente dita, pelo método de Jenner, não demorou muito a ser introduzida no Brasil. Portanto, contrariando uma ideia corrente, deve-se entender que desconhecimento não é uma justificativa plausível para a famosa Revolta da Vacina, na capital do Brasil, ocorrida cento e trinta anos depois que Ribeiro Sampaio escreveu o seu Diário de Viagem

(1) SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem que em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro Fez o Ouvidor e Intendente-Geral da Mesma. Lisboa: Typografia da Academia, 1825, p. 24.
(2) Em 1796.


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terça-feira, 27 de julho de 2021

Vitória-régia

Vitória-régia (Victoria amazonica)

"A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante."
Euclides da Cunha, À Margem da História

À medida que avançavam pela região amazônica, exploradores dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, iam encontrando mais e mais razões para admiração. A natureza oferecia, ali, visões inusitadas, quer na paisagem, quer na fauna e mesmo na flora. Que vegetal era aquele que, sobre a água, impressionava pelas dimensões e beleza? Até mesmo a origem do nome que lhe deram foi motivo de controvérsia. Quem, afinal foi o primeiro a chamá-la "vitória-régia"?
Para Francisco Bernardino de Sousa (¹), "em 1845 um viajante inglês, o sr. Bridges, navegando pelas margens do rio Iocouma, um dos tributários do Mamoré, deu com um lago, no qual viu com surpresa uma quase colônia dessa planta magnífica. Em sua admiração e em seu amor britânico deu-lhe o nome de sua soberana, apelidando-a de Victoria regia" (²). Outros atribuem a Robert Schomburgk essa exótica denominação. José de Alencar, porém, tinha outras ideias. Disse ele, em Sonhos d'Ouro: "[...] a flor gigante, a grande ninfeia escarlate, a rainha dos lagos, que os ingleses chamaram vitória, em honra de sua soberana, mas eu chamarei imperatriz (³), em razão de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico, e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de loto, que os indígenas chamam milho-d'água. Não é de certo minha intenção invadir os domínios da ciência; podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema. Mas as flores, como mimos da natureza, são do domínio da poesia."
"Milho-d'água", portanto, seria, de acordo com Alencar, a denominação indígena para a vitória-régia. O cônego Francisco Bernardino de Sousa pensava diferente: "Os índios dão a essa flor o nome de Uapé Jaçaná (forno dos jaçanãs) porque estas aves vivem pousadas sobre elas, de cujas sementes se alimentam" (⁴).


Quem vai à Amazônia não quer sair de lá sem ver a vitória-régia. Foi o que aconteceu com Jean Louis e Elizabeth Cary Agassiz, durante a Expedição Thayer, no ano de 1866. No diário da viagem foi registrado, em 18 de janeiro: "Pusemo-nos hoje em procura da vitória-régia. Fizéramos constantes esforços para ver esse famoso nenúfar florindo em suas águas natais; mas, embora nos houvessem dito que abundavam os seus exemplares nos lagos e igarapés, nunca conseguimos ver nenhum deles" (⁵). A busca continuou e foi, finalmente, recompensada: "Por mais maravilhosa que ela pareça quando admirada na bacia de um parque artificial, onde faz maior efeito pelo seu isolamento, tem, contemplada no meio que lhe é próprio, um encanto ainda maior; o da harmonia com tudo o que a rodeia, com a massa compacta da floresta, com as palmeiras e as parasitas, as aves de brilhante plumagem, os insetos de cores vivas e maravilhosas, com os próprios peixes que, escondidos nas águas, por baixo dela, têm suas cores não menos ricas e variadas do que as dos seres vivos do ar" (⁶). 
Surpresa, na Amazônia, meus leitores, seria não encontrar nela nada surpreendente.

(1) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(2) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 12. 
(3) Recordem-se, leitores, de que o Brasil era império quando Alencar escreveu Sonhos d'Ouro.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino. Op. cit., p. 12.
(5) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 335.
(6) Ibid., p. 338.


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terça-feira, 2 de março de 2021

A pesca do pirarucu no Século XIX

Ele é chamado "bacalhau da Amazônia": morto e salgado, parece bacalhau, mas só assim... É o pirarucu (Arapaima gigas), de água doce, doces como são as águas da Amazônia. "Este peixe salgado", explicou o cônego Francisco Bernardino de Sousa (¹), "é um dos gêneros que mais concorrem a facilitar a alimentação pública em geral e quase que constitui a base do sustento de uma boa parte da população (²). A língua do pirarucu, duríssima como ferro, serve para ralar e é com ela que costumam os indígenas ralar o guaraná" (³).
Para a realidade das águas doces, um pirarucu adulto é um peixe enorme, frequentemente com mais de dois metros de comprimento. Seu ciclo reprodutivo, porém, dificulta um pouco a propagação da espécie. Seria necessário, portanto, algum cuidado no que se refere à pesca. Não era o que acontecia no Século XIX, pelo que se vê com facilidade nas palavras de Francisco Bernardino de Sousa:
"A pesca [...] do pirarucu é dos seguintes modos: servem-se algumas vezes do anzol ou flecha, outras do arpão [...]; do camuri, que é uma boia com isca para chamá-lo à superfície da água, e então arpoá-lo; ou tapando a boca dos lagos, ou finalmente empregando o cacuri, que é uma espécie de cercado.
[...]
Não há ainda medida nem regra, que eu saiba, nesta violenta caçada. Tanto o grande como o pequeno peixe morrem à fisga, ao anzol e ao arpão, e não será para admirar que este importantíssimo recurso da pobreza venha a escassear em um futuro que talvez não esteja muito longe, porque acresce ao estrago feito pela mão do homem a diminuição considerável da espécie, ocasionada em alguns anos pela vazante extraordinária dos lagos. Em alguns pontos em que até então abundavam, já hoje se têm tornado raros e escassos (³)."
Já era assim há cento e tantos anos! Surpreendente é a visão desse autor, preocupado com uma questão ecológica que só muito tempo depois viria a ser de interesse geral. 
Atualmente a pesca do pirarucu está submetida a regulamentos que têm por objetivo a preservação da espécie pelo manejo sustentável. As chamadas "fazendas aquáticas" são um modo de realizar a criação desses peixes. A foto abaixo foi feita em uma delas, não muito longe de Manaus, a capital do Estado do Amazonas.

Pirarucu sob a água

(1) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(2) Entenda-se que Francisco Bernardino de Sousa fez essa afirmação no Século XIX.
(3) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas, Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 116.
(4) Ibid.


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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Abusos decorrentes do escambo persistiam no Século XIX

Em outra postagem, já tratei da questão dos abusos que eram cometidos contra indígenas durante a prática do escambo no Brasil Colonial. É verdade que as trocas de objetos começaram de forma amistosa, e pode-se dizer, sem receio de erro, que foram importantes para que europeus e indígenas travassem contato com elementos culturais diferentes dos seus. Não foram, portanto, más em si mesmas - maus foram os resultados.
A dificuldade apareceu quando diferenças de mentalidade levaram a trocas extremamente desfavoráveis aos indígenas. Colonizadores tinham sede de lucro, enquanto indígenas entendiam as coisas pela sua utilidade e não estavam habituados às estratégias comerciais. Acabavam, quase sempre, prejudicados.
O que pretendo mostrar, hoje, é que as práticas abusivas no escambo não ficaram restritas aos tempos coloniais. Mercadores que percorriam os rios da Amazônia no Século XIX chegavam a aldeias indígenas longínquas e, depois de ganhar a confiança dos moradores, propunham trocas. Um relatório apresentado à Assembleia Legislativa do Pará em 1862 pelo conselheiro Brusque (¹) e citado pelo Cônego Francisco Bernardino de Sousa (²) dizia que uma forma de exploração dos indígenas chegava bem perto do trabalho escravo:
"Para logo os destina à colheita de castanha, à extração de salsa (³) e de outros produtos naturais, e quando passados três ou quatro meses de árduo trabalho, regressa [o indígena] ao grêmio da aldeia, ele [o comerciante] lhe faz a conta de modo que o mísero índio lhe fica devendo ainda (⁴)."
As trocas, propriamente, eram quase sempre injustas:
"No Gurupi um corte de calças de algodão ordinário, que custa nesta cidade 1$000 (⁵), é dado ao índio em troca de um pote de óleo de copaíba, que contém uma canada e meia a duas canadas, e que vale por conseguinte neste mercado 20$000 (⁶).
Uma arma de fogo ordinária no valor de 5$000 é dada em troca de três potes de óleo.
Um barril de pólvora que custa 17$000 é o equivalente de 8 potes (7)."
O mesmo autor assegurou que procedimento análogo era adotado em outras localidades. Assim seguia o escambo, até o momento em que, percebendo o quanto eram explorados, indígenas se revoltavam e episódios violentos chegavam a ocorrer.

(1) Francisco Carlos de Araújo Brusque.
(2) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(3) Salsaparrilha.
(4) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 133.
(5) Mil réis. 
(6) Vinte mil réis.
(7) SOUSA, Francisco Bernardino de. Op. cit. p. 133.


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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Macacos das florestas brasileiras

Cairara da Amazônia

Descrevendo as florestas brasileiras, Alphonse de Beauchamp observou, em obra publicada na segunda década do Século XIX:
"Os macacos viajam por meio destes labirintos selvagens, e neles se balançam pela cauda." (¹)
De fato, no imaginário popular, as florestas brasileiras estavam cheias de macacos, de modo que quem ousava enfrentar as dificuldades inerentes às viagens no Século XIX tinha a ideia de que logo iria topar, aqui e ali, com bandos de primatas irrequietos e barulhentos. No entanto, dependendo da região que alguém visitasse, a expectativa podia ser frustrada. Os macacos estariam lá - como não? - mas sem o estardalhaço imaginado. Um relato feito por Elizabeth Cary Agassiz (²) é bom exemplo:
"Nós nos deixamos ir por um igarapé abaixo, encantador, e pela primeira vez pude ver macacos trepados nas árvores, à beira d'água. Quando se chega ao Amazonas, imagina-se que se vão ver tais animais tão frequentemente como entre nós os esquilos; mas, embora sejam numerosíssimos, é bem raro que os consigamos ver de perto, tão grande é o medo que eles têm." (³)
Macaco-prego
A pesquisadora americana não estava errada. Ainda hoje, os macacos da Amazônia parecem menos ruidosos que os de outras áreas do Brasil, como eu mesma já constatei. Duvido, no entanto, que o silêncio seja resultante do medo da aproximação de humanos. É mais aceitável que seja precaução, para evitar uma exposição indevida a predadores. A Floresta Amazônica, como muitos têm notado, parece, às vezes, demasiado silenciosa, a despeito da vibrante explosão de vida que lá se encontra.
Por outro lado, há lugares em que os macacos não só fazem uma algazarra incrível, como são até muito amistosos. Um dia desses fui a um lugar, no Brasil Central, no qual sabia haver boa chance de encontrar uma porção de primatinhas. Estava preparando meu equipamento de fotografia quando um deles, comendo alguma coisa, veio em minha direção. Acreditem, leitores: a criaturinha gentilmente estendeu a mão, mostrando uma lagarta, como que perguntando se eu queria participar do lanche. Respondi: Obrigada, acabei de almoçar. Bom apetite!...
Não iria perder a oportunidade de registrar o momento. Meu simpático amiguinho está aí, na foto acima à esquerda, para que vocês possam conhecê-lo.

(1) BEAUCHAMP, Affonso de. História do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1818, p. 85.
(2) Participou da Expedição Thayer, nos anos 1865 e 1866.
(3) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 227.


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segunda-feira, 18 de julho de 2016

Igarapés

Igarapé na Amazônia brasileira

Vamos hoje, leitores, a uma realidade muito diferente do mundo urbano a que estamos habituados. Todos prontos?
Na Amazônia, os igarapés são os caminhos possíveis na floresta. Explica-se: As florestas inundáveis são chamadas igapós. Devido à densa vegetação, a maior parte dessas florestas é quase intransitável, pelo menos para espécimes humanos. No entanto, os "caminhos" praticáveis à passagem de canoas são chamados igarapés, e cumprem, na realidade amazônica, a função de ruas ou estradas - tudo coberto de água. A expressão igarapé significa, pois, "caminho da canoa". Em 1866, Elizabeth Cary Agassiz, que participou de uma expedição científica à Amazônia, anotou em seu diário: "o igarapé é o traço mais característico e admirável da paisagem da Amazônia" (¹).
Para quem vem de longe, a região parece, a princípio, um emaranhado de água e árvores, cujas dimensões extrapolam os limites da imaginação mais atrevida. Já para os povos da floresta tudo faz sentido, e encontrar caminho em meio às águas do rio e às raízes parcialmente emersas das árvores é tão natural quanto, para um de nós, de olho no GPS, achar um endereço em meio às ruas e avenidas de uma metrópole. É questão de hábito, de vivência, de adaptação ao meio.
No entanto, se a expectativa for, entrando na floresta, a de encontrar uma explosão de sons emitidos por animais e aves, logo virá uma surpresa: a floresta amazônica é estranhamente silenciosa, sim, de um silêncio pesado, quase palpável (²). Não quer dizer que seja isenta de vida. Muito pelo contrário. É que não há, ali, uma festa contínua, e sim o jogo da sobrevivência, em que ruídos inconvenientes podem ser fatais. Abram bem os olhos, visitantes, apurem os ouvidos, e logo perceberão uma multidão de seres vivos à espreita.

(1) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 362.
(2) Autores do passado eram enfáticos em relatar esse fenômeno. Posso dizer, por minha própria observação, que, ao menos nesse sentido, nada mudou.


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sexta-feira, 13 de maio de 2016

Encontro das águas


No diário de Francisco José de Lacerda e Almeida, astrônomo que participou, no Século XVIII, da demarcação de limites entre terras de Portugal e Espanha na América do Sul, pode ser encontrado este registro, datado de 4 de outubro de 1780:
"Saímos com o rumo de SO, e tendo navegado três léguas chegamos à boca do Rio Negro, e como as suas águas são pretas e as do Amazonas [Solimões] brancas ou barrentas, fazem estes dois rios na sua junção uma grande separação de águas."
Lacerda falava, já se vê, do chamado "encontro das águas" dos rios Negro e Solimões, que ocorre não muito longe de Manaus. Por uma distância considerável, as águas conservam a separação, num espetáculo grandioso, como é quase tudo o que se relaciona à Amazônia.
No Século XVIII, presenciar o encontro das águas ainda era para poucos. No centênio seguinte, a exploração da borracha favoreceu o nascimento e/ou crescimento de núcleos de povoação, e, neles, estudiosos que queriam conhecer a região achavam pontos de apoio mais favoráveis, como ocorreu com o casal Agassiz, que por lá passou em 1865. Nessa oportunidade, Elizabeth Cary Agassiz registrou em seu diário de viagem:
"Ontem pela manhã [5 de setembro], entramos no rio Negro e observamos o conflito de suas águas calmas e quase pretas com as ondas amareladas e apressadas do Solimões, como é denominado o médio Amazonas. Os índios chamam-nos admiravelmente "o rio vivo e o rio morto"." (¹)
Do começo do Século XX vem ainda esta outra descrição do encontro das águas, escrita por Aníbal Amorim:
"Estava-se na época das enchentes máximas de todos os formadores amazônicos. O Solimões e o rio Negro transbordavam. Quando o vapor entrou na embocadura deste último rio e os meus olhos puderam ver o encontro solene das águas dos dois gigantes, senti uma profunda emoção, diante do grandioso daquele espetáculo." (²) 
A exploração do látex trouxe prosperidade transitória à região. Em 1909, Aníbal Amorim observava que "Manaus de agora já não é Manaus de dez anos atrás" (³). É verdade, leitores, questões econômicas têm feito a região amazônica oscilar entre a euforia e a depressão, como a população local, se interrogada, não tarda em atestar e dar exemplos. A despeito disso, a natureza estupenda segue seu ritmo que  parece imutável. O encontro das águas continua tão belo e impressionante como visto pelo astrônomo Lacerda em 1780, pelos Agassiz em 1865 e por Aníbal Amorim em 1909.


(1) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 193.
(2) AMORIM, Aníbal. Viagens Pelo Brasil. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., p. 150.
(3) Ibid., p. 153.


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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Teatro Amazonas

Fachada do Teatro Amazonas

O Teatro Amazonas é considerado, em Manaus, o mais célebre remanescente da brevíssima fase de prosperidade que o norte do Brasil viveu devido à exportação de borracha, nas últimas décadas do Século XIX e, já em declínio, no começo do Século XX. Graças a algumas restaurações, está em boa forma e não se deve deixar de visitá-lo.
As fotos são, neste caso, talvez mais úteis que as palavras. Transcrevo, porém, o que observou o general Aníbal Amorim, que esteve no Amazonas em 1909 e viu o teatro que era, ainda, espaço de sociabilidade para os magnatas da borracha e não, como hoje, alvo da curiosidade dos turistas:
"O Teatro Amazonas assenta no extremo mais elevado da avenida Eduardo Ribeiro. É avistado de qualquer ponto da cidade (¹). É uma das primeiras coisas que prendem a atenção de quem chega à linda princesa do rio Negro. O interior do teatro é simplesmente majestoso. O seu foyer só tem, entre nós, um competidor no nosso Municipal (²). É rodeado de imensas colunas, fingindo mármore. Decoram-no diversos quadros de De Angelis. Um desses quadros tem um sabor finamente regional: representa uma pequena fração da floresta Amazônica.
Veem-se ali os bustos de muitos dos grandes vultos do teatro moderno e contemporâneo. É todo iluminado a luz elétrica. [...]" (³)

Vista da sala de espetáculos
O fato de ser o teatro dotado de luz elétrica era, para a época, sensacional. Hoje, quem o visita, irá admirar o primor dos detalhes, mas ficará surpreso com as dimensões do auditório, que é muito pequeno (para os nossos padrões), mostrando, em silenciosa discrição, que a elite que tinha acesso aos espetáculos sofisticados não era exatamente numerosa, ainda que apreciasse exibir seu poderio econômico.

Vista externa do Teatro Amazonas

(1) Na cidade de seu tempo, naturalmente.
(2) Do Rio de Janeiro, então capital da República.
(3) AMORIM, Aníbal. Viagens Pelo Brasil. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., pp. 156 e 157.


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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Rio Negro

Jovem barqueiro no rio Negro - AM

Muito apreciado no Século XIX, o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil, de J. O. R. Milliet de Saint-Adolphe (publicado em 1845, quando o jovem D. Pedro II já ocupava o trono), fornecia um grande número de informações sobre o País, há pouco independente, e sobre o qual havia, então, escassas notícias confiáveis. É certo, porém, que uma obra dessa natureza, quando muito do território brasileiro era completamente desconhecido, devia conter falhas e imprecisões, que, todavia, em nada desmerecem sua importância.
Vamos a um exemplo prático, com a descrição que o Dicionário fazia do rio Negro, afluente à margem esquerda do grande rio Amazonas:
"Rio da Província do Pará (...), chamado pelos indígenas Guariguacuru, nome que os primeiros exploradores portugueses trocaram no de Negro, por isso que suas águas com serem límpidas têm certa tinta escura, mormente se se comparam com as águas louras do Hiapura, com o qual corre paralelamente obra de 10 léguas antes de ajuntar-se com o Amazonas." (*)
"Certa tinta escura"?!!!...
O rio Negro, não tem, em seu leito, grande quantidade de partículas argilosas, já que suas águas correm por terreno rochoso. Além disso, em virtude da decomposição da grande quantidade de material orgânico que a floresta deposita ao longo de seu curso, há liberação de ácidos que também contribuem para a aparência escura da água, daí o nome - rio Negro. Essas são duas das explicações de maior aceitação atualmente.


Embarcação em viagem pelo rio Negro - AM

Saint-Adolphe não tinha, é claro, como percorrer por si mesmo, com todas as dificuldades de deslocamento que havia em seu tempo, todo o território que sua ambiciosa obra descrevia. Dependia de informações de outros autores, de alguns dados oficiais, de registros feitos por expedicionários das várias missões estrangeiras que andavam percorrendo o Brasil (coisa que, aliás, era moda, na época). O valor do seu Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil estava em sistematizar informações e atribuir-lhes relevância, fato que ganha maior significado se levarmos em conta que, no Século XIX, mesmo os brasileiros de maior instrução pouco sabiam sobre seu próprio país, dando antes preferência ao estudo e conhecimento de outras nações, em particular as da Europa.

(*) SAINT-ADOLPHE, J. O. R. Milliet de. Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil vol. 2. Paris: J. P. Aillaud, 1845, p. 147.


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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Palafitas

Palafitas nas imediações do porto de Manaus - AM (Rio Negro)

Palafitas, como se sabe, são casas construídas sobre estacas, em áreas facilmente inundáveis, para evitar que as águas atinjam as habitações. Podem, com variações, ser encontradas em diversos lugares deste planetinha. Um deles é a região amazônica.
Em fins da terceira década do Século XIX, Hércules Florence, desenhista francês que participou da Expedição Langsdorff, escreveu:
"Tem o Amazonas, como o Nilo e o Paraguai seus transbordamentos periódicos, pelo que são essas casas edificadas sobre estacas. Durante as inundações as visitas se fazem em canoas, podendo penetrar até debaixo do alpendre ou dentro do corredor das habitações. Quando há festança, na frente se vê uma verdadeira flotilha de canoas." (*)
O tempo passou, mas as palafitas, enquanto técnica de construção de casas, resistiram. Podem ser vistas ainda na Amazônia, malgrado a intenção de fazê-las desaparecer de certas áreas, em razão, supostamente, de algumas propostas relacionadas a uma famosa competição mundial de futebol ocorrida em meados de 2013. 
Conforme me explicou um morador local, "meninos aqui aprendem primeiro a nadar e, só depois, a andar". Exagero, talvez, mas reforça o fato de que as palafitas sobrevivem, até porque são perfeitamente adequadas ao regime das águas dos rios que formam o grande complexo amazônico. Pelo visto, terão vida muito longa.

Palafitas não muito longe de Manaus - AM. Para a população ribeirinha, uma casa-barco
pode também ser uma solução muito eficiente (observe, à direita).

(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 272.


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