domingo, 30 de outubro de 2011

Sepultamentos em igrejas e cemitérios: costumes antigos e novos

"Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!"
                                                      Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

Seguindo o costume então vigente em muitas regiões da Europa, os colonizadores estabelecidos no Brasil a partir do século XVI tinham a preferência, sempre que possível, por serem sepultados no interior de igrejas e capelas, sendo frequentes, nesse sentido, as disposições testamentárias. Isso se devia a uma certa esperança, fruto da religiosidade popular, de que, sendo o corpo sepultado dentro dos limites do sagrado, próximo aos ossos de homens tidos como santos (padres, frades, etc.), aumentassem as possibilidades de uma ida precoce às moradas da bem-aventurança (nada novo, o fenômeno já ocorria nas famosíssimas catacumbas de Roma). Acrescente-se ainda que os testamentos do período colonial eram geralmente enfáticos em determinar a contínua celebração de missas em sufrágio da alma do testador, para o que, no caso de gente abastada, se fazia generosa provisão de recursos, ou se invocava a solidariedade e os temores de parentes e amigos, quando não se tinha muito a legar. Demais disso, era amplamente desejado o sepultamento próximo aos ancestrais, e as igrejas das pequenas povoações constituíam-se em espaço privilegiado para esse objetivo.
Sucede que, à medida que as povoações tornaram-se maiores (em termos populacionais), ficou quase impossível sepultar em igrejas todos os moradores que faleciam, mesmo quando se tratava de membros de confrarias religiosas, daí surgirem pequenos cemitérios anexos aos templos, ao mesmo tempo em que se reservava a inumação no interior das igrejas apenas para figuras mais importantes. Desse mesmo fenômeno decorreu um outro, macabramente curioso: as igrejas, já pequenas para os mortos, tornaram-se insuficientes também para os vivos. A partir disso, em vez de conservar as pequenas igrejas e construir outras, ocorreu em muitos lugares que a primitiva edificação fosse posta abaixo para dar lugar à nova, aparecendo, como seria óbvio, a questão quanto ao que fazer com as ossadas que estavam sepultadas no edifício fadado à demolição. Geralmente coletavam-se os ossos para que recebessem sepultura em outro local, mas com frequência sucedia ser impossível assegurar que tudo se recolhesse com perfeição, daí surgindo muita lenda para aterrorizar os supersticiosos.
Posteriormente, preocupações higienistas, aliás bastante justificadas, apontaram a inconveniência da manutenção de cemitérios em meio às áreas densamente povoadas, particularmente quanto estes ficavam nas imediações dos locais de suprimento de água para a população. Este fato, aliado à necessidade de fornecer mais vagas para novos "moradores", contribuiu para diminuir o uso, em áreas urbanas mais desenvolvidas, dos cemitérios anexos às igrejas, havendo, quanto a isso, um outro fator decisivo, o da separação entre Igreja e Estado desde a proclamação da República, que levou à instituição de cemitérios preferencialmente longe das áreas centrais, administrados pelo poder civil e não mais por instituições eclesiásticas, como sucedia anteriormente.

Muitos cemitérios brasileiros têm, à entrada, palavras referentes à crença na ressurreição
 dos mortos.
Este, entretanto, é diferente...
(Entrada do Cemitério de Paraibuna - SP)

Veja também:

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sepultamento bandeirante - o "embalsamamento do sertão"

Um bandeirante, de acordo com a decoração
externa 
(em azulejos) da
Igreja Matriz de Santo Antônio em 
Paraibuna - SP
Chamamos hoje "bandeirantes" aos homens que, nos Séculos XVII e XVIII,  fosse para aprisionar índios, procurar ouro e pedras preciosas ou ainda realizar ataques encomendados contra quilombos, metiam-se sertão adentro, sem prazo determinado para retornar à sua vila natal, que podia ser São Paulo, Santana de Parnaíba, Taubaté, Sorocaba ou qualquer outra na então Capitania de São Vicente. Ficavam anos e anos no mato, o que resultava, frequentemente, que alguns morressem antes de tornar a casa. Em tempos de uma certa religiosidade, nos quais pensava-se que ser sepultado em campo consagrado era condição essencial para que a alma pudesse chegar algum dia ao paraíso (gente assim já dava o purgatório como coisa assegurada...), julgava-se importante que o bandeirante falecido em campanha pudesse receber um funeral cristão. Mas como?
A engenhosidade intervinha nesse caso, de modo que os que lhe sobreviviam, filhos ou outros parentes, realizavam o que se chamava de embalsamamento do sertão, que consistia no seguinte procedimento: o morto era enterrado em cova rasa, sobre a qual acendia-se uma fogueira que devia arder ininterruptamente, até que do cadáver restassem tão somente os ossos. Começava aí a segunda parte do processo, na qual os ossos eram desenterrados e limpos, depois do que recebiam a conveniente mortalha (que os bandeirantes, precavidamente, levavam em suas viagens). Um saco de couro ou mesmo um baú podia ser seu invólucro temporário, até que, finda a expedição, os companheiros do falecido retornassem à povoação de origem e, com todo o cerimonial religioso costumeiro, os ossos fossem finalmente depositados no túmulo definitivo, quase sempre no interior de uma igreja ou capela.


Veja também:

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sepultamentos indígenas - Parte 2

                                         "Já o cadáver dentro da igaçaba,
                                             Com as guerreiras armas de que usara,
                                             Tinha sido enterrado em funda cova.
                                             De Comorim o irmão e os companheiros
                                             Com lentos passos, e as cabeças curvas,
                                             E os olhos para o chão, em pranto envoltos,
                                             Já para a sepultura vão levando
                                             Toscas pedras p'ra o tosco monumento."

                                                                                Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


O contato cada vez mais frequente (embora nem sempre pacífico) entre colonizadores europeus e povos indígenas levou os primeiros à aquisição de um maior conhecimento dos costumes dos nativos da América. É fácil perceber isso, se compararmos os relatos deixados desde o século XVI: o nível de informações é gradualmente elevado, de modo que, através desses documentos, podemos ter uma ideia de como viviam os ameríndios quando a influência dos colonizadores sobre suas tradições ainda era pouca ou nenhuma. Isso é válido, certamente, para o assunto que estamos investigando desde a postagem anterior, ou seja, os sepultamentos indígenas e os rituais que os cercavam.
Pero de Magalhães Gândavo, que escreveu ainda no século XVI, tinha um conhecimento limitado do universo dos povos indígenas (dos quais, ao que parece, desconhecia a enorme diversidade cultural). Ainda assim, deixou esta observação:
"Quando algum destes índios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado sobre os pés, com sua rede às costas em que dormia, e logo pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova." (¹)
Já Frei Vicente do Salvador, ao que se sabe o primeiro historiador nascido no Brasil, escrevendo durante o século XVII e, possivelmente, beneficiando-se das informações adquiridas pelos missionários ao relacionar-se com seus catecúmenos, anotou:
Urna mortuária indígena contendo ossos (²)
"Tanto que algum morre o levam a enterrar, embrulhado na mesma rede em que dormia, e a mulher, filhas e parentas, se as tem, o vão pranteando até a cova com os cabelos soltos lançados sobre o rosto, e depois o pranteia a mulher muitos dias; mas se morre algum principal da aldeia, o untam todo de mel, e por cima do mel o empenam com penas de pássaros de cores e põem-lhe uma carapuça de penas na cabeça com todos os mais enfeites que ele costumava trazer em suas festas, e fazem-lhe na mesma casa e rancho onde morava uma cova muito funda e grande, onde lhe armam sua rede e o deitam nela assim enfeitado com seu arco e flechas, espada e tamaracá, que é um cabaço com pedrinhas dentro, com que costumam tanger, e fazem-lhe fogo ao longo da rede para se aquentar, e põem-lhe de comer em um alguidar e a água em um cabaço, e na mão uma canguera, que é um canudo feito de palma cheio de tabaco, e então lhe cobrem a cova de madeira e de terra por cima, que não caia sobre o defunto, e a mulher por dó corta os cabelos e tinge-se toda de jenipapo, pranteando o marido muitos dias, e o mesmo fazem com ela as que a vêm visitar, e tanto que o cabelo cresce até lhe dar pelos olhos o torna a cortar e a tingir-se de jenipapo, para tirar o dó, e faz sua festa com seus parentes e muito vinho.
O marido, quando lhe morre a mulher, também se tinge de jenipapo, e quando tira o dó se torna a tingir, tosquia-se e ordena grandes revoltas de cantar e bailar e beber, nestas festas se cantam as proezas do defunto ou defunta e do que tira o dó, e se morre algum menino filho do principal o metem em um pote, posto em cócoras, atados os joelhos com a barriga, e enterram o pote na mesma casa, debaixo do chão, e ali o choram muitos dias." (³)
E, já no século XIX, o Padre Ayres de Casal, tratando especificamente dos índios Coroados (segundo esse autor, descendentes dos Goitacases e, de todo modo, habitantes de áreas que pertenceriam aos atuais Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo), escreveu:
"Enterram os mortos assentados. Antigamente sepultavam os caciques encolhidos dentro de grandes vasos de barro cilíndricos, denominados camucis, dos quais se tem desenterrado alguns ainda com ossos." (⁴)

Urna mortuária de um chefe dos índios Coroados, segundo Debret (⁵)
Isso não dá conta da enorme variedade de costumes que os povos indígenas apresentavam em relação à morte e sepultamento, mas contribui para reforçar um fato interessante, já mencionado na postagem anterior - um certo compartilhar de hábitos presentes em muitas e diferentes sociedades humanas ao longo do tempo, como é dar demonstrações públicas de luto, sepultar o morto com seus pertences, colocar alimentos sobre a sepultura e realizar algum tipo de banquete funerário.

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. 
(2) Pertence ao acervo do Museu Histórico da Cidade de Salto (SP), a cuja direção agradeço a permissão para tirar fotografias.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do.  História do Brasil.
(4) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.
(5) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

domingo, 23 de outubro de 2011

Sepultamentos indígenas - Parte 1

Os primeiros contatos entre portugueses e indígenas envolveram altas doses de medo e curiosidade de ambas as partes - medo por causa do desconhecido, curiosidade pela mesma razão. O passar do tempo mudou a percepção desse relacionamento, mas pode-se dizer que, inicialmente, os europeus que escreveram sobre a população nativa da América tinham uma visão bastante limitada e por isso mesmo, distorcida, dos povos indígenas, cuja diversidade era dificilmente captada. Assim, é comum que nos escritos do século XVI haja generalizações absurdas, embora, gradualmente, possamos ir encontrando melhores informações, devidas, em grande parte, às observações de missionários, gente que tinha coragem suficiente para ousar a ultrapassagem de barreiras culturais, indo viver com índios, aprendendo deles os costumes e a língua, enquanto eram feitos esforços para atraí-los à sua fé, o que podia significar, finalmente, a supressão de muito dos antigos costumes nativos, à medida que as populações eram organizadas em "missões" ou "reduções", sob normas estritas de conduta, segundo valores europeus, quanto à organização da família, trabalho e rotina diária.
Sepultamento indígena, segundo Rugendas (*)
Essas considerações são válidas sob os mais diversos aspectos da cultura dos povos indígenas, inclusive no que tange às práticas de sepultamento.
A despeito disso, há uma referência muito interessante a um cemitério indígena no Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, escrito entre 1530 e 1532. Entretanto, com quase toda certeza, os indígenas em questão eram habitantes do território do atual Uruguai, e não do Brasil. Conforme veremos, porém, na próxima postagem, havia muito em comum nas práticas adotadas pelas diversas "tribos", ainda que um bom número de particularidades também. Mas vamos ao relato de Pero Lopes:
"E andando pela terra em busca de lenha para nos aquentarmos fomos dar num campo com muitos paus tanchados e redes, que fazia um cerco, que me pareceu à primeira que era armadilha para caçar veados; e depois vi muitas covas fuscas, que estavam dentro do dito cerco de redes; então vi que eram sepulturas dos que morriam, e tudo quanto tinham lhe punham sobre a cova, porque as peles, com que andavam cobertos, tinham ali sobre a cova, e outras maças de pau, e azagaias de pau tostado, e as redes de pescar e as de caçar veados; todos estavam em contorno da sepultura, e quisera mandar abrir as covas; depois houve medo que acudisse gente da terra, que o houvesse por mal. Aqui juntas estariam trinta covas. Por não podermos achar outra lenha mandei tirar todos os paus das sepulturas, mandei-os trazer para fazermos fogo, para se fazer de comer com dois veados, que matamos, de que a gente tomou muita consolação."
Expliquemos: Pero Lopes e outros marinheiros haviam sido enviados por Martim Afonso de Sousa (irmão de Pero Lopes e líder da Expedição) a explorar a região do estuário do Rio da Prata. Acontece que, sendo época extremamente desfavorável em termos de clima, sofreram grandes tempestades, quase morreram todos afogados, alguns morreram de fato por doenças e todos passaram muita fome. É este o contexto em que o navegador, ainda que temendo a justa vingança dos nativos, mandou remover a madeira existente no cemitério para preparar alimento aos esfomeados exploradores.
Talvez algum leitor fique chocado ante a ideia de que, não fossem as circunstâncias, Pero Lopes teria ordenado a violação das sepulturas, provavelmente por curiosidade, para ver o que havia dentro. Não é isso, todavia, o que se faz a cada novo túmulo de faraó descoberto no Egito ou em qualquer outro sítio arqueológico mundo afora?
O que deve ser notado, aqui, é o costume de sepultar o morto com seus pertences, o que era, diga-se de passagem, um hábito quase planetário, do qual os túmulos dos faraós egípcios são, talvez, o exemplo mais destacado. Esse costume ainda sobrevive em diversas culturas.

(*) RUGENDAS, Moritz Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Celulares, telefones, cartas e... Fofoca

Um dia desses alguém me falava de sua irritação diante de adolescentes, eles e elas, "colados" em um celular a qualquer hora do dia ou da noite. "Como é que arranjam tanto assunto?", dizia meu interlocutor.
Pois bem, leitores, o fenômeno não é novo e não começou com a telefonia móvel. A peçazinha em porcelana que se vê logo abaixo é dos anos quarenta (do século XX, claro), e ilustra bem o caso:

"Moça ao Telefone", c. 1940 (¹)

Como se vê, a menina está "colada" ao telefone, e o fenômeno devia ser frequente o bastante para ser eternizado em uma peça de decoração. Mas, dirá alguém, antes que se inventasse o telefone...
Antes que se inventasse o telefone, havia, por exemplo, o correio urbano, na Corte do Império do Brasil. Para dar ideia de como é que isso funcionava, selecionei três trechinhos da obra de Joaquim Manuel de Macedo, que tão bem retratou o Rio de Janeiro da época. Divirtam-se com eles, e vejam como o fenômeno se repete:

1. "E por último propuseste-lhe vir esta noite ao Teatro Provisório, no que Helena conveio logo, porque uma cartinha anônima levada pelo correio urbano já lhe havia anunciado em que camarote poderia ver a rival feliz." (²)

2. No dia seguinte Violante recebeu pelo correio urbano três cartas anônimas.
Na primeira Ambrósio e Claudiano eram postos pela rua da amargura: suas famílias, seu caráter e seus costumes eram horrivelmente despedaçados; em metade da carta predominava a verdade, na outra metade a calúnia espalhava veneno. Na segunda as vítimas eram Antônio e Claudiano, na terceira Antônio e Ambrósio. Cada um dos pretendentes tinha escrito a sua carta anônima. (³)

3. CRIADO - Pelo correio urbano uma carta para a sra. Susana (Teófilo e Júlia conversam)
TEODORA - Uma carta para minha tia!... Que novidade!...
FIRMINO (tomando a carta a Teodora) - Não conheço a letra do subscrito.
TEODORA - Nem eu.
FIRMINO (a Teodora) - Desconfio desta carta: não a devemos entregar.
TEODORA (a Firmino) - Cuidado! Teófilo está presente e talvez nos observe... não seria bonito...
FIRMINO (ao criado) - Leva a carta à sra. d. Susana (vai-se o criado) É a primeira vez que a nossa velha tia recebe carta pelo correio... o fato nos tornou curiosos.
TEÓFILO - Ah! (⁴)

Conclusão: Mudam os instrumentos, a fofoca permanece. Aliás, vale recordar que fofoca e maledicência não são a mesma coisa. A segunda é perversidade, já a primeira, pode até ser fator de coesão social. Quem ousaria discordar? Talvez alguém suficientemente desagradável para nunca experimentar o sabor de repassar alguma.

(1) Pertencente ao acervo do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira, SP. Peça de fabricação da Cerâmica Santana.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Remissão de Pecados.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Os Romance da Semana.
(4) MACEDO, Joaquim Manuel de. Uma Pupila Rica.


Veja também:

terça-feira, 18 de outubro de 2011

1852: Um "carregamento" de imigrantes está vindo ao Brasil...

Na postagem anterior tratei da questão do transporte de africanos escravizados para o Brasil nos chamados "navios negreiros". Agora, para quem acha que a mentalidade escravocrata desapareceu com o incentivo à imigração de colonos europeus, que deveriam, como se supunha na época, gradualmente substituir o trabalho escravo, tenho hoje uma preciosidade, um anúncio que apareceu no jornal Aurora Paulistana, edição de domingo, 29 de agosto de 1852:

  
Que tal? "Durante o corrente mês de agosto esperam dois carregamentos..."
O que é isso? Carregamentos de seres humanos? Seriam eles, os colonos, a mais nova mercadoria a ser negociada no mercado brasileiro, incipiente em quase tudo, menos quando se tratava de gente para trabalhar?
Creio caberem aqui, ao menos duas considerações:
1. Sobre a pretendida substituição do trabalhador escravo, de origem africana, por imigrantes europeus, o que é que imaginavam, políticos e fazendeiros (muitas vezes as duas coisas numa pessoa só), que iria ocorrer com os escravos existentes? Iriam desaparecer por encanto? Iriam morrendo aos poucos e então sendo substituídos? Ou teriam alguns a veleidade de vê-los embarcar de retorno à África (o que, aliás, em poucos casos, aconteceu mesmo)?
2. A partir de tudo o que se sabe sobre a escravidão e sobre o relacionamento entre fazendeiros e colonos europeus (que resultou em confrontos famosos, como a revolta ocorrida em Ibicaba, conforme o relato de Thomas Davatz, além de muitos outros), reforça-se apenas o fato de que trabalhadores, qualquer que fosse sua condição, eram tratados não segundo sua dignidade de seres humanos, mas como mão de obra a ser explorada, uma consequência da velha e péssima ideia de que trabalho era coisa degradante - entre os fidalgos europeus, trabalho manual fazia perder o status de nobreza; no Brasil Colonial, os cargos administrativos importantes só podiam ser ocupados por quem era "nobre" o suficiente para não precisar trabalhar, o que significava, por consequência, ter mãos escravas que o fizessem em seu lugar.
Quem poderia duvidar de que, nesses dois pontos, encontram-se as causas de muitos problemas que persistem no Brasil atual?

domingo, 16 de outubro de 2011

Os "navios negreiros", embarcações que transportavam africanos escravizados

                                                                                                           "Era um sonho dantesco... o tombadilho
                                                             Que das luzernas avermelha o brilho.
                                                             Em sangue a se banhar.
                                                             Tinir de ferros... estalar de açoite...
                                                             Legiões de homens negros como a noite,
                                                             Horrendos a dançar..."
                                                                                                               Castro Alves, O Navio Negreiro

"Navio negreiro" era o nome dado a qualquer embarcação que fizesse a famosa "carreira da África", o que significava, nem mais, nem menos, que arrancar gente, obviamente à força, de sua terra de origem, trazendo-a para trabalhar, quase sempre sob tortura, em um ponto distante - o que podia significar o Brasil, as colônias inglesas na América do Norte, até mesmo países europeus, ou outro lugar qualquer.

Interior de um navio negreiro, de acordo com Rugendas (¹)

A viagem, por si, já era um enorme pesadelo. A melhor descrição que conheço está em Negras Raízes, do jornalista americano Alex Haley, cuja leitura recomendo a quem tiver estômago e sangue frio suficientes para ir até a última página. Pode-se com facilidade calcular todo o horror da falta de higiene, proliferação de doenças e contato com os corpos dos que não resistiam à travessia do Atlântico, até que fossem "descobertos" e jogados no mar.
Quantos africanos escravizados viajavam em um desses navios? A resposta depende, por suposto, do tipo de navio empregado. Sabemos, por exemplo, que em uma caravela do século XVII podiam passar de cento e cinquenta "peças", pelo que se depreende deste relato de Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil (relato esse relacionado ao contexto das tentativas holandesas de ocupação das regiões açucareiras do Nordeste):
"Em dezenove de abril desta era de mil seiscentos e vinte e seis apareceram na boca desta barra da Bahia, junto ao morro, três naus holandesas de força, uma das quais trazia trinta peças de artilharia grossa e cento e quatro homens de guerra; meteu no fundo uma caravela, que vinha de Angola, de que era mestre Antônio Farinha, vizinho de Sesimbra, por não querer amainar, mas salvaram-lhe toda a gente branca e alguns negros, de cento e setenta que trazia, e os trouxeram onze dias consigo, fazendo-lhes boa companhia [...]."
Entretanto, leitor, o correr do tempo trouxe consigo o desenvolvimento de embarcações maiores, o que significou, consequentemente, que a cada viagem era possível trazer um número mais elevado de escravos, mesmo se considerarmos a proporção dos que nunca chegavam ao destino. Aliás, chega a ser surpreendente o número dos que sobreviviam, diante das condições de transporte. Há, sobre isso, um trecho do diário da Expedição Langsdorff, anotado pelo desenhista Hércules Florence que deixa entrever algo das condições de saúde dos escravos por ocasião do desembarque:
"Numa sumaca chamada Aurora, que fazia viagens de cabotagem, partimos da cidade do Rio de Janeiro no dia 3 de setembro de 1825. O tempo mostrava-se favorável para depressa alcançarmos Santos, 40 léguas a SO; não estávamos, contudo, a cômodo nesse acanhado barco, tanto mais quanto, além das cargas e da bagagem nossa que levava, transportava 65 escravos, negros e negras, recentemente introduzidos d'África e todos cobertos duma sarna, adquirida na viagem, que, exalando grande fétido, poderia nos ter sido nociva, caso durasse mais o contato a que ficamos obrigados e fora a atmosfera calma e parada." (²)

Desembarque de escravos, segundo Rugendas (¹)

Ainda que de passagem, cabe observar aqui o péssimo estado dos transportes no Brasil em 1825, ligando a Corte (Rio de Janeiro) à Província de São Paulo (Santos), sem falar no descaso absurdo com questões sanitárias, que podiam afetar toda a população, fosse ela livre ou cativa. Mas, voltando ao assunto principal, não nos esqueçamos de que o tráfico sustentou-se por séculos simplesmente porque era altamente lucrativo - para a Coroa, que cobrava impostos, para os traficantes, mas também para quem, em nossa lógica do século XXI, nos pareceria menos provável - conforme descobrimos por uma observação deixada por Varnhagen:
"O tráfico servia até imoralmente, como ainda em nossos tempos as loterias, a favorecer os estabelecimentos de piedade, concedendo-se a alguns várias preferências para embarcarem por sua conta para o Brasil certo número de peças, em cada ano, antes que outros negreiros." (³)
Em uma irônica e abusiva contradição, seres humanos eram privados da liberdade para o sustento de casas de filantropia. O que mais resta a dizer?

(1) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 1.
(3) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 794.


Veja também:

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Mantilha, vestimenta feminina no Período Colonial, embora houvesse exceções

"Ambrosina, vestida de negro e embiocada em mantilha, entrou na estalagem pelo braço do poeta."
                                                                                                Aluísio Azevedo, A Condessa Vesper

No Brasil colonial, a população de origem europeia era usualmente muito conservadora em questões de vestuário, em particular quanto ao que era tido como apropriado para homens e mulheres. Apesar disso, situações extremas podiam ensejar exceções às rígidas normas sociais vigentes, como veremos ter ocorrido em dois curiosos episódios do século XVI.

Episódio 1, ocorrido no Rio de Janeiro, ano de 1582:

"Daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao Rio de Janeiro, e surgiram junto ao baluarte que está no porto da cidade, dizendo que iam com uma carta de Dom Antônio para o Capitão Salvador Corrêa de Sá, o qual nesta ocasião era ido ao sertão fazer guerra ao gentio; mas o administrador Bartolomeu Simões Pereira, que havia ficado governando em seu lugar, e estava informado da verdade pela carta do Governador Geral, lhes respondeu que fossem embora, porque já sabia quem era seu rei; e porque a cidade estava sem gente, e não havia mais nela que os moços estudantes e alguns velhos, que não puderam ir à guerra do sertão, destes fez uma companhia, e Dona Inês de Sousa, mulher de Salvador Corrêa de Sá, fez outra de mulheres com seus chapéus nas cabeças, arcos e flechas nas mãos, com o que, e com o mandarem tocar muitas caixas, e fazer muitos fogos de noite pela praia, fizeram imaginar aos franceses que era gente para defender a cidade, e assim ao cabo de dez ou doze dias levantaram as âncoras e se foram." (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil)
Uma mulher usando mantilha, segundo
Joaquim Lopes de Barros (*)
Em breve narração somos informados quanto a algumas coisas importantes: a população masculina de algumas regiões coloniais vivia a correr mato com a intenção de apresar índios para a escravidão, sendo a guerra "justa" frequentemente apenas um pretexto; as cidades litorâneas eram precariamente defendidas contra eventuais tentativas de invasão; as comunicações eram igualmente precárias, fato evidenciado pela questão de quem seria o rei de Portugal naquele momento, lembrando que o contexto aqui é o do início da chamada "União Ibérica", que durou de 1580 a 1640. Mas o que realmente nos interessa é que, diante da ameaça de ocupação francesa do Rio de Janeiro, as mulheres que habitavam a cidade e que viviam, por assim dizer, semirreclusas e, conforme os severos costumes da época, apenas apareciam em público usando mantilhas que cobriam os cabelos, parte do rosto, ombros, etc., etc., etc., não tiveram dúvidas em disfarçar-se de modo a parecerem homens que defendiam a cidade (e homens indígenas, já que portavam arcos e flechas) e, ao que parece, o estratagema deu bons resultados.

Episódio 2, c. 1587, cidade do Salvador, Bahia:

"Pouco tempo depois de começarem a governar o Bispo e Cristóvão de Barros, entraram subitamente nesta Bahia duas naus e uma zavra de ingleses com um patacho tomado, que havia dela saído para o Rio da Prata, em que ia um mercador espanhol chamado Lopo Vaz; tanto que chegaram, tomaram também os navios que estavam no porto, entre os quais estava uma urca de Duarte Osquer, mercador flamengo que aqui residia, com marinheiros flamengos, que voluntariamente lha entregaram e se passaram aos ingleses, e logo todos começaram as bombardadas à cidade tão fortemente que, desanimados e cheios de medo, os moradores fugiram dela para os matos, e posto que o bispo pôs guardas e capitães nas saídas, que eram muitas, porque não estava murada, para que detivessem os homens e deixassem sair as mulheres, muitos saíram entre elas de noite, e algum com manto mulheril, e esses poucos que ficaram pediram ao bispo que fizesse o mesmo, ao que acudiu um venerável e rico cidadão chamado Francisco de Araújo, requerendo-lhe da parte de Deus e de el-Rei não deixasse a terra, pois não só era bispo mas governador dela, e que se a gente era fugida, ele com a sua se atrevia a defendê-la." (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil)
Este segundo caso é, em essência, semelhante ao primeiro, já que, mais ou menos contemporâneo, tem como pano de fundo outra tentativa de ocupação, desta vez por ingleses, novamente ficando clara a precariedade das possibilidades defensivas das povoações litorâneas. Ocorre, porém, que, ao contrário do que ocorreu em 1582 no Rio de Janeiro, aqui a população também se utilizou de indumentária do sexo oposto - entrando em cena as famosas mantilhas - não para a defesa da cidade, mas para fugir, um expediente que viria a ter muito uso no futuro, quando recrutamentos forçados se instituíssem, como ocorreu, por exemplo, no século XIX, ao tempo da Guerra do Paraguai.

(*) Costumes do Brasil - o original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Senhores de engenho: ainda que poderosos, nem sempre bem-vestidos

"Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais da ideia.
- Havemos de falar nisso outra vez, disse Melchior; por que não vai ao nosso engenho?"
                                                                                                                            Machado de Assis, Sales

Se considerarmos a hierarquização social do Brasil no período colonial e até mesmo no Império veremos que, na maior parte do tempo, os senhores de engenho reinaram absolutos. Donos das grandes propriedades que não apenas cultivavam cana mas, principalmente, produziam o valorizado açúcar, esses homens ocupavam posição com a qual sonhavam quase todos colonizadores. Eram respeitados, sua vontade era decisiva não apenas no âmbito de sua família ou de seu engenho, mas sobre toda a população que, de uma maneira ou outra, dele dependia - cultivadores de cana, trabalhadores livres, moradores das povoações adjacentes e, por suposto, escravos, fossem de origem africana ou indígena.
É legendária a observação de Antonil: "O ser Senhor de Engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser Senhor de Engenho, quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino." (¹)

Engenho Junqueiro, aquarela de F. S. Scholla, 1844 (²)
Ninguém deve imaginar, no entanto, que esses poderosos da Colônia viviam em luxo extremado. Ao contrário, como em toda a vida rural do período, a simplicidade era a regra. Mais de um século depois de Antonil, um outro registro, esta vez de Auguste de Saint-Hilaire, retrata o modo de vida de um senhor de engenho do Rio de Janeiro e, embora seja provável que o naturalista francês tivesse em mente um senhor em particular, é perfeitamente razoável entender que outros senhores viviam de modo semelhante. Vejamos:
"A posse de engenho de açúcar confere entre os lavradores do Rio de Janeiro como que uma espécie de nobreza. De um "Senhor de Engenho" só se fala com consideração e adquirir tal preeminência é a ambição geral. [...]
Em casa usa roupa de brim, tamancos, calça mal amarrada e não põe gravata; enfim, indica-lhe a toilette que é amigo do comodismo.
Mas, se monta a cavalo e sai, é preciso que o vestuário lhe corresponda à importância e então enverga o jaleco, as calças, as botas luzidias, usa esporas de prata, cavalga sela muito bem tratada.
Um pajem negro fardado com uma espécie de libré, é-lhe de rigor. Empertiga-se, ergue a cabeça e fala com a voz forte e o tom imperioso que indicam o homem acostumado a mandar em muitos escravos." (³)
Malgrado o intervalo de tempo e de lugar - um trecho é do início do século XVIII, outro do XIX, um refere-se particularmente ao Nordeste açucareiro, outro ao Rio de Janeiro - há evidentes similaridades entre essas citações. A alta posição social que ocupavam, a admiração geral proporcionada pela condição de senhor, o mandar sem contestação, todas características muito valorizadas em uma sociedade em que o trabalho manual era visto como próprio de camadas baixas, contrastam com as observações de Saint-Hilaire quanto ao prosaico trajar dentro de casa (⁴). Afinal, o que contava mesmo era a aparência diante do público, e quanto a isso (depreende-se facilmente do texto), os senhores eram sempre muito cuidadosos. Toda essa pompa e autoridade que permeavam o imaginário popular somente viriam e encontrar concorrência à altura nos poderosos Barões do Café. Mas isso, só mesmo na segunda metade do século XIX. 

(1) ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
(2) O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 17.
(4) Ainda sobre a questão do vestuário dos moradores da casa-grande, escreveu Capistrano de Abreu:
"O dono da casa-grande, como toda a população masculina, exceto quando viajava, andava de ceroula e camisa, geralmente com rosários, relíquias, orações cuidadosamente cosidas e escapulários ao pescoço. Nas ocasiões solenes, recebendo visitas, revestia-se de quimão, timão ou chambre. "Quando um brasileiro põe-se a usar um desses hábitos talares começa a se considerar personagem importante (gentleman) e com título portanto a muita consideração", informa Koster. A roupa caseira das mulheres constava de camisa e saia; o casebeque só apareceu mais tarde."
(ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998 p. 204)


Veja também:

domingo, 9 de outubro de 2011

As povoações do Litoral Norte e o prejuízo causado por uma lei absurda

No trechinho da Corografia Brasílica do Pe. Ayres de Casal que nos serviu de ponto de partida para uma pequena visita à Igreja Matriz de São Sebastião, no litoral norte de SP (veja postagem anterior), é dito sobre a então vila de S. Sebastião que nela "pode florescer uma agricultura assaz variada; e que esteve largos anos quase abandonada por causa de não se permitir aos fazendeiros a liberdade de exportar as suas produções para onde melhor interesse lhes fizessem." (¹)
Um levantamento de dados da época nos mostra qual foi a exportação da citada vila entre 1801 e 1807:
Vista do centro histórico da
cidade de São Sebastião, SP
"Da vila de S. Sebastião saíram nos mesmos anos açúcar, aguardente, arroz, feijão, farinha de mandioca, café, goma, anil, fumo, mel, algodão, azeite de peixe, tabuado, telhas, tijolo, louça grossa, peixe e miudezas, importantes em 113:588$000 réis." (²)
Avaliar o valor disso pelos padrões atuais não é muito simples, mas a diversidade de itens mencionados parece significativa para uma vila ainda pequena, embora a quantidade produzida pudesse ser maior, sob condições favoráveis. O que nos interessa é a razão disso, já que vários autores da época eram concordes em afirmar que muito mais poderia produzir não só São Sebastião, porém outras povoações litorâneas, não fora a interferência absurda do governador enviado a São Paulo em nome de Portugal, Antônio José da Franca e Horta. Espera-se dos governantes, ao menos em teoria, que administrem para o bem e prosperidade da população, mas, conforme veremos, este excedeu-se em obrar exatamente em sentido contrário.
"Proibindo o Governador Antônio José de Franca e Horta o comércio de cabotagem (³) das vilas da Província, por obrigar os seus traficantes e lavradores a levar os gêneros à Vila só de Santos, para daí se embarcarem diretamente aos portos da Europa, e não havendo na Praça de Santos mais que três ou quatro carregadores, eles depressa se uniram a armar um monopólio, taxando o preço dos efeitos aos lavradores, que de necessidade os haviam de vender. O resultado de tal deliberação foi a perda da lavoura da Vila de Ubatuba, que principia a florescer, e a ruína das outras marítimas, até que depois de anos, cessou esse mal com a feliz chegada do Senhor D. João VI ao Rio de Janeiro." (⁴)
Muito já se discutiu sobre as reais intenções do governador Franca e Horta. É verdade que, por aqueles tempos, as autoridades portuguesas eram quase neuroticamente obcecadas por coibir o descaminho do ouro das Gerais (⁵), ouro cada vez mais reduzido pelo emprego de métodos pouco eficientes de extração, de modo que, em um primeiro momento, imagina-se que, ao vetar a navegação de cabotagem, geralmente empreendida em pequenas embarcações mediante o uso de pequenos portos, o dito governante estava apenas fazendo o que dele se esperava, já que ouro para cobrir as contas do Reino seria, em seu modo de ver, a coisa mais importante que a colônia podia enviar à Metrópole. Todavia, nos mesmos anos de seu governo não faltou quem o acusasse de estar em pacto ilícito com os contratadores de Santos, que sendo poucos e detendo o monopólio, podiam pagar pouco pelas mercadorias adquiridas, comercializando-as, posteriormente, por quanto quisessem - um verdadeiro "negócio da China", como diriam os antigos...
Ocorre que, seja lá o que fosse que andasse a passar pela cabeça do detestado governador, cujo currículo, se devemos crer em testemunhos a ele contemporâneos, incluía perseguições, bisbilhotices e extorsões sem conta, os pequenos produtores das áreas litorâneas, impedidos de fazer a seu gosto o comércio do que produziam e recebendo pelo que vendiam aos de Santos valores ínfimos, viram-se em completo desestímulo para produzir qualquer coisa que não fosse destinada ao consumo local. Afinal, os produtores de São Paulo (que obviamente não tem porto marítimo) viviam às turras com os comerciantes de Santos, de cujo porto dependiam para suas exportações, desde tempos tão remotos quanto o século XVII.
Ao menos legalmente, porém, as coisas, quanto a este assunto, logo poderiam mudar. Chegado ao Brasil no início de 1808, o Príncipe-Regente D. João (mais tarde D. João VI) apressou-se em decretar a famosa Abertura dos Portos às Nações Amigas, e as povoações do Litoral Norte viram-se, com isso, surpreendentemente libertas da ridícula imposição de Franca e Horta. Ainda assim, o famigerado homem conseguiu manter-se no posto de capitão-general por tempo considerável, mesmo que suas atitudes fossem frequentemente censuradas.

(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica vol. 1, 1ª ed. 1817, p. 238.
(2) ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das Províncias Anexas à Jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil vol. VIII. Rio de Janeiro: Tipografia Silva Porto, 1822, p. 277.
(3) Navegação costeira.
(4) ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro. Op. cit.,, pp. 277 e 278.
(5) Sobre o contrabando de ouro não quintado, Saint-Hilaire registrou: "os contrabandistas acham meios de se subtraírem e chega ao Rio de Janeiro muito mais ouro em pó do que fundido nas intendências." É bom observar que o naturalista francês fez tal anotação em princípios de 1822.
SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 77.


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A pequena Matriz de São Sebastião, uma igreja do Século XVII

"A Vila de S. Sebastião, assim chamada do padroeiro de sua Matriz, é ainda pequena, de casaria mesquinha, e ruas de areia. Está sobre o Estreito de Toque-Toque em frente da ilha do seu nome, junto à embocadura de um rio inconsiderável, no princípio de uma planície fértil, onde pode florescer uma agricultura assaz variada; e que esteve largos anos quase abandonada por causa de não se permitir aos fazendeiros a liberdade de exportar as suas produções para onde melhor interesse lhes fizessem.
Perto de uma légua a Leste em um sítio vistoso há um convento de Franciscanos, e junto dele um arraial denominado o Bairro: as mulheres ocupam-se em olarias; os homens, uns na pescaria, outros na cultura de vários comestíveis." (*)
A cidade de São Sebastião de hoje não corresponde, é claro, à descrição de Ayres de Casal (cuja obra foi publicada em 1817), mas a igrejinha ainda está lá, e é um exemplo bem interessante da arquitetura sacra seiscentista, simples, modesta, refletindo fielmente as condições de vida difíceis dos primeiros tempos da colonização, tempos nos quais a intensa religiosidade fazia da igreja o centro da vida social de um povoado, por isso mesmo demandando, ao ser edificada, o que de melhor houvesse à disposição. Daí o interesse dessa pequena edificação, conforme meus leitores podem ver nas fotos desta postagem.
O trecho citado da Corografia Brasílica faz referência ainda a entraves à exportação que impediam o desenvolvimento da agricultura - e diga-se, não apenas em São Sebastião, mas em todo o litoral norte em princípios do século XIX. Disso trataremos na próxima postagem. Por hora, ficamos com as fotos da igreja.

1. Fachada da Igreja Matriz de São Sebastião, edificada no século XVII:



2. Entrada principal:



3. Uma das portas laterais, através da qual se pode ver a espessura da parede:



4. Vista do interior da igreja:



5. Pia Batismal:



6. Vista externa da torre com sino:



(*) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 1, 1817, p. 238.


Veja também:

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A persistência da mentalidade escravista no Brasil após a Abolição - Parte 2

Concluindo o assunto iniciado na postagem anterior, veremos aqui as duas últimas imagens associadas à persistência da mentalidade escravista no Brasil, mesmo após a abolição do trabalho escravo. Diria, mesmo após muito tempo da abolição, já que essas duas imagens são, respectivamente, de 1919 e 1916, ambas publicadas na revista paulistana A Cigarra.

Imagem 1


Chega a ser repugnante fazer comentários, mas vale observar nesta propaganda, que apareceu na edição de 1º de dezembro de 1919 e em diversas edições posteriores, o detalhe da "reprodução da fala" do "moleque Benjamin". Note, a edição é de 1919, não um ou dois, porém mais de trinta anos após a Abolição.

Imagem 2 


Finalmente, para "coroar" esse capítulo absolutamente inglório da História do Brasil, esta imagem que foi capa de A Cigarra, edição da segunda quinzena de junho de 1926. Diz a Legenda: "Quando a patroa sai..."
Leitor, considerei aqui apenas umas poucas imagens que apareceram em uma única publicação. Quem convive com a realidade brasileira por certo não terá muita dificuldade em lembrar-se de trechos de músicas, de obras literárias e de outros cartuns que seguiam a mesma linha. O fato de que tudo isso não costumava gerar quaisquer protestos dá bem a ideia de quanto a mentalidade escravista ainda prevalecia, décadas após a abolição. Consegue identificar alguma coisa na mesma linha ainda hoje?

***

Sei que é perfeitamente possível que haja alguém, dentre meus leitores, que não concorde com a divulgação das imagens contidas nesta postagem e na anterior. A este leitor ou leitora gostaria de expor meu ponto de vista: as jovens gerações somente aprenderão a reconhecer o que há de abominável na apropriação do trabalho e até da própria existência de seres humanos por outros humanos, o que há de nojento nas manifestações racistas, se puderem estudar e conhecer o que ocorreu no passado. Não se trata, evidentemente, de nenhum "julgamento da História", como querem alguns, mas da convicção de que apenas quando se pode estudar livremente também é possível, com igual liberdade, reconhecer o que há de errado e o que deve ser mudado, a bem do ideal de uma sociedade verdadeiramente democrática, com iguais direitos, obrigações e oportunidades para todos os cidadãos.


Veja também:

domingo, 2 de outubro de 2011

A persistência da mentalidade escravista no Brasil após a Abolição - Parte 1

A escravidão - ensina-se aos escolares - foi, no Brasil, abolida "por etapas": primeiro a abolição do tráfico de africanos com a Lei Eusébio de Queirós, depois a condição livre para os filhos das escravas com a Lei do Ventre Livre, então a liberdade dos escravos idosos com a estapafúrdia Lei dos Sexagenários e, finalmente, a abolição total do sistema escravista com a Lei Áurea. O que poucas vezes se ensina é que, abolida formalmente a escravidão, a mentalidade escravista continuou a existir, seja nas relações sociais, na imagem do negro que se divulgava na imprensa, na música, na literatura e nas artes em geral, ou ainda nas regras não explícitas mas nem por isso menos compreendidas que regiam o mercado de trabalho em fins do século XIX e início do século XX.
Para ilustrar essa questão, selecionei quatro imagens que apareceram na revista paulistana A Cigarra. Os leitores não terão, por certo, dificuldades em identificar como a mentalidade escravista nelas sobrevive, século XX adentro. Chegam a ser chocantes, mas talvez fossem menos se em nossos dias tais coisas houvessem desaparecido por completo. Infelizmente, não é o caso.
As duas primeiras imagens estão logo abaixo. As duas últimas virão na próxima postagem.

Imagem 1


O cartum acima foi publicado na edição de 6 de março de 1914. Nessa época, Wenceslau Brás era vice-presidente (a presidência era então ocupada pelo Marechal Hermes da Fonseca), mas logo depois seria presidente da República, com mandato de novembro de 1914 a novembro de 1918. A legenda diz: "Como hoje se trata um pequeno que é parente de um quase parente do Wenceslau Brás".

Imagem 2


Este segundo cartum, publicado em 30 de março do mesmo ano de 1914, é daqueles que chegam a tornar doloroso o trabalho do historiador. A referência é à Lei Rivadávia Corrêa, de 1911, uma reforma do ensino que tinha a pretensão de dar a mais ampla liberdade às instituições escolares, de modo que até a frequência às aulas tornava-se facultativa - aliás uma evidência de que ideias cabeludas quanto à educação não são absolutamente novidade. Não seria nenhum absurdo criticar a tal Lei como verdadeira "fábrica de diplomas", não fora o fato de que a crítica introduzia um escandaloso elemento de preconceito racial. O maior problema, no entanto, é que ninguém notava - parecia, para a maioria das pessoas, até muito "natural"!


Veja também: