terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sepultamentos indígenas - Parte 2

                                         "Já o cadáver dentro da igaçaba,
                                             Com as guerreiras armas de que usara,
                                             Tinha sido enterrado em funda cova.
                                             De Comorim o irmão e os companheiros
                                             Com lentos passos, e as cabeças curvas,
                                             E os olhos para o chão, em pranto envoltos,
                                             Já para a sepultura vão levando
                                             Toscas pedras p'ra o tosco monumento."

                                                                                Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


O contato cada vez mais frequente (embora nem sempre pacífico) entre colonizadores europeus e povos indígenas levou os primeiros à aquisição de um maior conhecimento dos costumes dos nativos da América. É fácil perceber isso, se compararmos os relatos deixados desde o século XVI: o nível de informações é gradualmente elevado, de modo que, através desses documentos, podemos ter uma ideia de como viviam os ameríndios quando a influência dos colonizadores sobre suas tradições ainda era pouca ou nenhuma. Isso é válido, certamente, para o assunto que estamos investigando desde a postagem anterior, ou seja, os sepultamentos indígenas e os rituais que os cercavam.
Pero de Magalhães Gândavo, que escreveu ainda no século XVI, tinha um conhecimento limitado do universo dos povos indígenas (dos quais, ao que parece, desconhecia a enorme diversidade cultural). Ainda assim, deixou esta observação:
"Quando algum destes índios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado sobre os pés, com sua rede às costas em que dormia, e logo pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova." (¹)
Já Frei Vicente do Salvador, ao que se sabe o primeiro historiador nascido no Brasil, escrevendo durante o século XVII e, possivelmente, beneficiando-se das informações adquiridas pelos missionários ao relacionar-se com seus catecúmenos, anotou:
Urna mortuária indígena contendo ossos (²)
"Tanto que algum morre o levam a enterrar, embrulhado na mesma rede em que dormia, e a mulher, filhas e parentas, se as tem, o vão pranteando até a cova com os cabelos soltos lançados sobre o rosto, e depois o pranteia a mulher muitos dias; mas se morre algum principal da aldeia, o untam todo de mel, e por cima do mel o empenam com penas de pássaros de cores e põem-lhe uma carapuça de penas na cabeça com todos os mais enfeites que ele costumava trazer em suas festas, e fazem-lhe na mesma casa e rancho onde morava uma cova muito funda e grande, onde lhe armam sua rede e o deitam nela assim enfeitado com seu arco e flechas, espada e tamaracá, que é um cabaço com pedrinhas dentro, com que costumam tanger, e fazem-lhe fogo ao longo da rede para se aquentar, e põem-lhe de comer em um alguidar e a água em um cabaço, e na mão uma canguera, que é um canudo feito de palma cheio de tabaco, e então lhe cobrem a cova de madeira e de terra por cima, que não caia sobre o defunto, e a mulher por dó corta os cabelos e tinge-se toda de jenipapo, pranteando o marido muitos dias, e o mesmo fazem com ela as que a vêm visitar, e tanto que o cabelo cresce até lhe dar pelos olhos o torna a cortar e a tingir-se de jenipapo, para tirar o dó, e faz sua festa com seus parentes e muito vinho.
O marido, quando lhe morre a mulher, também se tinge de jenipapo, e quando tira o dó se torna a tingir, tosquia-se e ordena grandes revoltas de cantar e bailar e beber, nestas festas se cantam as proezas do defunto ou defunta e do que tira o dó, e se morre algum menino filho do principal o metem em um pote, posto em cócoras, atados os joelhos com a barriga, e enterram o pote na mesma casa, debaixo do chão, e ali o choram muitos dias." (³)
E, já no século XIX, o Padre Ayres de Casal, tratando especificamente dos índios Coroados (segundo esse autor, descendentes dos Goitacases e, de todo modo, habitantes de áreas que pertenceriam aos atuais Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo), escreveu:
"Enterram os mortos assentados. Antigamente sepultavam os caciques encolhidos dentro de grandes vasos de barro cilíndricos, denominados camucis, dos quais se tem desenterrado alguns ainda com ossos." (⁴)

Urna mortuária de um chefe dos índios Coroados, segundo Debret (⁵)
Isso não dá conta da enorme variedade de costumes que os povos indígenas apresentavam em relação à morte e sepultamento, mas contribui para reforçar um fato interessante, já mencionado na postagem anterior - um certo compartilhar de hábitos presentes em muitas e diferentes sociedades humanas ao longo do tempo, como é dar demonstrações públicas de luto, sepultar o morto com seus pertences, colocar alimentos sobre a sepultura e realizar algum tipo de banquete funerário.

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. 
(2) Pertence ao acervo do Museu Histórico da Cidade de Salto (SP), a cuja direção agradeço a permissão para tirar fotografias.
(3) SALVADOR, Frei Vicente do.  História do Brasil.
(4) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.
(5) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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