domingo, 9 de outubro de 2011

As povoações do Litoral Norte e o prejuízo causado por uma lei absurda

No trechinho da Corografia Brasílica do Pe. Ayres de Casal que nos serviu de ponto de partida para uma pequena visita à Igreja Matriz de São Sebastião, no litoral norte de SP (veja postagem anterior), é dito sobre a então vila de S. Sebastião que nela "pode florescer uma agricultura assaz variada; e que esteve largos anos quase abandonada por causa de não se permitir aos fazendeiros a liberdade de exportar as suas produções para onde melhor interesse lhes fizessem." (¹)
Um levantamento de dados da época nos mostra qual foi a exportação da citada vila entre 1801 e 1807:
Vista do centro histórico da
cidade de São Sebastião, SP
"Da vila de S. Sebastião saíram nos mesmos anos açúcar, aguardente, arroz, feijão, farinha de mandioca, café, goma, anil, fumo, mel, algodão, azeite de peixe, tabuado, telhas, tijolo, louça grossa, peixe e miudezas, importantes em 113:588$000 réis." (²)
Avaliar o valor disso pelos padrões atuais não é muito simples, mas a diversidade de itens mencionados parece significativa para uma vila ainda pequena, embora a quantidade produzida pudesse ser maior, sob condições favoráveis. O que nos interessa é a razão disso, já que vários autores da época eram concordes em afirmar que muito mais poderia produzir não só São Sebastião, porém outras povoações litorâneas, não fora a interferência absurda do governador enviado a São Paulo em nome de Portugal, Antônio José da Franca e Horta. Espera-se dos governantes, ao menos em teoria, que administrem para o bem e prosperidade da população, mas, conforme veremos, este excedeu-se em obrar exatamente em sentido contrário.
"Proibindo o Governador Antônio José de Franca e Horta o comércio de cabotagem (³) das vilas da Província, por obrigar os seus traficantes e lavradores a levar os gêneros à Vila só de Santos, para daí se embarcarem diretamente aos portos da Europa, e não havendo na Praça de Santos mais que três ou quatro carregadores, eles depressa se uniram a armar um monopólio, taxando o preço dos efeitos aos lavradores, que de necessidade os haviam de vender. O resultado de tal deliberação foi a perda da lavoura da Vila de Ubatuba, que principia a florescer, e a ruína das outras marítimas, até que depois de anos, cessou esse mal com a feliz chegada do Senhor D. João VI ao Rio de Janeiro." (⁴)
Muito já se discutiu sobre as reais intenções do governador Franca e Horta. É verdade que, por aqueles tempos, as autoridades portuguesas eram quase neuroticamente obcecadas por coibir o descaminho do ouro das Gerais (⁵), ouro cada vez mais reduzido pelo emprego de métodos pouco eficientes de extração, de modo que, em um primeiro momento, imagina-se que, ao vetar a navegação de cabotagem, geralmente empreendida em pequenas embarcações mediante o uso de pequenos portos, o dito governante estava apenas fazendo o que dele se esperava, já que ouro para cobrir as contas do Reino seria, em seu modo de ver, a coisa mais importante que a colônia podia enviar à Metrópole. Todavia, nos mesmos anos de seu governo não faltou quem o acusasse de estar em pacto ilícito com os contratadores de Santos, que sendo poucos e detendo o monopólio, podiam pagar pouco pelas mercadorias adquiridas, comercializando-as, posteriormente, por quanto quisessem - um verdadeiro "negócio da China", como diriam os antigos...
Ocorre que, seja lá o que fosse que andasse a passar pela cabeça do detestado governador, cujo currículo, se devemos crer em testemunhos a ele contemporâneos, incluía perseguições, bisbilhotices e extorsões sem conta, os pequenos produtores das áreas litorâneas, impedidos de fazer a seu gosto o comércio do que produziam e recebendo pelo que vendiam aos de Santos valores ínfimos, viram-se em completo desestímulo para produzir qualquer coisa que não fosse destinada ao consumo local. Afinal, os produtores de São Paulo (que obviamente não tem porto marítimo) viviam às turras com os comerciantes de Santos, de cujo porto dependiam para suas exportações, desde tempos tão remotos quanto o século XVII.
Ao menos legalmente, porém, as coisas, quanto a este assunto, logo poderiam mudar. Chegado ao Brasil no início de 1808, o Príncipe-Regente D. João (mais tarde D. João VI) apressou-se em decretar a famosa Abertura dos Portos às Nações Amigas, e as povoações do Litoral Norte viram-se, com isso, surpreendentemente libertas da ridícula imposição de Franca e Horta. Ainda assim, o famigerado homem conseguiu manter-se no posto de capitão-general por tempo considerável, mesmo que suas atitudes fossem frequentemente censuradas.

(1) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica vol. 1, 1ª ed. 1817, p. 238.
(2) ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das Províncias Anexas à Jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil vol. VIII. Rio de Janeiro: Tipografia Silva Porto, 1822, p. 277.
(3) Navegação costeira.
(4) ARAÚJO, José de Sousa Azevedo Pizarro. Op. cit.,, pp. 277 e 278.
(5) Sobre o contrabando de ouro não quintado, Saint-Hilaire registrou: "os contrabandistas acham meios de se subtraírem e chega ao Rio de Janeiro muito mais ouro em pó do que fundido nas intendências." É bom observar que o naturalista francês fez tal anotação em princípios de 1822.
SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 77.


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