quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Saúvas

O combate às formigas-cortadeiras no Século XIX e primeiras décadas do Século XX 


"A dentada da saúva, que anda solta no campo, dói como uma brasa; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira", escreveu José de Alencar (¹) em Ubirajara. Saúvas têm dentes? Tecnicamente, não, mas agem como se cada espécime fosse dotado de uma centena deles. Nas duas postagens anteriores tratei de formigueiros descomunais em São Paulo, isso lá pela segunda década do Século XIX, formigueiros que proliferavam nas ruas e nos quintais (²). Que fique claro: formigas não eram um problema apenas em São Paulo - eram um problema do Brasil, especialmente para a lavoura, e continuaram a desafiar a perseverança dos agricultores décadas além.
Para concluir esse assunto, ao menos por enquanto, faremos, hoje, uma visita a trechos da obra de Lima Barreto (³), crítico impiedoso das calamidades e (des)governos - da Bruzundanga, naturalmente. É por ela que começamos:
"Basta dizer, para se avaliar a triste situação interna da extravagante nação de que lhes dou notícias, que, nos arredores da capital, se morria à mingua, à fome, as terras estavam abandonadas e invadidas pelas depredadoras saúvas, a população roceira não tinha direitos nem justiça e vivia à mercê de cúpidos e ferozes senhores de latifúndios, cuja sabedoria agronômica era igual à dos seus capatazes ou feitores." (⁴)
Em Marginália, o mesmo autor afirmou, ao referir-se à Ilha do Governador de tempos passados:
"Vivendo, por assim dizer, isolada do Rio de Janeiro, quase sem comunicações diárias com o centro urbano, abandonada pelos seus grandes proprietários, devido à decadência de suas culturas perseguidas atrozmente pela saúva, estava toda ela entregue a moradores pobres, apanhadores de suas frutas [...], lenhadores e carvoeiros, pescadores e alguns roceiros portugueses, que tenazmente se batiam contra a implacável formiga, fazendo roças de aipins, de batatas-doces, de quiabos, de abóboras, de melancias e até de melões."
Como os lavradores obtinham tanta variedade, a despeito das infernais saúvas? Lima Barreto não explicou, ainda que se encarregasse de maldizer as himenópteras também em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, prova de que não dedicava a elas nenhuma simpatia: 
"Toda a manhã, ele ia lá e já via o milharal crescido com o seu pendão branco e as suas espigas de coma cor-de-vinho, oscilando ao vento; naquela, ele não viu nada mais. Até os tenros colmos tinham sido cortados e levados para longe. "A modo que é obra de gente", disse Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terríveis himenópteros, piratas ínfimos que lhe caíam em cima do trabalho [...] Era preciso combatê-los. Quaresma pôs-se logo em campo, descobriu as aberturas principais do formigueiro e em cada uma queimou o formicida mortal. Passaram-se dias, os inimigos pareciam derrotados, mas certa noite, indo ao pomar para melhor apreciar a noite estrelada, Quaresma ouviu uma bulha esquisita, como se alguém esmagasse as folhas mortas das árvores... Um estalido... E era perto... [...] Quase todas as laranjeiras estavam negras de imensas saúvas. Havia delas às centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam, nada de atropelos, de confusão, de desordem. [...]"
Anúncio publicado no jornal Correio Paulistano em 1918 (⁵)

O Echo, revista paulistana, em edição de 1916 contendo quase uma página dedicada ao assunto do combate às formigas-cortadeiras, trouxe as seguintes observações: "[...] é preciso logo advertir que em qualquer dos casos pouco monta a iniciativa particular - é indispensável a ação combinada do governo estadual, dos municípios e dos fazendeiros. Que aproveita, com efeito, um agricultor limpar os seus terrenos de bichos tão daninhos, se das fazendas vizinhas lhe vêm, de noite, destruir as plantações, e, na quadra dos enxames [...], um sem-número de içás lá vão estabelecer novas colônias?" (⁶)
Na falta da dita ação conjunta, ou na insuficiência dela, empresas da época ofereciam seus serviços a quem desejasse ao menos algum controle sobre as saúvas na agricultura, conforme vocês, leitores, poderão conferir nos dois anúncios aqui incluídos, de 1918 e 1919 - mais de um século, portanto, após a Câmara de São Paulo deliberar sobre formigueiros na cidade, de acordo com o que foi dito nas duas postagens anteriores.

Anúncio publicado na revista A Cigarra em 1919 (⁷)

(1) José Martiniano de Alencar, 1829 - 1877.
(2) Nas deliberações da Câmara de São Paulo, citadas nas duas postagens anteriores, não houve menção à espécie de formigas que infestava ruas e quintais. Este texto trata especificamente das saúvas, uma das espécies cortadeiras, particularmente daninhas à lavoura.
(3) Afonso Henriques de Lima Barreto, 1881 - 1922.
(4) Os Bruzundangas, 1922.
(5) CORREIO PAULISTANO, nº 19873, 1º de novembro de 1918, p. 6.
(6) O ECHO, Ano XV, nº 5, novembro de 1916.
(7) A CIGARRA, Ano VI, nº 125, 1º de dezembro de 1919.


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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Formigas no quintal

Determinação da Câmara de São Paulo, em 1815, para que um morador da cidade removesse o formigueiro que tinha no quintal


Quem leu a postagem anterior já sabe que, por volta de 1815, formigueiros enormes causavam transtornos em algumas ruas de São Paulo. A Câmara, em suas vereanças, entendeu ser seu dever ordenar ao procurador que mandasse extinguir tão incômodas comunidades, a bem dos usuários das vias públicas afetadas.
Mas não ficava só nisso. Em virtude da ata relativa à vereança de 25 de novembro de 1815, somos informados de que formigas fizeram uma tentativa de firmar seu império no quintal de uma casa, desencadeando, em consequência, até atrito entre vizinhos:
"Aos vinte e cinco de novembro de mil oitocentos e quinze, nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho, onde foram vindos o juiz de fora presidente João Gomes de Campos, e os atuais vereadores, e atual procurador [...], e sendo aí todos juntos em ato de vereança despacharam o expediente: [...] com determinação a mim, escrivão, fosse à casa do brigadeiro José Arouche de Toledo, e lhe participasse da parte desta Câmara mandasse tirar um formigueiro que se acha em seu quintal, que fica na rua do Jogo da Bola, no prazo de três dias, visto o grande queixume dos vizinhos daquela rua [...]." (*)
Se o formigueiro era tão incômodo, a ponto de provocar "grande queixume dos vizinhos", como não traria desconforto também aos moradores do imóvel em questão? Não deixa de ser curioso que, na segunda década do Século XIX, a Câmara de São Paulo se ocupasse em resolver um problema dessa natureza.

(*) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Formigueiros nas ruas de São Paulo

Na fábula, toda gente sabe, a formiga é retratada como exemplo supremo de dedicação ao trabalho, enquanto a cigarra não passa de vil preguiçosa. Afinal, nada mais faz que cantar!
Contudo, nunca se viu um batalhão de cigarras a devorar plantações, ou a invadir casas à procura de doces, nem mesmo a picar, dolorosamente, algum humano que, incauto, se aproxima. Já as formigas...
Foi em São Paulo, no ano de 1815. Em uma ata da Câmara, datada de 13 de setembro, registrou-se: 
"Aos treze de setembro de mil oitocentos e quinze nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara [...] onde foram vindos o doutor juiz de fora presidente João Gomes de Campos e mais oficiais da Câmara para efeito de fazerem vereança [...] despachou-se o expediente e determinaram ao atual procurador da Câmara mande tirar os olhos de formigueiros que se acham em um formigueiro já tirado, e mostrando não haver mais indícios de formigueiro, mande tapar o buraco." (¹)
Ora, meus leitores, já podemos extrair daí uma primeira conclusão: as formigas de São Paulo eram persistentes e não demostravam a mais leve disposição em abandonar o lugar em que viviam. A segunda conclusão é que pareciam estar à vontade em plena rua. Terceira, o formigueiro devia ser enorme, coisa que se deduz da ordem para, depois da sua extinção, mandar "tapar o buraco", uma providência tanto mais necessária quanto o incômodo alojamento de insetos se encontrava em via pública.
Mas não parou nisso a questão. No mesmo mês e ano, outra ata, desta vez do dia 20, dizia: "[...] foi representado pelo procurador deste Concelho que se tapasse o formigueiro da Rua do Jogo da Bola (²), e determinaram que se tapasse tão somente o que fosse bastante para a servidão do povo (³) [...]". Podem ser imaginadas as dimensões daquela fortaleza de formigas! Fica a dúvida: estariam os senhores vereadores pactuando com as himenópteras, ou já andavam tão cansados de mandar extinguir formigueiros, que simplesmente admitiam a feitura apenas parcial do trabalho de eliminá-los?
Ainda em 1815, uma ata do dia 21 de outubro trazia: "[...] Assim mais determinaram ao mesmo procurador que mandasse tirar um formigueiro que se acha na rua detrás do Carmo, contíguo às casinhas da Ordem Terceira do Carmo". Recordem-se, amigos leitores, de que muitas ruas, nesse tempo, em quase todas as localidades, não tinham calçamento. Eram de terra batida, não sendo, pois, surpreendente, que formigas achassem interessante ter nelas seu lar. Desde o início da colonização, europeus que vinham à América do Sul se espantavam com a quantidade e variedade de formigas. A referência a grandes formigueiros em diferentes pontos de São Paulo sugere que estavam por toda parte, com as consequências que daí podem ser facilmente extraídas.
São passados mais de duzentos anos desde que esses registros da Câmara de São Paulo foram escritos. Em áreas urbanas será difícil encontrar formigueiros nas ruas, é certo, mas não se pode ter tanta convicção quanto aos quintais e jardins. Afinal, quem terá vencido a batalha? Olhem ao redor, leitores, onde quer que vocês residam, e deem seu veredito.

(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram, para facilitar a leitura, transcritos na ortografia atual, com a adição da pontuação indispensável. 
(2) Nome interessante para essa via pública, revelando algo dos costumes da época. Posteriormente a Câmara deu ordem para que os lugares deste e de outros formigueiros fossem devidamente aterrados.
(3) A expressão "servidão do povo" tinha o sentido de utilidade pública.


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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Vestuário delas, há quase um século

Diversão para vocês que leem este blog: estas imagens, publicadas em três edições da revista paulistana A Cigarra, permitem saber como andava a moda, em se tratando de vestuário feminino, há quase cem anos.

1. A legenda desta foto de 1918 dizia:
"Senhoras e senhoritas torcendo no Prado da Mooca, à saída de um páreo das últimas corridas ali realizadas pelo Jockey Club Paulistano." (¹)


2.
No Século XIX, a maioria das pessoas no Brasil achava que esportes não eram para mulheres. Já em 1923, estas jovens tenistas do Estado de Mato Grosso provavam que a mentalidade, aos poucos, iam mudando (para felicidade geral da nação, se é que podemos aplicar a fala de D. Pedro a assunto bem diferente daquele do "Dia do Fico"). A foto foi assim descrita na legenda:
"Fotografia tirada especialmente para "A Cigarra" da bela e valorosa agremiação Sport Club Feminino Corumbá (Mato Grosso)." (²)


3.
Finalmente, modelos de vestidos, publicados em 1930. Explicação para os dois primeiros:
"Singelo vestido de crepe da China, estampado. A saia "godet" comunica-lhe uma discreta amplitude.
Elegante modelo de "jersey" de lã verde-pálido. A blusa se abotoa de lado. As mangas têm "godets" incrustrados."
(³)
Já o terceiro modelo, trazia a seguinte descrição:
"Em "marrocain" celeste, completamente cruzado e fechado por botões de cristal, se nos apresenta este gracioso vestidinho." (³)


Entendam, meus leitores, que os três vestidos são de um tempo em que os tecidos sintéticos ainda não estavam amplamente disponíveis. O que, porém, justificaria um animal morto como
acessório no segundo modelo?

(1) A CIGARRA, Ano IV, nº 84, 30 de janeiro de 1918.
(2) A CIGARRA, Ano X, nº 200, 15 de janeiro de 1923.
(3) A CIGARRA, Ano XVI, nº 364, primeira quinzena de janeiro de 1930. Todas as imagens desta postagem foram editadas para facilitar a visualização neste blog. 


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