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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Formigas no quintal

Determinação da Câmara de São Paulo, em 1815, para que um morador da cidade removesse o formigueiro que tinha no quintal


Quem leu a postagem anterior já sabe que, por volta de 1815, formigueiros enormes causavam transtornos em algumas ruas de São Paulo. A Câmara, em suas vereanças, entendeu ser seu dever ordenar ao procurador que mandasse extinguir tão incômodas comunidades, a bem dos usuários das vias públicas afetadas.
Mas não ficava só nisso. Em virtude da ata relativa à vereança de 25 de novembro de 1815, somos informados de que formigas fizeram uma tentativa de firmar seu império no quintal de uma casa, desencadeando, em consequência, até atrito entre vizinhos:
"Aos vinte e cinco de novembro de mil oitocentos e quinze, nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho, onde foram vindos o juiz de fora presidente João Gomes de Campos, e os atuais vereadores, e atual procurador [...], e sendo aí todos juntos em ato de vereança despacharam o expediente: [...] com determinação a mim, escrivão, fosse à casa do brigadeiro José Arouche de Toledo, e lhe participasse da parte desta Câmara mandasse tirar um formigueiro que se acha em seu quintal, que fica na rua do Jogo da Bola, no prazo de três dias, visto o grande queixume dos vizinhos daquela rua [...]." (*)
Se o formigueiro era tão incômodo, a ponto de provocar "grande queixume dos vizinhos", como não traria desconforto também aos moradores do imóvel em questão? Não deixa de ser curioso que, na segunda década do Século XIX, a Câmara de São Paulo se ocupasse em resolver um problema dessa natureza.

(*) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Formigueiros nas ruas de São Paulo

Na fábula, toda gente sabe, a formiga é retratada como exemplo supremo de dedicação ao trabalho, enquanto a cigarra não passa de vil preguiçosa. Afinal, nada mais faz que cantar!
Contudo, nunca se viu um batalhão de cigarras a devorar plantações, ou a invadir casas à procura de doces, nem mesmo a picar, dolorosamente, algum humano que, incauto, se aproxima. Já as formigas...
Foi em São Paulo, no ano de 1815. Em uma ata da Câmara, datada de 13 de setembro, registrou-se: 
"Aos treze de setembro de mil oitocentos e quinze nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara [...] onde foram vindos o doutor juiz de fora presidente João Gomes de Campos e mais oficiais da Câmara para efeito de fazerem vereança [...] despachou-se o expediente e determinaram ao atual procurador da Câmara mande tirar os olhos de formigueiros que se acham em um formigueiro já tirado, e mostrando não haver mais indícios de formigueiro, mande tapar o buraco." (¹)
Ora, meus leitores, já podemos extrair daí uma primeira conclusão: as formigas de São Paulo eram persistentes e não demostravam a mais leve disposição em abandonar o lugar em que viviam. A segunda conclusão é que pareciam estar à vontade em plena rua. Terceira, o formigueiro devia ser enorme, coisa que se deduz da ordem para, depois da sua extinção, mandar "tapar o buraco", uma providência tanto mais necessária quanto o incômodo alojamento de insetos se encontrava em via pública.
Mas não parou nisso a questão. No mesmo mês e ano, outra ata, desta vez do dia 20, dizia: "[...] foi representado pelo procurador deste Concelho que se tapasse o formigueiro da Rua do Jogo da Bola (²), e determinaram que se tapasse tão somente o que fosse bastante para a servidão do povo (³) [...]". Podem ser imaginadas as dimensões daquela fortaleza de formigas! Fica a dúvida: estariam os senhores vereadores pactuando com as himenópteras, ou já andavam tão cansados de mandar extinguir formigueiros, que simplesmente admitiam a feitura apenas parcial do trabalho de eliminá-los?
Ainda em 1815, uma ata do dia 21 de outubro trazia: "[...] Assim mais determinaram ao mesmo procurador que mandasse tirar um formigueiro que se acha na rua detrás do Carmo, contíguo às casinhas da Ordem Terceira do Carmo". Recordem-se, amigos leitores, de que muitas ruas, nesse tempo, em quase todas as localidades, não tinham calçamento. Eram de terra batida, não sendo, pois, surpreendente, que formigas achassem interessante ter nelas seu lar. Desde o início da colonização, europeus que vinham à América do Sul se espantavam com a quantidade e variedade de formigas. A referência a grandes formigueiros em diferentes pontos de São Paulo sugere que estavam por toda parte, com as consequências que daí podem ser facilmente extraídas.
São passados mais de duzentos anos desde que esses registros da Câmara de São Paulo foram escritos. Em áreas urbanas será difícil encontrar formigueiros nas ruas, é certo, mas não se pode ter tanta convicção quanto aos quintais e jardins. Afinal, quem terá vencido a batalha? Olhem ao redor, leitores, onde quer que vocês residam, e deem seu veredito.

(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram, para facilitar a leitura, transcritos na ortografia atual, com a adição da pontuação indispensável. 
(2) Nome interessante para essa via pública, revelando algo dos costumes da época. Posteriormente a Câmara deu ordem para que os lugares deste e de outros formigueiros fossem devidamente aterrados.
(3) A expressão "servidão do povo" tinha o sentido de utilidade pública.


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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Proibição de gelosias em São Paulo

Gelosias eram aquelas treliças de madeira, geralmente espessas e escuras, que recobriam as janelas de moradias no Brasil Colonial. É certo que nem todas as casas tinham essas feias molduras, mas elas foram muito comuns. Indo direto ao ponto, sua finalidade era, supostamente, impedir que quem passava pela rua pudesse bisbilhotar o que havia no interior da residência. Na prática, serviam para ocultar as mulheres da vista de quem não pertencesse ao círculo mais próximo de convivência. Eram, portanto, um instrumento para cercear a liberdade das mulheres, já tão limitada nesses tempos.
Como tudo muda, os anos se encarregaram de trazer a consciência de que não era boa coisa manter as gelosias. Além de feias, davam a impressão de atraso, que nenhum lugar com pretensões a modernidade teria orgulho em ostentar. Cumpria, pois, proibir sua existência, porque, como sempre acontece, toda mudança progressista tem garantida a oposição dos conservadores, em nome, neste caso (mas não só neste), da preservação da moralidade pública e dos bons costumes. 
Dada a explicação, resta dizer que, em São Paulo, no ano de 1820, uma postura da Câmara proibiu que as casas que daí em diante se construíssem na cidade ou fossem reedificadas, tivessem janelas com gelosias. Dizia assim: "Não se consentir que aqueles que edificarem de novo, ou reedificarem casas, ponham nelas gelosias nas janelas, por ficarem as casas mais escuras, e faltas de ar puro, desformosear as mesmas casas, e o prospecto [...]". Desobedientes seriam multados em seis mil réis e teriam a construção demolida.  
Verdade seja dita: as gelosias eram feias, mesmo, e esperava-se que, com essa postura, desaparecessem gradualmente. São Paulo queria tomar ares de cidade respeitável, deixando no passado tudo o que cheirava (culturalmente) a mofo e arrastava uma impressão de atraso. Havia, contudo, muito mais a ser feito, se a intenção era ir além das simples aparências.


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quinta-feira, 16 de junho de 2022

Procissão de Corpus Christi em São Paulo no ano de 1822

Era o ano da independência do Brasil, mas, sendo ainda junho, ninguém sabia disso, embora houvesse gente trabalhando para que a separação de Portugal acontecesse, mais cedo ou mais tarde. 
Pois bem, era junho de 1822, o dia de Corpus Christi se aproximava, e a Câmara de São Paulo devia tomar providências para que a tradicional procissão religiosa ocorresse dentro das normas do decoro. Nesse tempo, meus leitores, o projeto de um Estado laico não passava pela cabeça de quase ninguém, e somente iria vingar após a proclamação da República em 1889. Quanto a São Paulo, era uma cidadezinha provinciana, com poucas vias calçadas, para gaudio das formigas que estabeleciam residência nas ruas de terra batida e, dali, só de raro em raro eram removidas. Pontes, com frequência, ameaçavam ruir, e até porcos circulavam à vontade em algumas paragens. Por isso, em relação à vereança de 4 de junho de 1822, registrou-se na ata da Câmara: "Nesta determinaram [vereadores e juiz de fora] ao atual procurador que mande limpar os meios das ruas por onde passa a procissão do Corpo de Deus onde elas estiverem imundas e indecentes [sic!]."
Alguns dias antes, em 11 de maio de 1822, a mesma Câmara havia decidido: "Na mesma [vereança] se determinou ao atual procurador que mande fazer timbales para a festividade de Corpus Christi, visto que este Senado não tem para a mesma festividade; que sempre anda esta Câmara emprestando; bem como dois clarins, mandando vir do Rio por ser mais em conta, e no entanto que empreste para o presente ano. [...]" (*). Esse registro é mais que suficiente para elucidar qualquer dúvida quanto à realidade econômica da Província de São Paulo e de sua capital há duzentos anos.
Semanas mais tarde, os vereadores, cientes de que o príncipe regente Dom Pedro tencionava vir a São Paulo, começaram a dar ordens para que a população limpasse as ruas, removesse os formigueiros, caiasse a fachada das casas e recolhesse porcos e outros animais. Não parecia bem que Sua Alteza Real visse tais coisas ao passar pela cidade. Dom Pedro veio, de fato, e, com certa ajuda do acaso, sua passagem por São Paulo contribuiu para mudar definitivamente a condição política do Brasil. 

(*) Os trechos citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável.


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quinta-feira, 21 de março de 2019

O que calçavam os moradores de São Paulo em 1583

Graças a uma querela entre moradores da vila de São Paulo e sapateiros que aí trabalhavam, podemos saber alguma coisa sobre os calçados em uso por colonizadores e seus descendentes no Século XVI. Mas vamos devagar, para bom entendimento do que é que acontecia.
Em reunião da Câmara ocorrida no dia 1º de julho de 1583, o procurador da vila requereu aos oficiais "que suas mercês fizessem um juiz do ofício de sapateiro, porquanto os sapateiros não tinham regimento de seu ofício, nem muitos deles não eram examinados e levavam mais pelo calçado do que era razão levar", conforme registrou o escrivão na ata (¹) correspondente. Ora, na época, para controle do exercício das várias profissões, prevalecia, em algum grau, o sistema de corporações (²), e é nesse sentido que deve ser entendida a queixa do procurador, mostrando que os sapateiros, não tendo juiz e regimento do ofício, cobravam por seu trabalho quanto lhes desse na telha, para grande prejuízo dos moradores da vila. 
A Câmara, assim solicitada a agir, não se fez de rogada, e nomeou juiz para o ofício, além de estipular preços máximos para os vários tipos de calçados que podiam ser encontrados na vila - é justamente o que mais nos interessa, porque assim é que podemos saber com o que é que os paulistas do Século XVI protegiam e/ou adornavam os pés. Simplificando, e com menção dos principais itens, a coisa ficava assim:

Botas
"botas novas de [couro de] veado, sendo engraxadas": 430 réis;
"não sendo engraxadas": 1 cruzado;
"sendo de porco": 1 cruzado;
"de vaca, sendo [...] engraxadas": 1 cruzado.

Sapatos masculinos
"sapatos singelos de uma sola, de qualquer couro que seja, como não seja de cordovão": 1 tostão;
"sapatos [...] de duas solas": 150 réis.

Sapatos femininos
"sapatas de mulher, quer de porco, quer de veado [...], as quais serão de um palmo de talão para cima": 150 réis.

Chinelos
"chinelas de homem, sendo de sola [...], quer de vaca, quer de porco, quer de veado": 150 réis;
"chinelas de cortiça, dando o sapateiro a cortiça": 3 tostões;
"não dando a cortiça": 250 réis;
"chinelas de mulheres, de três pontos e seis pontos": 100 réis.

Sapatos abertos
"sapatos abertos até meia perna, de duas solas": 300 réis.

Talvez os leitores se interroguem quanto ao que aconteceria se algum sapateiro, num arroubo de criatividade, fizesse algum sapato que não estivesse descrito na postura da Câmara. Vejam, então, que os vereadores de São Paulo, habituados à rotina da vila, foram precavidos. Dizia ainda a ata: "[...] toda a mais obra que fizerem e que não está posta nesta postura, a trarão a mostrar à Câmara ou ao juiz, para que com o juiz de ofício lhe ponha o preço que hão de levar."
Com a exceção de algum raríssimo calçado vindo do Reino, eram esses os sapatos disponíveis para a gente de São Paulo no Século XVI. Quanto aos preços estipulados, não passavam de formalidade e eram indicados apenas para efeito de equivalência: dinheiro amoedado quase não circulava na vilazinha de São Paulo, razão pela qual os pagamentos eram, habitualmente, feitos em espécie

(1) Para não enlouquecer os leitores, os trechos da ata aqui citados foram transcritos em ortografia atual, sendo acrescentadas as vírgulas indispensáveis.
(2) As corporações de ofício foram completamente extintas no Brasil pela Constituição de 1824.


terça-feira, 12 de março de 2019

O Calendário Gregoriano

O papa Gregório XIII é famoso, entre outras razões, pela reforma do calendário ocorrida em seu pontificado. Por essa razão, o calendário adotado para o ano civil em quase todos os países do mundo recebe o nome de Calendário Gregoriano.
Uma comissão foi nomeada para corrigir os problemas decorrentes do Calendário Juliano, que vinham se acumulando ao longo dos séculos e fazendo com que os eventos astronômicos já não coincidissem com as datas esperadas no calendário civil. Portanto, uma premissa do novo calendário foi a de que o equinócio de primavera (¹) no Hemisfério Norte deveria ocorrer em 21 de março. Após a conclusão dos estudos, seguida de análise e aprovação daquilo que se havia proposto, uma bula papal, conhecida por suas primeiras palavras Inter gravissimas, foi publicada no dia 24 de fevereiro de 1582, definindo a data de 15 de outubro do mesmo ano para que o novo calendário entrasse em vigor. Desse modo, o dia 4 de outubro de 1582, quinta-feira, foi seguido pelo dia 15 de outubro de 1582, sexta-feira. O que aconteceu aos dez dias entre uma e outra data? Simplesmente desapareceram, ou, se os leitores preferirem, foram engolidos pelo novo calendário.

A adoção do Calendário Gregoriano em São Paulo


Espanha e Portugal - eram tempos da União Ibérica - estiveram entre os países que, de imediato, adotaram o Calendário Gregoriano. O Brasil, ao menos formalmente, deveria fazer o mesmo. Mas, como se sabe, nesse tempo as notícias precisavam fazer uma longa viagem de travessia do Atlântico e, sobrevivendo, iriam alcançar os distantes colonizadores que viviam na América do Sul. Por isso, foi somente dois anos depois da ocasião estipulada pelo papa que o novo calendário veio a ser usado em São Paulo, conforme se pode verificar pelas atas da Câmara, nas quais o escrivão, em três diferentes passagens, explicava as datas que, a partir de então, usava, citando tanto a bula pontifícia como uma ordem real para adoção do Calendário Gregoriano:

"Aos quinze dias do mês de outubro (²), era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, por virtude de um calendário do papa [...] Gregório, nesta vila de São Paulo do Campo [...]."
"Foram apregoadas as posturas [...] dos senhores oficiais [da Câmara], das tecedeiras e tecelões e do pano de algodão, aos vinte e um dias do mês de outubro, era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, por virtude de uma provisão de el-rei nosso senhor, que manda e declara que deste mês e ano se tirem dez dias [...] por virtude do santo papa, de um calendário que disso fez [...]."
"Aos vinte e sete dias do mês de outubro, era de mil e quinhentos e oitenta e quatro anos, por virtude de uma provisão de el-rei nosso senhor, em que manda que se tirem dez dias do dito mês e ano, nesta vila de São Paulo do Campo [...]."

Observem, meus leitores, que a defasagem foi exatamente de dois anos: o Calendário Gregoriano entrou em vigor em 15 de outubro de 1582, isso em Portugal e em alguns outros países da Europa, enquanto que a primeira menção que dele se faz nas Atas da Câmara de São Paulo vem de 15 de outubro de 1584. Expandindo a lógica, daí se infere por que motivo tantas ordens em relação ao Brasil Colonial tardavam a ser cumpridas. Algumas delas, vocês sabem, gostavam tanto do papel que jamais saíam dele.

(1) Portanto, equinócio de outono no Hemisfério Sul.
(2) As vírgulas foram acrescentadas e as citações transcritas na ortografia atual, para tornar a leitura dessas atas possível aos leitores não habituados a documentos antigos.