quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Os fusos horários e a chegada do ano-novo

Todos aprendemos na escola que a Terra é, teórica e artificialmente, dividida em faixas verticais de 15º cada uma (¹), que são chamadas fusos. Para os leitores mais jovens, eu faria a seguinte comparação: imaginem que a Terra seja mais ou menos como uma laranja, composta por vinte e quatro gomos iguaizinhos - nessa comparação (simplista, mas útil), cada gomo corresponderia a um fuso.
Por convenção, utiliza-se o horário de Londres (²) como ponto de partida para a contagem dos fusos. Assim, o horário teórico de um ponto qualquer na superfície terrestre será dado ao se ter em conta se está localizado a Leste ou a Oeste do Meridiano Principal, bem como a quantos graus de distância.
Parece simples? Periodicamente, o horário de verão complica tudo, assim como outros ajustes, que são feitos por questões práticas - se estritamente seguidos, os fusos com base na divisão em faixas de 15º poderiam muito bem acabar fazendo com que lugares muito próximos, ou mesmo dentro de uma mesma cidade, tivessem horários diferentes. Seria uma calamidade! Então, cada país define a adoção de fusos ajustando-os à conveniência, até porque há países com mais de um fuso (³).
Em quase todo o mundo a contagem do tempo obedece a uma divisão em 24 horas, em que 12 horas correspondem ao meio-dia, e 24, à meia-noite. Assim, no final de cada ano, é de acordo com o fuso relativo a cada lugar que é celebrado o ano-novo: quem está em Tóquio ou em Sidney vai festejar um novo ciclo de trezentos e sessenta e cinco dias antes de quem está em São Paulo ou Los Angeles.
Mas vocês já pensaram, leitores, que a contagem do tempo, do dia e das horas nem sempre obedeceu a esse critério?
Plínio, o Velho, no Livro II de sua Naturalis Historia, relatou que "quanto ao modo como cada um observava os dias, os babilônios contavam entre dois sóis [de um nascer de sol a outro], os atenienses entre dois ocasos [de um pôr de sol a outro], os úmbrios de um meridiano a outro [meio-dia a meio-dia], pessoas comuns [em Roma], da luz às trevas [do amanhecer ao pôr do sol], os sacerdotes romanos e autoridades civis, assim como os egípcios, de meia-noite a meia-noite". (⁴)
Ora, convenhamos, seria uma enorme confusão se, até hoje, cada povo contasse o tempo como bem entendesse. Quando as comunicações entre países eram poucas e difíceis, os fusos talvez não fossem necessários, e cada lugar podia adotar a contagem das horas que lhe caísse no agrado; à medida que as comunicações se intensificaram, os fusos se tornaram imprescindíveis. Sua implantação, portanto, foi ditada não só pela conveniência, mas pela necessidade.

(1) Que se obtém pela divisão de 360° (supondo a Terra uma esfera perfeita) por 24, que é o número de horas de cada dia.
(2) Lembram-se do Meridiano de Greenwhich?
(3) É o caso do Brasil.
(4) O trecho citado de Naturalis Historia foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Uma nova capital

Brasília, Esplanada dos Ministérios, como é vista desde o lago Paranoá

A primeira capital do Brasil, a "Cidade da Bahia" (Salvador), foi estabelecida sob o comando de Tomé de Sousa, que fora designado para o cargo de governador-geral. Na escolha da localização da cidade, além de questões práticas como existência de um bom suprimento de água e condições favoráveis à defesa, pesaram outras duas questões importantes: estar perto da região produtora de açúcar e facilitar ao máximo as comunicações com Portugal. Era 1549, e, para que desse lucro, a produção açucareira do Nordeste brasileiro precisava ser levada à Europa. Portanto, considerava-se que estar localizada junto ao mar não era, para a capital, nenhum defeito, sendo, ao contrário, até uma vantagem.
Mais tarde, já no Século XVIII, a descoberta de jazidas auríferas e de pedras preciosas nas Gerais, em Goiás e nas "minas do Cuiabá" deslocou o eixo econômico do Brasil em direção ao Sul. Uma vez que era do porto do Rio de Janeiro que as riquezas minerais eram embarcadas para o Reino, para lá foi movida a capital, e, mesmo depois da Independência, assim permaneceu ao longo das décadas do Império, apesar de, ocasionalmente, vir à baila a necessidade de transferir a sede de governo para algum ponto no interior (¹). 
Após a proclamação da República houve quem sugerisse a mudança da capital para Petrópolis, mas a proposta logo foi afastada, porque, se oferecia umas poucas vantagens, tinha a inconveniência de preservar muitos dos problemas existentes no Rio. Assim, a Constituição de 1891, a primeira republicana, trazia em suas Disposições Preliminares, Título I, Art. 3º:
"Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal."
E na Seção I, Capítulo IV, Artigo 34:
"Compete privativamente ao Congresso Nacional:
[...]
13. Mudar a capital da União."
Cerca de dois anos mais tarde, escrevendo na Gazeta de Notícias, Machado de Assis ponderou:
Catedral de Brasília em fotografia infravermelha
"A capital da República, uma vez estabelecida, receberá um nome deveras, em vez deste que ora temos, mero qualificativo. Não sei se viverei até a inauguração. A vida é tão curta, a morte tão incerta, que a inauguração pode fazer-se sem mim, e tão certo é o esquecimento, que nem darão pela minha falta. Mas, se viver, lá irei passar algumas férias, como os de lá virão aqui passar outras. Os cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a Praça do Comércio, as corridas de cavalos, tanto nos circos como nos balcões de algumas casas cá embaixo, os monumentos, a companhia lírica, os velhos templos, os rabequistas, os pianistas..." (²)
Na suposição da mudança como algo estritamente necessário, a ideia era inaugurar a nova cidade dentro dos festejos relativos ao centenário da Independência, a ser comemorado em 1922, um plano que nunca se concretizou. Como os leitores bem sabem, a construção de Brasília data da segunda metade da década de 50 do Século XX, tendo a inauguração formalmente ocorrido em 21 de abril de 1960. Machado de Assis, que não era nenhum Matusalém, faleceu em 1908, e, portanto, não viveu o suficiente para ver a nova capital. Para vê-la, precisaria ter alcançado a idade de cento e vinte anos. 

Brasília, Eixo Monumental, em fotografia infravermelha

(1) Um dos problemas apontados em relação ao Rio de Janeiro era a vulnerabilidade diante de eventual ameaça externa, por ser o litoral enorme e escassamente defendido. Com a instabilidade dos primeiros anos da República foram evidenciados também os problemas internos, com frequentes ameaças de revoltas que deixavam a população em polvorosa - basta lembrar a Revolta da Chibata (1910), quando marinheiros tomaram o controle de navios de guerra e ameaçaram bombardear a capital se suas reivindicações não fossem atendidas. Ameaça cumprida, aliás, ainda que levemente. 
(2) GAZETA DE NOTÍCIAS, 22 de janeiro de 1893.


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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

No Natal do ano 800

Era Natal no ano 800: de acordo com um registro em Annales regni Francorum (¹), nessa data teve lugar a coroação de Carlos Magno (²) pelo papa Leão III, acontecimento visto como marco de fundação do Sacro Império Romano. Em palavras da crônica, "no exato dia do santíssimo nascimento de Nosso Senhor, estando o rei na missa, antes que se levantasse para a Confissão do Apóstolo São Pedro, o papa Leão colocou a coroa sobre sua cabeça, sendo então aclamado pelo povo romano "Carlos Augusto [...], grande e pacífico imperador dos romanos, vida e vitória!""
Esse fato, longe de ser meramente cerimonial, tinha implicações políticas nada desprezíveis:
  • Por ter ocorrido em Roma (³), a coroação reforçava a expectativa quanto a um renascimento do Império Romano, agora reconhecendo a autoridade suprema da Igreja, daí o nome de "Sacro Império Romano", atribuído ao território sob domínio de Carlos Magno;
  • A questão de que, em última análise, o poder real estava submetido à autoridade da Igreja ficava sutilmente implícita, por ser do papa Leão III a iniciativa de pôr a coroa na cabeça do rei (⁴).
Entretanto, o sonho de uma Europa unificada sob a dinastia carolíngia teve vida curta. As lutas sucessórias entre os netos de Carlos (filhos de Luís, o Piedoso, coroado como herdeiro de seu pai em 814), se incumbiram de fragmentar o efêmero império. A Igreja, porém, longe de sair enfraquecida, veio a ser, ao longo da Idade Média, a verdadeira autoridade supranacional, aceita, ainda que com eventuais contestações, nos múltiplos territórios em que se fragmentou politicamente o Continente Europeu.

(1) datado do ano seguinte, 801.
(2) Carlos já era rei dos francos; a coroação em Roma fez dele o imperador do Sacro Império Romano.
(3) Indo a Roma, Carlos fizera um "favorzinho" ao papa, ao acalmar agitações locais; a recompensa, como se vê, foi generosa.
(4) Alguns historiadores entendem que a coroação, que devia parecer uma surpresa, fora previamente combinada.


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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A primeira capela dos capuchinhos franceses no Brasil

Muito semelhante à fundação do Colégio de São Paulo por missionários jesuítas em 1554, o princípio da catequese no Maranhão por capuchinhos franceses foi marcado pela construção de uma capelinha, cuja edificação, concluída na véspera do Natal de 1613, propiciou aos religiosos um lugar mais adequado à celebração da data, já que, antes disso, vinham usando uma espécie de tenda, que não primava pela solidez. A propósito desse acontecimento, o padre Yves d'Évreux registrou:
"Acabou-se esta capela na véspera de Natal e muito a propósito pela devoção que sempre teve o Seráfico Padre São Francisco, a quem era dedicada." (¹)
Lembremo-nos, leitores, apenas de passagem, que a tradição atribui a São Francisco o primeiro presépio, com a intenção de tornar mais vívida a história do Natal para pessoas que, de outro modo, teriam dificuldade para compreender o significado da data. Essa tradição, porém, é difícil de comprovar, aceita mais pela singeleza que encerra que por existência de documentação histórica. Mas vamos adiante, porque o padre d'Évreux fez outras considerações sobre a recém-construída capela, que nos permitem saber que, além dos capuchinhos, compareceram aos ofícios religiosos os franceses que, àquela altura, tentavam estabelecer uma colônia no norte do Brasil:
"Na verdade enchia-me de imenso prazer vendo nesta capelinha, feita de madeira, coberta de folhas de palmeiras, mais semelhante ao presépio de Belém do que esses grandes e preciosos templos da Europa, os nossos compatriotas franceses cantarem os salmos e matinas desta noite, e depois de purificados pelo sacramento da penitência receberem o mesmo Filho de Deus no presépio de seus corações, envolvido nas faixas do Santíssimo Sacramento do altar." (²)
Leitores de propensões poéticas talvez considerem que é ingenuamente belo esse relato de Yves d'Évreux. Não se pode deixar de notar, todavia, que, para além da celebração do Natal, a presença de franceses em um território que Portugal considerava sua propriedade iria opor, ali, soldados de duas nações cristãs, os quais, sendo necessário, não poupariam a vida dos inimigos, com o objetivo de assegurar à Coroa que defendiam o domínio de um pedaço de terra a mais na América do Sul. Como sucinta conclusão, basta lembrar que, neste caso, Portugal venceu.

(1) D'ÉVREUX, Ivo. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 10.
(2) Ibid., pp. 10 e 11.


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quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A Conjuração de Catilina

Para refrescar sua memória, leitor: No ano 63 a.C. um senador romano chamado Lúcio Sérgio Catilina liderou uma tentativa fracassada de assumir o controle de Roma, mediante a supressão da autoridade senatorial. A esse acontecimento é que se dá o nome de "conjuração de Catilina". 
A visão tradicional do episódio, proposta por antigos manuais de história, é de que Catilina foi um traidor dos ideais da República romana, nem mais e nem menos. Como veremos, é possível, a partir dos fatos, estabelecer uma ruptura com essa interpretação algo simplista. 
Muito do que se sabe sobre a Conjuração de Catilina vem dos escritos de Salústio (¹), um pilantra perdulário e arquicorrupto, mas de inigualável eficiência quando se tratava de invectivar a imoralidade alheia. Era também muito bom escritor, e sua Catilinae coniuratio é uma obra de grande vivacidade, concisa e, até certo ponto, imparcial, uma vez que o autor, apesar de detestar Cícero (cônsul, na época), não se atreveu, só por isso, a pintá-lo em cores totalmente negativas. 
O fato é que, àquelas alturas, Roma vivia em rebuliço. Estava longe de ser a primitiva comunidade dedicada à agricultura e ao pastoreio, e, eventualmente, à guerra. Por falar em guerra, será útil recordar que foram as grandes vitórias militares que enriqueceram a orgulhosa cidade da Península Itálica e fizeram dos romanos um povo sedento de luxo e prazeres sensuais. Até havia quem combatesse esse estado de coisas - Catão era um deles - mas as palavras caíam em ouvidos pouco dispostos à atenção. Nesse cenário, Catilina reuniu um grupo de pessoas, nada desprezível em número, gente disposta, segundo as aparências, a apoiá-lo em uma tentativa de ocupar o poder, banindo a autoridade do Senado. 
Por acaso (ou não) Lúcio Catilina era um depravado; mas haveria, na Roma de seus dias, muitos que fossem melhores que ele? De acordo com Salústio, a conspiração contra o Senado obteve o apoio de gente notável por ações vis (vários, inclusive, provenientes das próprias famílias senatoriais), perdulários que haviam malbaratado o patrimônio (²), condenados ao desterro por haverem cometido algum crime e, muito importante, camponeses jovens, pobres e ambiciosos, que queriam da vida algo mais do que ela ordinariamente poderia proporcionar. Resumindo, com as palavras de Salústio, "em uma cidade tão corrupta, foi facílimo para Catilina ver-se rodeado de facínoras [...]" (³). Aneu Floro, que escreveu muito depois dos acontecimentos, acrescentou à já venenosa conjuração um detalhe que, verdade ou não, serve muito bem para mostrar o que, mais tarde, se dizia em Roma sobre esses fatos: "Sangue humano confirmou a conjuração, bebido em taça por todos compartilhada - o cúmulo da maldade, não fosse pior ainda o motivo pelo qual se bebia." (⁴)
Voltemos a Salústio, por meio de quem somos informados dos planos dos conspiradores, que incluíam, primeiro, pôr fogo em doze lugares diferentes da cidade (para que, com a confusão gerada, fosse mais fácil executar as etapas seguintes), depois, assassinar Cícero (que denunciara Catilina no Senado), assassinar senadores pela mão de seus próprios filhos que haviam aderido ao complô e, tudo feito, deixar a urbe, uma vez que, fora dela, os conjurados deviam juntar-se às forças reunidas por Catilina.
Cícero, senador romano (⁷)
Mas Cícero não dormia em serviço. Infiltrou espiões entre os rebeldes (⁵) e, com isso, obteve a prisão daqueles que, à noite, saíam da cidade. Um vivo debate no Senado opôs Catão a César. O último, considerando a alta posição social dos aprisionados, propôs que se lhes poupasse a vida, embora fossem punidos com o confisco dos bens; o parecer do primeiro, porém, era de que todos os implicados já presos fossem imediatamente executados. Catão prevaleceu.
Fora de Roma, Catilina, que já havia incitado gauleses à rebelião, conseguiu formar duas legiões, a fim de enfrentar as forças enviadas pelo Senado. Em desvantagem numérica, os revoltosos foram derrotados. De acordo com Floro, "o cadáver de Catilina foi encontrado muito longe, entre os corpos de inimigos: morte honrosíssima, se houvesse tombado em defesa da pátria" (⁶). 
O resultado final, com a execução dos rebeldes por ordem do Senado e a morte de Catilina em campo de batalha, assegurou que, à posteridade, a conjuração fosse descrita como uma traição a Roma. Não seria melhor dizer que foi uma traição ao poder senatorial? Fica evidente, lendo para além do óbvio, que havia, na cidade, muita insatisfação contra a concentração do poder nas mãos do patriciado (⁸). 
Catilina obteve, a princípio, um apoio considerável entre a plebe, visto que Roma, vitoriosa contra inimigos externos, não havia conseguido superar, em definitivo, os problemas internos. Na visão de Salústio, isso significou um reviver das antigas lutas entre patrícios e plebeus. Mais tarde, porém, ao perceber que as possibilidades de sucesso da conjuração se desvaneciam, a plebe mudou de lado, e chegou a celebrar a prisão dos revoltosos. Talvez a proposta de incendiar a cidade, sugeriu Salústio, tenha soado muito mal para aqueles cujas posses eram tão limitadas que corriam o risco de desaparecer, no caso de um incêndio. Ele não fazia ideia da importância que, no futuro, um incêndio ainda teria em Roma.

(1) Gaius Sallustius Crispus, ou Caio Salústio Crispo (escolha, leitor, de acordo com sua preferência); viveu entre 86 a.C. e 34 a.C., sendo, portanto, um contemporâneo da Conjuração de Catilina.
(2) Se isso era condição para apoiar Catilina, chega a ser surpreendente que o próprio Salústio não estivesse entre os conjurados.
(3) SALÚSTIO. Catilinae coniuratio.
(4) FLORO. Epitome rerum Romanarum Livro IV.
(5) Essa estratégia é muito antiga.
(6) FLORO. Op. cit.
(7) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 159.
(8) Aristocracia romana, que se dizia descendente dos fundadores da Cidade.
Todas as citações de Catilinae coniuratio e Epitome rerum Romanarum que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O trabalho do meirinho-mor, de acordo com as Ordenações do Reino

O que o trabalho do meirinho-mor nos ensina sobre a autoridade monárquica


"Você sabe com quem está falando?" - frases com conteúdo equivalente a esta existem há muito tempo e geralmente brotam da boca de quem acha que as leis e regras são necessárias e devem ser estritamente cumpridas - pelos outros, é claro.
Admitindo que gente poderosa, na eventualidade de cometer algum ato indevido, podia oferecer resistência à prisão, as antigas leis do Reino (¹) estipulavam que houvesse um funcionário para agir especificamente nestes casos: era o meirinho-mor. 
O Livro I, Título XVII das Ordenações do Reino (²) afirmava que ao meirinho-mor competia "prender pessoas de estado e grandes fidalgos e senhores de terras [...]". Ora, leitores, dessa breve determinação podemos extrair ao menos duas conclusões:
  • Nesse tempo, a gente que eventualmente se achava acima da lei e até acima da autoridade real incluía a nobreza e os grandes proprietários de terras, sem desconsiderar que, com certa frequência, as duas posições coincidiam em uma mesma pessoa;
  • O fato de que as leis previam um funcionário especificamente para assegurar que os infratores de alta posição social e/ou econômica fossem alcançados pela Justiça é indício de que, de outro modo, escapariam, fazendo burlas aos tribunais e à própria autoridade real, mesmo em um país de precoce centralização monárquica. 
À vista disso, meus leitores, respondam: Se era assim no Reino, como imaginar que em terras portuguesas na América, sendo poucas as autoridades e distante o governo, haveria pronta aplicação das leis? Como não seriam elas papéis, apenas papéis? Há coisas que os séculos não conseguiram apagar (ainda).

(1) O "Reino", neste caso, era Portugal; nos tempos coloniais, era comum que colonizadores do Brasil assim se referissem a seu país de origem.
(2) Compilação de leis publicada no começo do Século XVII, que vigorava em Portugal e em seus domínios (também no Brasil, portanto). A maioria das leis era de existência anterior. Neste blog é seguida a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

E se Papai Noel, em lugar de deixar presentes, levasse os sapatos?

Nicolau de Mira foi um bispo que viveu entre os Séculos III e IV. Daí a ser chamado Papai Noel houve um longo e acidentado caminho, não completamente entendido. 
O ser humano "de carne e osso" não era o que poderíamos classificar como um modelo de serenidade: à semelhança de muitos clérigos de seu tempo, Nicolau gostava de um debate doutrinário que, às vezes, degenerava em comportamento pouco apropriado para religiosos. Isso era moda em seus dias, e as pessoas ficavam tão entusiasmadas com essas discussões quanto hoje ficam os fãs por suas equipes de futebol preferidas.
Apesar disso, Nicolau de Mira (ou, se quiserem, São Nicolau) ficou conhecido por suas preocupações pastorais em favor das crianças que viviam em sua área, especialmente as que eram pobres. Talvez tenha brotado daí a tradição que, depois de voltas tão numerosas que dariam uma espiral, acabaria chegando ao velhinho gorducho, sorridente, com longas barbas brancas e traje vermelho, que corta o céu do Natal em um trenó puxado por felizes renas do Polo Norte. Convenhamos: nessa história, o capitalismo se esmerou.
No Brasil de outrora as crianças ouviam que seus presentes eram trazidos pelo Menino Jesus. Aos poucos, São Nicolau foi encarregado do assunto, e hoje não há menino ou menina que não espere por presentes encomendados ao "bom velhinho", devidamente pagos pelos pais, tios e avós. Ficou fácil para Papai Noel, ainda que seja pouco provável encontrar quem acredite nele. Apesar disso, ainda é argumento eficiente para crianças malcomportadas: "Olhe que Papai Noel não vai trazer seu presente de Natal!..." (¹)
Pois bem, voltando ao Brasil de antigamente, recordemos que, ao entardecer da véspera de Natal, era costume que as crianças colocassem seus sapatos na janela ou em outro local visível, aonde iam, na manhã seguinte, procurar os presentes (²). Aos poucos, essa tradição, como muitas outras, desapareceu.  E se Papai Noel resolvesse, em lugar de deixar presentes, levar os sapatos? Ora, leitores, que maldade! Nem pensar em uma coisa dessas... 
De qualquer modo, quando a economia não vai bem, os sapatos sofrem e têm a aposentadoria adiada, sabe-se lá para quando. Vejam, à direita, um cartoon que apareceu na revista carioca O MALHO, edição de 22 de dezembro de 1923. A legenda diz:
"JECA - Esse sapato é meu, Papá Noel.
PAPÁ NOEL - Eu já sabia. Reconheci pelos buracos." (³)
Alguém tem dúvida de qual seria o melhor presente para o Jeca?

(1) Portanto, leitores, se Papai Noel não anda generoso com vocês, agora já sabem o motivo.
(2) Na maior parte do Brasil, as casas não têm lareiras (não são necessárias), daí o costume já abandonado, mas que foi muito comum, de colocar os sapatos das crianças junto a uma janela, à espera dos presentes de Natal.
(3) O MALHO, Ano XXII, nº 1110, p. 35. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

"Haitianismo", ou o medo de um levante geral dos escravos

"Não é possível que haja escravos sem todas as consequências escandalosas da escravidão: querer a úlcera sem o pus, o cancro sem a podridão é loucura, ou capricho infantil."
Joaquim Manuel de Macedo, As Vítimas-Algozes

O medo de uma revolta de escravos


Proprietários de escravos e autoridades viviam sob medo constante de uma revolta de cativos. Não era para menos: privados da liberdade, submetidos a uma rotina de trabalho extenuante e, em muitos casos, com alimentação insuficiente e vestuário miserável, os escravos viviam no limite da capacidade humana de tolerância. Não era raro que algum escravo morresse em consequência dos maus-tratos que recebia. Estranho, mesmo, seria se não acontecessem rebeliões. 
"Haitianismo", porém, já era outra coisa: o terror inspirado, não por uma revolta isolada, mas pela possibilidade de um levante massivo de escravos, não contra um senhor em particular, mas contra o próprio sistema escravista, nos moldes do que ocorrera durante os eventos relacionados à independência do Haiti. 
E se alguma coisa parecida acontecesse no Brasil? E se os fatos ocorridos no Haiti chegassem ao conhecimento dos escravos e "contaminassem" a população cativa? 
É fato, todavia, que, se uma rebelião de proporções nacionais jamais aconteceu no Brasil, aqui e ali pipocavam revoltas. Vejamos, então, leitores, uns poucos dentre os muitíssimos incidentes dessa natureza, dos quais se tem registro. 

Algumas revoltas de escravos


Escravo, de acordo
com Thomas Ender (²)
1. De acordo com Varnhagen, "em 1807 houve receios de um levante de africanos uçás [sic]; evitou-o o governador ordenando que os presos não andassem de noite fora de casa". (¹) É possível que haja na História Geral do Brasil um erro de revisão, e que a ordem para não sair de casa à noite tenha sido imposta aos escravos em geral. De qualquer modo, essa tentativa de levante ocorreu na Bahia.

2. O segundo volume da Crônica Geral do Brasil, escrita por Mello Moraes, traz este outro registro de uma tentativa frustrada de levante, novamente na Bahia:
"[...] Em virtude de uma denúncia da Câmara da Bahia no dia 20 de dezembro de 1830, de que na noite do dia 24 de dezembro [...], mesmo mês e ano, haveria horrorosa sublevação dos escravos na cidade e recôncavo da Bahia, por denúncias que teve o vereador da Câmara, Domingos José Antônio Rebelo, que um escravo de J. Galdino da Maia Guimarães lhe havia dito ter sido convidado para o levante na noite do Natal, dos africanos da nação mina, nagô, bronum, autá [sic], jeje, sendo o plano matar os senhores, capitaneados eles por um chefe, doze cabos de guerra, cujos africanos tendo planejado a sublevação foi ela abortada pelas prisões dos chefes e comprometidos em diferentes pontos da cidade [...]." (³)
A ideia de começar a revolta na noite de Natal pode ser facilmente entendida porque, estando a população livre ocupada nos festejos e celebrações religiosas, maior seria o descuido em relação à conduta dos escravos; além disso, muitos senhores tinham o costume de dar aos cativos alguma licença para comemorar a data, presenteando-os com uma pequena importância em dinheiro e, frequentemente, também com alguma roupa nova.

3. Em 1839, no Maranhão, "apareciam partidas de escravos armados debaixo da direção de um tal Cosme, negro muito audaz, que se havia evadido da prisão, e sublevado outros de diferentes fazendas" (⁴), conforme informação de Abreu e Lima.

4. Como quarto e último exemplo, uma pequena (e curiosa) rebelião ocorrida no Rio de Janeiro em 1858, tendo o pintor francês Auguste François Biard como testemunha ocular; hábil em usar pincel e tintas, Biard, neste caso, compôs muito bem o quadro empregando as palavras:
"Durante minha permanência no Rio venderam-se sete escravos que pertenciam a um senhor de bom coração; esses pobres diabos, habituados a ser tratados com doçura, não se conformavam com a ideia de irem cair a outras mãos e, nesse propósito, revoltaram-se, entrincheiraram-se. Ofereceram desesperada resistência a uns sessenta soldados e muitos deles só foram dominados depois de gravemente feridos. Levaram-nos então para a Correção. É nessa prisão que os donos de escravos mandam castigar suas "peças" por meio de chicotadas. [...]." (⁵)

O que se entendia por crime de insurreição de escravos no Código Criminal do Império do Brasil


De acordo com o Código Criminal do Império, Capítulo IV, Artigo 113, não era qualquer ato de insubordinação de um ou mais escravos que caracterizava o crime de insurreição; era preciso um mínimo de vinte rebeldes com a intenção explícita de atentar contra a ordem estabelecida, rompendo com a condição servil: "Julgar-se-á cometido este crime reunindo vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força." A punição para quem liderasse uma insurreição de escravos ia de quinze anos de galés à pena de morte; todos os demais integrantes da sublevação seriam sujeitos a açoites. Quantos? O juiz é quem determinava.

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 1078.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, pp. 301 e 302.
(4) LIMA, José Inácio de Abreu e. Compêndio de História do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, p. 295.
(5) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 48.


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