quinta-feira, 25 de maio de 2023

Móveis do Século XIX e início do Século XX

Nos tempos coloniais, os móveis para uso doméstico eram, quase sempre, bastante rústicos, ainda que houvesse gente de muitas posses que trazia mobiliário do Reino e, portanto, caríssimo, para os padrões da época. Mas hoje, meus leitores, trataremos apenas dos móveis usados no Brasil principalmente no Século XIX e começo do Século XX.
Anúncio de compra de móveis usados, 1852 (¹) 
Antes da era da produção em massa, móveis eram feitos frequentemente em oficinas nas quais artesãos trabalhavam atendendo a encomendas. Assim produzidos, nada tinham de descartáveis, eram quase obras de arte e passavam como herança de uma geração a outra. Não era incomum que tivessem detalhes e adornos entalhados à mão, de modo a aumentar sua beleza e valor. Apenas os muito ricos substituíam os móveis, de vez em quando, para atender a uma nova moda, que, como é fácil imaginar, não mudava com a mesma facilidade de hoje. Aos de menos recursos ficava o mobiliário simples, composto em geral por uma mesa, poucas cadeiras, talvez um armário, camas (se o costume não fosse o de dormir em rede), e, onipresente, um oratório de boa madeira para os santos da devoção da família, e dificilmente algo além disso. 
Um anúncio publicado em 1852 no jornal Aurora Paulistana dizia: "Quem tiver uma pequena mobília em meio uso, para vender, constando de meia dúzia de cadeiras de palhinha, uma meia cômoda, e um sofá, dirija-se à rua de S. Bento, nº 61" (¹). Infelizmente, não sabemos quem era o interessado nos ditos móveis. Seria, talvez, um estudante da Faculdade de Direito, vindo de alguma localidade distante e que precisava estabelecer moradia temporariamente na cidade? Ou talvez alguém de poucos recursos, mas com casamento à vista? São apenas hipóteses, podia ser coisa bem diferente.
No interior do Brasil não era incomum que coubesse aos próprios usuários a tarefa de fazer os móveis rústicos de que tinham necessidade, na falta de profissionais especializados. Em comum porém, com a mobília fina das casas senhoriais, tinham a madeira excelente das florestas brasileiras, embora nem sempre as mesmas espécies fossem empregadas. Peroba, por exemplo, era coisa de mobiliário barato, segundo explicação de Joaquim Floriano de Godoy, senador do Império: "Na marcenaria [a peroba] só é empregada para a confecção de mobílias ordinaríssimas, porque [...] abre-se facilmente e porque a bonita cor que mostra no momento em que é lavrada desaparece prontamente pela ação do ar e da luz" (²). Aratibá era madeira somente para mobiliário pesado:  "Em razão de fender-se com facilidade, apesar de uma bonita cor, [aratibá] é pouco empregada na marcenaria e só em objetos de grande volume, como armários, guarda-roupas, presta-se relativamente a esse destino" (³). 
Por outro lado, Godoy lembrou que, em Campinas - SP, caviúna era a madeira mais desejada para o mobiliário fino nos casarões habitados por barões do café e suas famílias: "O cabiúna ou caviúna [...], cujo lenho é pesado, resistente aos instrumentos cortantes, pouco poroso, de cor mais ou menos escura e elegantemente rajado de laivos quase negros, algumas vezes rodeados de modo a assemelhar-se à tartaruga, é, por causa do seu lindo aspecto e mais qualidades, a única que no município [de Campinas] se emprega na marcenaria para a confecção de mobílias de luxo. É de duração na terra. Na Europa é conhecida e muito estimada" (⁴). 

Anúncio de móveis de luxo, 1916 (⁵)

Quando a produção em maior escala começou a ganhar impulso, os móveis tinham, ao menos na aparência, alguma semelhança com o antigo mobiliário artesanal. Mas fatores como preço e demanda foram, aos poucos, introduzindo novos padrões, em associação com a necessidade de maior praticidade exigida para as casas e famílias modernas - sim, a gente que vivia no começo do Século XX se julgava muito moderna, como, aliás, pensamos todos nós, hoje, e pensarão, provavelmente, os que vierem depois.
Graças à qualidade das madeiras empregadas, quem gosta de móveis antigos pode, até hoje, vê-los facilmente, e nem é necessário ir a museus. Basta uma visita ao antiquário mais próximo, com a vantagem de ser possível comprar e levar para casa aquilo que mais agradar. 

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 61, 15 de julho de 1852, p. 4.
(2) GODOY, Joaquim Floriano de. A Província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de Janeiro, 1875, p. 33.
(3) Ibid., p. 34.
(4) Ibid.
(5) O ECHO, Ano XV, nº 4. São Paulo, outubro de 1916.


Veja também:

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Indígenas não deviam trazer arcos quando vinham a São Paulo

Setenta anos se haviam passado desde a fundação, por missionários jesuítas, do pequenino Colégio de São Paulo. A vila de mesmo orago crescera nas imediações, e já era famosa pelas marmeladas, pelas plantações de trigo, pela criação de porcos e pela escravização de indígenas, capturados, sertão adentro, por levas de paulistas que faziam o "descimento do gentio", fosse para trabalho compulsório em suas próprias fazendas, fosse para venda em outras localidades. Para disfarçar o que, de fato, era escravidão, falava-se em "índios administrados", e "serviço dos forros", que, aliás, quase sempre só eram forros no nome. 
Uma ata da Câmara de São Paulo, datada de 27 de janeiro de 1624, mostra, contudo, que os colonizadores nem sempre estavam tão seguros com a presença dos cativos. Dizia ela:
"Aos vinte e sete dias do mês de janeiro do ano presente de mil e seiscentos e vinte e quatro [...] nesta vila de São Paulo [...] se juntaram em câmara os oficiais dela [...] e sendo juntos em câmara puseram em prática as coisas do bem comum da terra e requereu o procurador aos [...] oficiais da câmara [...] que os negros dos brancos e das aldeias não tragam arcos, pelo muito dano que fazem matando as criações dos moradores [...]." (¹)
Os "negros" a que o procurador se referiu eram ditos "dos brancos e das aldeias", subentendendo-se, portanto, a escravização. A menção às aldeias, provavelmente, era relativa àquelas em que indígenas viviam sob a tutela dos jesuítas ou sob as ordens de um oficial conhecido como "capitão dos índios". Mas "negros"? Seriam escravizados de origem africana?
Não, na época quase sempre o termo "negro" era aplicado a quem fosse escravizado, independentemente de sua origem étnica, e isto fica claro quando, na mesma ata, se vê, sob o registro do escrivão, o que é que decidiram os senhores camaristas de São Paulo: "[...] mandaram [...] que nenhum negro do gentio da terra não entrasse nesta vila com arco, para evitar o dito dano [...]." (²) 
Ora, sabe-se que os arcos eram armas que indígenas manejavam com notável habilidade, e talvez galinhas, porcos, cães e vacas fossem alvos fáceis, uma verdadeira tentação para exercício de pontaria. Contudo é lícito conjecturar que a razão para o interdito fosse outra: os colonizadores eram, ainda, pouco numerosos; muitos eram os indígenas, escravizados ou livres. Reunidos dentro da vila e munidos de arcos e de boa quantidade de flechas, poderiam causar muito dano, não só "matando as criações", como dizia a ata, mas contra os próprios moradores. Indígenas, armados e numerosos, seriam, pois, motivo de preocupação, ainda que, nesse tempo, muitos dos colonizadores já se houvessem aparentado com eles

(1) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão, para não fatigar o cérebro e a paciência dos leitores deste blog.
(2) Ibid.


Veja também:

quinta-feira, 11 de maio de 2023

O envelhecimento da Terra e o declínio da agricultura romana

Columella, autor romano do Século I, registrou no Livro Segundo de sua Res rustica uma ideia que, segundo ele, foi defendida por vários escritores ilustres da Antiguidade: a Terra estaria envelhecendo e se tornando improdutiva. 
Acompanhem, leitores, o argumento que, no mínimo, é curioso: comparava-se a Terra, em sua fertilidade, a uma mulher (é a mitologia recorrente da "mãe terra"); ora, assim como as mulheres, quando envelhecem, perdem a capacidade de procriar, a Terra, que ia ficando velha, estaria, pouco a pouco, se tornando estéril, disso resultando a crescente dificuldade em fazê-la produzir como se supunha que ocorrera no passado. 
Embora concordasse com o fato de que as mulheres, ainda que vivessem muito, tinham, pela idade, um limite à capacidade reprodutiva, Columella notou que coisa semelhante não acontecia com as áreas agricultáveis que, quando deixadas por certo tempo sem cultivo, voltavam, posteriormente, a recompensar os esforços de quem plantava. Esse princípio foi aplicado mais tarde, na Idade Média, e contribuiu, como se sabe, para evitar o esgotamento do solo em parte da Europa, à medida que se efetuava um rodízio nas lavouras (chamado de rotação de culturas), evitando a repetição em anos sucessivos de um mesmo cultivo, enquanto, periodicamente, áreas eram deixadas em pousio. 
Agricultores da Antiguidade e Idade Média não podiam contar com as vantagens (e desvantagens) que a moderna indústria química oferece à agricultura. Conheciam, porém, técnicas de fertilização que hoje chamaríamos de orgânicas. Mas, à parte de tudo que já foi dito, é preciso considerar que um outro fator emperrava a agricultura entre os romanos, exatamente pela época em que Columella escreveu: quase todo o trabalho nas lavouras era feito por escravos, que dificilmente mostrariam algum interesse em melhorar as práticas agrícolas - que lucro teriam com isso? 
Daí decorre a inevitável conclusão de que Roma, com a ampliação da mão de obra escrava, que aparentemente deveria favorecer o crescimento na produção, enfrentou situação oposta, tornando-se mais e mais dependente das importações de trigo e outros produtos para alimentar sua população, entre a qual havia um número crescente de trabalhadores livres desocupados. A existência do Império poderia ter sido abreviada, não fora, por exemplo, a produção de trigo do Egito, que atravessava o Mediterrâneo para alimentar as multidões de romanos famintos.


Veja também:

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Vestuário ensinado aos indígenas por missionários jesuítas

Não é verdade que todos os povos indígenas do Brasil, antes da chegada de europeus no final do Século XV, dispensavam toda e qualquer forma de vestuário. Contudo, é fato que muitos grupos não viam necessidade de roupas. Isso escandalizou os colonizadores e, em particular, os missionários da Companhia de Jesus. Resultado? Trataram de vestir os indígenas que catequizavam. 
Mas, afinal, que roupas eram essas que os padres tanto insistiam que seus catecúmenos vestissem? No último dos Diálogos das Grandezas do Brasil (¹), obra escrita no começo do Século XVII, Brandônio e Alviano discutem essa questão:
"Brandônio
[...] Antigamente, e ainda até hoje no sertão, [os indígenas] andavam e andam todos despidos, assim homens como mulheres, sem usarem de coisa alguma, para com ela haverem de cobrir suas partes vergonhosas.
Alviano
Deviam de ouvir contar de nosso padre Adão, enquanto esteve em estado de graça.
Brandônio
Mas já agora o gentio que habita entre nós anda coberto, os machos com uns calções e as fêmeas com uns camisões grandes de pano de linho muito alvo, e os cabelos enastrados com fitas de seda de diferentes cores, costumes que introduziram entre eles com assaz trabalho os padres da Companhia; porque não havia quem os fizesse apartar de sua natureza, que os incitava a andarem nus." (²) 
Apenas algumas considerações mais sobre o assunto:
  • Roupas, nesse tempo, eram muito caras e, portanto, é compreensível que o vestuário introduzido pelos jesuítas fosse bastante simples, ao que se deve acrescentar a conveniência de um traje leve para quem vivia em locais quentes e/ou nas matas do Brasil;
  • Não era fácil para os missionários a obtenção de roupas que seriam oferecidas aos indígenas - é sabido que Manuel da Nóbrega solicitou que fossem enviadas do Reino, fazendo um pedido a quem, caridosamente, pudesse doá-las;
  • Missionários jesuítas procuravam dirigir seus catecúmenos à confecção das próprias roupas, e, ao contrário do que disse Brandônio, é pouco provável que tecidos de linho fossem o padrão - tecidos de algodão, preparados pelos próprios indígenas, seriam um uso mais plausível.

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. - Diálogo Sexto. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 298.


Veja também: