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quarta-feira, 18 de junho de 2025

Multa para quem não vinha às celebrações de Corpus Christi

Em ata da vereação de 12 de junho de 1632, na Câmara da vila de São Paulo, o escrivão Ambrósio Pereira registrou um requerimento do procurador para que se "condenassem os moradores que não vieram à vila dia do corpo de deus [sic], o que visto pelos ditos oficiais houveram todos por condenados em cento e sessenta [sic] cada um dos que não vieram nem enramaram suas ruas [...]" (*).
O escrivão omitiu no documento a unidade monetária em que os faltosos seriam multados. Diz apenas "cento e sessenta", mas, considerando-se o dinheiro que então circulava, é provável que fossem cento e sessenta réis. Não podia ser muita coisa, porque pouco era o dinheiro amoedado em circulação no Brasil Colonial. Mas, justamente por isso, a multa devia pesar. Se já havia tão pouco, a perda de algumas moedas significava muito.
Quem, então, ousaria correr o risco, não vindo à procissão e não "enramando" as ruas?
Lembrem-se, meus leitores, esses eram tempos do "cuius regio, eius religio". Não se cogitavam liberdades individuais em assunto de religião - isso é coisa do mundo pós-Iluminismo, pós-Revolução Francesa. Portanto, a participação nas festas religiosas não era apenas uma obrigação social, era tratada também como um dever civil, daí a imposição de multa a quem se abstinha.
Quanto aos motivos para ausências em Corpus Christi, podemos apenas fazer conjecturas. A maior parte da população de São Paulo vivia, então, em fazendas a alguma distância da vila, disso resultando que eventuais fenômenos meteorológicos um tanto exagerados podiam fazer com que moradores não ousassem sair de casa. O documento, porém, não refere quanto a tempestades ou inundações. Em um caso desses é provável que ata posterior contivesse um pedido de isenção da multa, com a devida explicação para a ausência. Isso, porém, não aconteceu. Alguém poderia estar doente, incapaz de enfrentar estrada ou deslocamento por rio para chegar à vila, mas também não há qualquer referência nesse sentido. Havia, é certo, os que estavam, contra todas as proibições, em expedições sertão adentro, estimulados pela ideia de capturar indígenas para escravização, e, nessa hipótese, ninguém seria tão atrevido a ponto de alegar o real motivo do não comparecimento.
Finalmente, podemos supor que as ausências ocorressem por razões de ordem religiosa. O Estado lusitano somente admitia uma religião, mas dizia-se, na época, que a vila de São Paulo estaria infestada de gente que, de catolicismo, só tinha a fachada - seria melhor pagar a multa e permanecer em silêncio.
Podemos apenas imaginar o que de fato ocorreu naquele Corpus Christi de 1632. Mas esse é, certamente, o lado divertido de um documento como este que hoje investigamos, para bisbilhotar algum aspecto da vida colonial, com sua simplicidade e contratempos.

(*) O documento citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Contenda por um banco de igreja

Um banco na igreja foi motivo de discórdia entre população e vereadores em São Paulo no Século XVII


Embora pareça estranho para nós, que vivemos no Século XXI, é fato que, até bem adiantado o Século XIX, a maioria das igrejas no Brasil não tinha bancos em que pudessem sentar-se os que compareciam aos serviços religiosos.
Desconfortável? Sim, e pior para os fiéis do sexo masculino, que deviam ouvir missa em pé. Quanto às mulheres, era uso que permanecessem sentadas em almofadas que traziam de casa (ou que alguém, geralmente um escravo, era encarregado de trazer para a respectiva senhora). A dama que não levasse almofada acabava por sentar-se no chão. Por essa razão, mulheres se acomodavam perto do altar; homens, mais ao fundo da igreja.
Pois bem, sabendo que era esse o costume, vamos a um caso um tanto cômico ocorrido em São Paulo. Era o ano de 1632. Em ata da vereação de 10 de janeiro, pode-se ler:
"[...] pelo procurador foi dito que o banco que estava no meio da igreja em que se assentavam os oficiais era grande prejuízo e escândalo deste povo por se tratarem mal as mulheres, que lhes requeria outrossim, o que visto pelos ditos oficiais mandaram que se tirasse o dito banco [...]." (*)
No pressuposto do contexto da época, pode-se conjecturar: Será que o tal banco fora posto na igreja para melhor acomodar os senhores camaristas durante as celebrações religiosas ligadas ao Natal? Como, anteriormente, o livro de atas da Câmara de São Paulo não fazia qualquer referência ao descontentamento com o banco, é provável que não estivesse na igreja há muito tempo. Se admitirmos essa possibilidade, pode-se indagar se o banco fora lá "esquecido", talvez até intencionalmente. Não sabemos, mas nada nos custa imaginar os sussurros de indignação das mulheres de São Paulo, apontando o banco em que os que detinham o mando na vila podiam estar sentados com um grau de conforto que ninguém mais tinha. Desaforo! Abuso! Indecência!...
A fofoca devia grassar livremente, e talvez já fosse do conhecimento dos camaristas. Só restava, mesmo, dar ordem para que o banco fosse posto fora da igreja.

(*) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.

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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Gado andava solto dentro da vila de São Paulo no Século XVII


Havia gado passeando à vontade pelas ruas da vila de São Paulo no Século XVII. Por consequência, havia vestígios da passagem dos animais em toda parte, o que incluía o adro das igrejas. Que falta de respeito!...
Diante disso, a Câmara da vila decidiu, em 22 de novembro de 1624, que os proprietários dos animais deveriam ser notificados para limpar os arredores das igrejas, ainda que não se fizesse menção de mantê-los em lugar seguro, longe das vias públicas e residências:
"[...] pelos oficiais foi acordado que o gado que anda nesta vila faz muito dano às igrejas, pelo que mandaram fossem notificados os donos deles, a saber, Bartolomeu Gonçalves tenha cuidado de limpar o adro do Colégio (¹) e o adro da Santa Misericórdia, e Aleixo Jorge tenha cuidado de limpar o adro da Matriz e o adro de Nossa Senhora do Carmo, [...] terão cuidado de mandarem fazer isto todos os dias [...]." (²) 
Seria apenas mais uma notificação de rotina na administração da vila de São Paulo, a não ser pelo fato de que o escrivão das execuções, a quem competia fazer as notificações, simplesmente se recusou a tal tarefa, levando os camaristas, em 21 de dezembro, à decisão de afastá-lo das funções que exercia pelo prazo de quinze dias. 
Recomendou-se, em seguida, que o escrivão da Câmara efetuasse as notificações. Problema resolvido? Não, ao que parece, porque no ano seguinte já com novos oficiais (³), o assunto do gado que andava solto na vila voltou a ser discutido, sendo, desta vez, ordenado aos proprietários que prendessem os animais à noite, porque causavam problemas não só no adro das igrejas, mas em outros pontos da povoação: 
"[...] foi mandado a mim, escrivão, notificasse Aleixo Jorge e Bartolomeu Gonçalves, que cada um deles, com pena de cinco tostões [...], todas as noites mandassem encerrar o seu gado, visto danificar o adro das igrejas nesta vila e as casas dos moradores e os caminhos e entradas desta vila, tudo estava danificado, o que era em prejuízo deste povo [...]." 
A multa estipulada, em caso de desobediência, não era grande coisa, mas havia falta crônica de dinheiro amoedado na vila. Não é impossível que, eventualmente, proprietários de gado achassem que valia a pena ignorar as ordens da Câmara. Esses prosaicos incidentes mostram, contudo, como era a prosaica vida na prosaica vila de São Paulo pelas alturas do Século XVII. Quem ousaria falar em expulsão do gado e de seus proprietários, sabendo que, nesse tempo, era difícil encontrar quem fornecesse carne suficiente para a população?

(1) Tratava-se do Colégio dos Jesuítas. 
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) As eleições para a administração local eram anuais. 


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quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Expulsão de um maldizente da vila de São Paulo

Conhecem algum especialista em falar mal da vida alheia, leitores? Ao que parece, as povoações do Brasil Colonial não tinham falta de alguns desses espécimes. Na obra do poeta seiscentista Gregório de Matos é possível perceber, vez e outra, que as palavras foram usadas para castigar os fofoqueiros e maldizentes da primeira capital do Brasil, a Cidade da Bahia, hoje chamada Salvador. "Em cada porta um frequentado olheiro, / Que a vida do vizinho, e da vizinha / Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, / Para a levar à Praça, e ao Terreiro" - Quem é que não se recorda desses versos? (¹)
Pequena como era nas primeiras décadas do Século XVII, São Paulo teve, também, o seu maldizente de ofício, de cujas habilidades somos informados pela ata da Câmara com data de 5 de setembro de 1526:
"E logo pelo procurador foi requerido [...] a eles ditos oficiais mandassem botar fora desta vila a Belchior [...], porquanto é prejudicial para este povo por respeito de sua boca, não haver nesta vila homem honrado nem mulher honrada, por ser de ruim boca, e juntamente conste já papéis que nesta Câmara há em que consta por informação o botaram já da Bahia por ser ruim boca e procedimento de sua casa e dar muitos escândalos de sua boca e vida nesta terra, pelo que requeria a suas mercês o botassem fora desta vila [...]."  (²) 
Portanto, o tal homem já havia sido expulso da Bahia, por idênticos serviços. Mas em que resultou seu caso em São Paulo? 
Em 19 de setembro de 1826 o escrivão da Ata da Câmara voltou a se ocupar dele:
"[...] deferiram os ditos oficiais o requerimento que fez o procurador [...] contra Belchior [...], mandaram os ditos oficiais que o juiz ordinário Sebastião de Freitas tirasse nova prova de seu viver e costumes que tem o dito Belchior [...], para com isso darem cumprimento à lei e ao requerimento do dito procurador [...]."  
Depois disso, não sabemos o que ocorreu ao dito tagarela, se expulso da dita vila foi, se com sua dita língua foi atormentar outra povoação colonial, ou se, já cansado de tantas aventuras, abandonou seu dito mau comportamento e acabou virando gente de bem. Está dito! 

(1) Vejam, leitores, que seus estudos de Literatura nos tempos escolares foram muito úteis. 
(2) Os trechos de atas aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão. 


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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Juízes de ofícios em São Paulo no Século XVII

Periodicamente, a Câmara de São Paulo mandava vir à presença das autoridades locais todos os juízes de ofícios existentes na vila, para que prestassem juramento, segundo o costume e legislação da época, e para que, com a assistência de um companheiro, que devia zelar pelos interesses do povo, fizessem uma tabela dos preços que podiam ser praticados por todos os que exerciam a mesma profissão. 
Assim, é possível, através da documentação existente, saber quais ofícios tinham quem os exercesse em uma determinada ocasião, e, por consequência, tem-se uma ideia do desenvolvimento econômico que, passo a passo, ocorria na localidade. Para o ano de 1628, por exemplo, foram juramentados em São Paulo:

a) Juiz dos carpinteiros, em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Garcia Roiz, carpinteiro, para ser juiz dos carpinteiros que nesta vila há [...]" (¹);
b) Juiz dos barbeiros, também em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Francisco Botelho, para servir de juiz do ofício de barbeiro e de tudo mais que tocar a ele [...]" (²);
c) Juiz do ofício de seleiro, igualmente em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio Alves, para que fosse juiz do ofício de seleiro (³) e fizesse o regimento e taxa das obras [...]"; 
d) Juiz do ofício de alfaiate, ainda em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento a Gaspar Gonçalves, para ser juiz do ofício de alfaiate e faça o regimento e taxa das obras [...]";
e) Juiz do ofício de ferreiro, em 10 de junho de 1628:
"[...] apareceu Gaspar Dias, ferreiro, e pelo juiz lhe foi dado juramento para servir de juiz do ofício de ferreiro e fizesse o regimento e taxa do que hão de levar os oficiais ferreiros das obras que fizerem [...]";
f) Juiz do ofício de sapateiro, em 26 de novembro de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos a Francisco Roiz, sapateiro, para servir de juiz do ofício e debaixo do dito juramento faça a taxa e regimento [...]." 

Um indígena como juiz de ofício em São Paulo no Século XVII


Há, porém, um caso que foge ao padrão. Será melhor deixar que a ata correspondente, do dia 9 de setembro de 1628, fale por si: 
"[...] pelo vereador mais velho foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio, moço da terra, da casa de Francisco Jorge, para ser juiz do ofício dos tecelões, por não haver homem branco que o seja, e o dito moço ser o melhor tecelão que há na terra, o qual examinará todos os negros (⁴) que tecem, ao que for perito lhe será dada sua carta de examinação [sic], e ao que não for para isso, que não trabalhe [...]." 

Que conclusões são possíveis, então?
A ata é explícita em afirmar que não havia na vila algum português, do Reino ou da terra, que fosse tecelão; é clara, também, em afirmar que o novo juiz dos tecelões, Antônio, era indígena ("moço da terra"), e provavelmente, escravo ("da casa de Francisco Jorge). Se for esse o caso, então todo o trabalho que fazia seria lucro para seu senhor, não para si mesmo, mas isso é apenas uma conjectura. Não há dúvida, porém, de que devia ser respeitado pela qualidade do trabalho que fazia. Finalmente, fica entendido que a preferência era, sempre, para juízes de ofício dentre os colonizadores, em cuja falta, porém, um indígena poderia ser admitido.

(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) No Século XVII, e mesmo muito depois, barbeiros não se encarregavam apenas de fazer a barba ou cortar o cabelo de seus clientes. Em geral, também extraíam dentes e faziam sangrias. 
(3) O ofício de seleiro tinha muita importância, porque cavalos e mulas eram indispensáveis ao transporte terrestre, além de usados em diversas tarefas na agricultura.
(4) O termo "negro", nesse tempo, nem sempre era empregado em sentido étnico. Era costume chamar "negros" a todos os escravizados, independentemente da origem, africana ou indígena. 


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segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Por que especiarias do Oriente deveriam ser cultivadas no Brasil

Houve tempo em que o governo português proibiu a exportação para o Reino de especiarias do Oriente que fossem cultivadas no Brasil. O próprio cultivo chegou a ser (inutilmente) proibido. Para não prejudicar os interesses dos que investiam na navegação para as "Índias", era mais fácil proibir, ou fazer constar que era proibido. 
Passaram-se os anos e as conquistas lusitanas no Oriente foram minguando. Havia mais gente na Europa interessada nesse negócio. É verdade, também, que no
Século XVII tanta especiaria chegava ao Reino, que os preços já não eram tão compensadores, até porque a viagem para trazê-las era muito longa. Que fazer?
O padre Antônio Vieira (¹) teve uma ideia, que contrariava as antigas ordens reais:
"[...] aconselhou a El-Rei mandasse passar ao Brasil as plantas do Oriente, porque se davam e produziam mui bem nas terras da América, onde já se viam árvores de canela e algumas de pimenta, e raiz de gengibre, trazidas da Ásia; e a continuar esta cultura, teríamos em mais vizinhas conquistas e próprio nosso, o que comprávamos por nossa voluntária inércia e pecados aos holandeses. [...]" (²)
Dissecando o argumento:
  • O Brasil era menos distante que as regiões produtoras do Oriente;
  • O Brasil ainda era terra de Portugal, e não seria preciso comprar especiarias de estrangeiros;
  • A maioria das ervas aromáticas e especiarias orientais produzia admiravelmente no Brasil.
Portanto, por que proibir?  Melhor seria deixar livre seu cultivo, para os da terra e para a exportação. Funcionou. O cultivo deu tão certo que algumas plantas se tornaram, até hoje, uma verdadeira praga - gengibre, por exemplo, que quem planta precisa viver arrancando, não seja o caso de andar pisando sobre tudo o que cresce sob a terra. 

(1) 1608 - 1697.
(2) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 644.


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sexta-feira, 7 de junho de 2024

Falta de suprimentos na guerra contra os holandeses em Pernambuco

Ração escassa para os soldados


O tempo de permanência de holandeses em Pernambuco, e consequentemente de luta da população de origem lusitana para expulsá-los, foi de 1630 a 1654. O que agora se dirá, quanto à absoluta falta de víveres para os soldados, é referente à fase inicial da guerra, por volta de 1630. De acordo com Duarte de Albuquerque Coelho, testemunha ocular de muitos acontecimentos que descreveu, a situação era esta:
"Não tratava o general (¹) só de fazer guerra com as armas, mas de sustentar quem a fazia, não sendo esta a menor e a que mais se ia sentindo. Muitas vezes se deu de ração uma espiga de milho, por não haver outra coisa. Mandou plantar alimentos, como mandioca, milho e vários legumes para o que viria à frente. [...]" (²) 
O fato de que se pensasse em plantar alimentos que demorariam algum tempo até que estivessem prontos para a colheita demonstra que havia alguma perspectiva de que a guerra não seria rápida. E foi, mesmo, muito longa, muito mais até do que se supunha.

Falta de munições


"[...] A falta de pólvora e munições era grandíssima, e se o provedor da Real Fazenda, André de Almeida, não houvesse conseguido salvar alguns barris dela quando a vila se perdeu, já não haveria com que lutar. Chegou-se a tanta falta de balas de arcabuz e de mosquete, que o general precisou fazer com que se retirasse chumbo das redes dos pescadores. [...]" (³)
Havia, por esse tempo, muitos proprietários de engenho que pensavam que, se fosse possível produzir açúcar e lucrar com ele, talvez não importasse tanto se os senhores da terra seriam os portugueses ou os holandeses. Foi somente quando a Companhia das Índias Ocidentais decidiu fazer a cobrança e execução das dívidas que os produtores de açúcar haviam com ela contraído que a guerra tomou outro rumo, sem muita ajuda do Reino, ou apesar do pouco que ela significou.

Moradias de holandeses no Brasil (⁴)

(1) Referência a Matias de Albuquerque, irmão de Duarte de Albuquerque Coelho.
(2) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 
(4) Cf. DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 10 de abril de 2024

Como a notícia do fim da União Ibérica foi recebida na primeira capital do Brasil

No Século XVII, qualquer notícia que viesse de Portugal ao Brasil precisava fazer uma viagem marítima. De que outro modo seria?
Foi assim, portanto, que chegou ao vice-rei D. Jorge de Mascarenhas a informação de que não mais o monarca espanhol, e sim D. João IV, reinava em Portugal, segundo expressou Sebastião da Rocha Pita (¹):
"Governava neste tempo a Bahia com título de vice-rei de todo o Estado, [...] D. Jorge Mascarenhas, marquês de Montalvão [...]. Teve brevemente aviso da liberdade da pátria por uma pequena embarcação de Lisboa, cujo mestre saindo a terra e mandando-a fazer-se ao mar, se encaminhou ao palácio, e com segredo deu ao marquês vice-rei a nova da feliz aclamação, e lhe entregou a carta em que o senhor rei D. João IV lhe ordenava o fizesse aclamar no Brasil." (²) 
Ciente do que se passara no Reino, D. Jorge Mascarenhas reuniu as figuras de destaque entre autoridades eclesiásticas, civis e militares para que deliberassem se a ordem de aclamação seria ou não cumprida. Aclamar o novo rei português envolvia algum risco. E se, de algum modo, a Espanha recuperasse o controle? Como ficaria a carreira política, para não dizer a vida, das autoridades que haviam decidido pela aclamação? Segundo Rocha Pita, a reunião decidiu o caso a favor de D. João IV, que foi reconhecido como rei também no Brasil:
"[...] Feitas algumas breves disposições na infantaria, [D. Jorge Mascarenhas] saiu com os congregados e com o senado da Câmara aclamando o senhor D. João IV rei de Portugal, acompanhados do povo com repetidos vivas e gerais demonstrações de alegria, acabando o ato na catedral com ação de graças. [...]" (³) 
A Cidade da Bahia, ou Salvador, onde residia o vice-rei, era território português, mas, nesse tempo, grande parte do Nordeste brasileiro estava sob controle holandês. A luta para retomar para Portugal essa parte do Brasil ainda duraria vários anos - até 1654. 

(1) A primeira edição de sua História da América Portuguesa foi publicada em 1730. 
(2) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 144.
(3) Ibid. 


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segunda-feira, 1 de abril de 2024

A cadeia de São Paulo no Século XVII e o envio de um prisioneiro a Santos

A cadeia existente na vila de São Paulo no Século XVII era, ao que parece, um perfeito convite às fugas de presos, pelo que se vê em uma ata da Câmara de São Paulo relativa ao dia 1º de abril de 1628 (¹), ocasião em que o ouvidor se encontrava presente:
"[...] proveu mais que, porquanto era informado que a cadeia a cada passo se abria [e] não é boa por ser fraca e não ser de pedra edificada, que pusessem pelo meio divisas de pau fortíssimas, cravejadas e forradas com outra taipa, resguardando-lhe bem as grades com boas ombreiras de pedras e grades de ferro, fazendo o tal que não possam fugir os presos tão facilmente em razão do que achou e notou a falta que nesta vila há de justiça por os presos fugirem da cadeia [...]." (²)
É de se perguntar, em consideração ao que rotineiramente se passava na vila no Século XVII, se os camaristas de São Paulo e demais moradores tinham, de fato, muito interesse em tornar a cadeia mais segura. A resposta das autoridades locais é sintomática - se houvesse dinheiro, fariam as melhorias:
"[...] no que toca à cadeia e carcereiro e sino (³) farão todo o possível para se fazer, havendo dinheiro para isso [...], porquanto é tempo ver que não tem renda nenhuma e que, sem embargo de tudo, disse ele dito ouvidor geral que recorressem a sua majestade para os prover como convém [...]."
Que ideia maravilhosa!... Pediriam ajuda ao rei, que estava do outro lado do mar, e enquanto isso, a cadeia ficava na mesma.
Para concluir, meus leitores, veremos agora o que é que se fazia quando aparecia na vila algum delinquente a quem todos temiam. Não se julgava, é certo, que devesse ficar detido em uma cadeia tão precária, razão pela qual o sujeito devia ser remetido a Santos, cuja prisão era tida como mais confiável. Não tardou muito e houve um caso desses, registrado na ata de 30 de dezembro do mesmo ano de 1628: 
"[...] requereram os oficiais da Câmara aos juiz [...] que visto ter preso nesta cadeia a um homem por casos facinorosos, o qual corre risco estar nesta cadeia, por não ser capaz para semelhantes presos, por ser fraca e assim sua prisão correr risco e poder sair dela, ajuntando-se com alguns homiziados e fazer alguns delitos, pelo que lhe requeriam o mandasse à cadeia de Santos, por ser de pedra e cal, para aí estar mais seguro, [...] ao que o dito juiz respondeu a eles ditos oficiais lhe dessem vinte índios  que vão com eles à vila de Santos a levá-lo [...]." 
A ata pode até parecer cômica: quem, afinal, corria risco na prisão? O prisioneiro ou a população, do lado de fora? Mas o que fica claro, em meio ao palavrório do escrivão, é que não havia uma força policial regular disponível para acompanhar o prisioneiro pelo áspero Caminho do Mar até Santos, daí a requisição de vinte indígenas como escolta.

(1) Não, leitores, nada relacionado ao chamado "Dia da Mentira".
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão. 
(3) Entre outras utilidades, o sino que geralmente havia nas câmaras e cadeias coloniais, que quase sempre ficavam no mesmo prédio, servia para alertar a população em caso de fuga de algum preso ou para dar aviso quando havia algum incêndio na localidade, esperando-se que todos os moradores que pudessem, comparecessem para ajudar a apagar o fogo. Usava-se o sino, também, quando era necessário convocar uma reunião de todos os homens da vila, para que discutissem e votassem algum assunto de interesse geral. 


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segunda-feira, 11 de março de 2024

Dote de casamento em cabeças de gado

No passado, em muitos lugares, o pretendente a noivo pagava um dote de casamento ao pai da pretendida noiva. No Brasil Colonial, e mesmo no Império, era a noiva que devia ter um dote para poder se casar. Por conta disso, muitas moças que não tinham dote ficavam sem casamento, enquanto havia homens esperando que uma noiva com dote vantajoso aparecesse no caminho, para, como se dizia, "arrumarem a vida". 
Antes que leitores e leitoras comecem a lamentar as injustiças da sociedade (talvez por razões diferentes), temos aqui um caso interessante, ocorrido em São Paulo nos tempos coloniais, quando quase não havia moeda em circulação -  a família da noiva pagou o dote para o casamento em cabeças de gado. Está na Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, com o aborrecido estilo próprio das (longas) genealogias dos que se supunham nobres:
"João Pires (filho de Salvador Pires [...]) foi nobre cidadão de S. Paulo, e teve grande voto nas assembleias do governo político, como pessoa de muita autoridade, respeito e veneração. Foi abundante em cabedais com estabelecimento de uma grandiosa fazenda de terras de cultura [...], que lhe foi concedida de sesmaria em 1610 com o seu sertão para a serra de Juqueri. Teve grande cópia de gados vacuns, cavalares e de ovelhas, de sorte que, dotando a nove filhas [...], cada uma levou duzentas cabeças de gado vacum, ovelhas e cavalgaduras. [...]"
Portanto, todo o conjunto pago como dote pelo casamento das nove filhas resultou em mil e oitocentos animais. Nada mal para a época em que isto aconteceu, no Século XVII. Deve ter sido um espetáculo público ver a procissão conduzindo a bicharada para as terras do noivo, a cada novo casamento que se realizava.


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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Proibido usar máscaras

No Século XVII, o uso de máscaras era associado à prática de crimes


Já houve tempo em que era proibido usar máscaras no Brasil. Não, leitores, não eram máscaras sanitárias. Eram daquelas usadas no antigo entrudo (sucedido pelo carnaval), e cujo uso podia degenerar em criminalidade, de modo que as autoridades não favoreciam seu emprego, embora, mesmo com as restrições, tivessem de tolerá-las durante os dias de festas populares. Um documento citado por Vieira Fazenda em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro refere uma proclamação pública - bando, como então se dizia - com data de 1685, por ordem do governador Duarte Teixeira Chaves, proibindo as máscaras sob penas bastante severas:
"Toda a pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que se encontrar enmascarado [sic], incorrerá na pena de ir servir a Sua Majestade, que Deus guarde, na Nova Colônia do Sacramento (¹), do Rio da Prata, e sendo negro ou mulato será açoitado publicamente, e todo o oficial de guerra que encontrar os tais enmascarados [sic] os prenderá logo, sob pena de um mês de prisão para uma das fortalezas [...]." (²)
Ainda de conformidade com Vieira Fazenda, mesmo as mantilhas usadas por mulheres eram motivo de preocupação, a ponto de um bispo ter cogitado que se proibisse às damas as saídas à noite, "[...] porque alguns gaiatos se aproveitavam dessa capa para, disfarçados, cometerem tropelias e escândalos" (³)

(1) A Colônia do Sacramento, no atual Uruguai, foi verdadeiro cavalo de batalha dos tempos coloniais. Trocou de mãos várias vezes, e o governador deve ter decidido mandar os infratores para lá porque, além de ser, na época, considerada o limite sul do território português na América do Sul, era ainda lugar destituído de recursos à sobrevivência e de defesa muito difícil, para onde, como regra, somente iam aqueles que a isso eram obrigados. 
(2) FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 326.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Recife em 1630

Holandeses, tentados pelo açúcar do Brasil, chegaram a ocupar a Bahia em 1624, mas, depois de alguns meses, foram expulsos. Voltaram com mais força em 1630, desta vez em Pernambuco, onde, de escaramuça em escaramuça, foram ficando e, eventualmente, expandindo a área de controle. Sua expulsão definitiva - a chamada Capitulação do Campo - somente aconteceu em 26 de janeiro de 1654. 
Uma descrição feita por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (¹) dá uma ideia de como era Recife quando vieram os holandeses em 1630:
"Já quando os holandeses no ano de 1630 entraram em Pernambuco, era o Recife povoação, habitada comumente de alguns pescadores e gente marítima [sic], porque pelo desabrigado do porto de Olinda, e não haver para os navios ancoradouro muito capaz, se haviam passado para a povoação do Recife os armazéns para o recebimento dos açúcares e mais haveres da terra, e ali os vinham tomar os navios, ancorando no seu surgidouro e remanso do rio. [...]" (²) 
As questões geográficas e econômicas, portanto, foram decisivas para que, após a saída dos holandeses, Recife ganhasse importância cada vez maior. Pior para Olinda e para grande insatisfação dos senhores olindenses. Deste e de outros fatores acabaria resultando a chamada Guerra dos Mascates, entre os anos de 1710 e 1711. 

(1) 1695 - 1779. Nascido em Pernambuco, era franciscano.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil, Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, p. 401.


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quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ferramentas usadas por povos indígenas

Machado indígena (¹)

A surpresa com as ferramentas rudimentares usadas por indígenas é recorrente entre autores que estiveram no Brasil no início da colonização. O padre Yves D'Évreux, por exemplo, franciscano que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou:
Ralador indígena de madeira
com pedrinhas de granito (³)
"[...] estes selvagens [...] não tendo ferramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar árvores, fazer suas casas e canoas, plantar raízes, e por única recompensa de seus trabalhos só comem farinha e raízes passadas por um ralador feito de pedrinhas agudas, engastadas em uma tábua da largura de meio pé." (²)
Bem, se tinham machados de pedra e, para a cozinha, um ralador, já não estavam sem ferramentas. Também é fato que indígenas não se alimentavam somente de farinha de mandioca e raízes, porque iam à pesca e à caça, e eram hábeis no manejo de suas armas. Coletavam frutas, ainda, de modo que, mesmo com a escassez de instrumentos para trabalhar, conseguiam sobreviver no ambiente em que estavam inseridos. D'Évreux minimizou as ferramentas usadas pelos indígenas que conheceu no Maranhão; mas poderia, com mais justiça, ter-se maravilhado com aquilo que eram capazes de fazer com tão poucos instrumentos.

(1) Etnia Fuini-ô Tapuya. Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 43 e 44.
(3) Etnia walwa.  Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). 


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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Proibição da pesca com timbó em época de desova de peixes no Século XVII

Mesmo em áreas em que a pesca é permitida no Brasil, há certa época do ano em que essa permissão é suspensa, para garantir a reprodução dos peixes. Em consequência, não são de todo incomuns as notícias de apreensão de material de pesca usado na hora errada por alguns teimosos. É medida correta, não há dúvida, e não apenas por preocupações ecológicas: prudentemente, e no interesse dos próprios pescadores, assegura-se que, mais adiante no ano, os peixes continuem a existir. 
Mas voltemos a 1626, para saber como a Câmara da vila de São Paulo lidava com a mesma questão. A ata é de 23 de maio, e nela encontramos este trecho muito interessante:
"[...] se ajuntaram em câmara os oficiais dela [...] e estando todos juntos puseram em prática as coisas do bem comum e pelo procurador foi dito que requeria a eles ditos oficiais mandassem por um quartel que nenhuma pessoa use de timbó (¹) nem ponha tresmalho (²) em tempo que o peixe sai a desovar, o que visto pelos ditos oficiais foi mandado que se pusesse quartel do acima dito, com pena de mil réis e dos tresmalhos perdidos [...]." (³)
A proclamação pública era necessária porque, nesse tempo, não havia jornal impresso à disposição de moradores e camaristas; os leitores que sabem quanto paulistas do Século XVII eram persistentes em ignorar as leis em vigor não terão dificuldade em compreender que a imposição de multa era indispensável para dar força ao mandado, particularmente naquela época em que dinheiro amoedado era muito raro no Brasil. O fato de ainda viverem hoje os descendentes dos peixes do Século XVII é prova de que a medida foi, em algum grau, obedecida. 

(1) De origem vegetal, o timbó era usado para deixar os peixes lentos e facilitar a pesca.
(2) Espécie de rede tripla usada na pesca. 
(3) O trecho citado da Ata da Câmara de São Paulo foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Mercadorias para troca na falta de dinheiro amoedado em São Paulo

Era o Século XVII, ano de 1626. As correrias de paulistas pelo sertão, para captura de indígenas, ocorriam quase sem impedimentos, apesar das ordens em contrário de autoridades distantes. Afinal, a Justiça colonial quase sempre fazia vistas grossas porque se supunha que, em suas buscas por quem escravizar, um dia desses os paulistas acabariam topando com ouro ou prata, sonho dourado - sem trocadilho - do monarca português. Apesar disso, e talvez por causa disso, a existência de um número crescente de braços escravizados na lavoura fazia com que São Paulo fosse, nesse, tempo, povoação conhecida como área de fartura, capaz até de suprir a falta de víveres em outras regiões do Brasil.
Não obstante, faltava dinheiro, entenda-se, dinheiro amoedado, que servisse como equivalente para o comércio. Por consequência, a Câmara da vila de São Paulo tomou a iniciativa, em 19 de janeiro de 1626, de determinar quais mercadorias deveriam ser aceitas por mercadores, fossem eles habitantes do lugar ou vindos de outras localidades, com intenção de fazer comércio em seu território:
 "[...] visto não haver dinheiro na terra, os mercadores que a ela vêm, assim moradores como os que a ela vêm e forasteiros que trouxerem fazendas a esta vila para vender a não vendam senão a troco de fazendas da terra. [...]." (¹)
Zelosos pelos interesses dos moradores (e próprios), os camaristas de São Paulo tiveram o cuidado de determinar que mercadorias entrariam nas trocas, e qual seria o seu equivalente em dinheiro da época, resolvendo que "era bem que dessem [...] as carnes de porco a duas patacas a arroba nesta vila, e a farinha de trigo a duzentos réis o alqueire, digo a doze vinténs, e o trigo em grão a cento e sessenta réis, e o pano de algodão a oito vinténs a vara, o couro de vaca a oito vinténs e o arrátel de cera a meio tostão por lavrar e a lavrada a oitenta réis [...]." (²)  
Estes eram os artigos de que havia um excedente, e que poderiam entrar nas transações comerciais em espécie aprovadas pela Câmara. Compare-se, por exemplo, com o acordo feito pela Câmara com um oleiro décadas antes, em 1575, para que fizesse telhas para as casas da vila, acordo esse que determinava que, por não haver dinheiro amoedado, as telhas seriam pagas com carne bovina e suína, couros e cera, e será, desse modo, plenamente comprovado que as atividades econômicas não haviam, desde então, passado por grandes alterações. A vila crescera um pouco, é fato, mas não passara, ainda, por grandes novidades no dia a dia colonial.  

(1) O trecho citado da Ata da Câmara de São Paulo de 10 de janeiro de 1626 foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) Ibid. 


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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Indígenas não deviam trazer arcos quando vinham a São Paulo

Setenta anos se haviam passado desde a fundação, por missionários jesuítas, do pequenino Colégio de São Paulo. A vila de mesmo orago crescera nas imediações, e já era famosa pelas marmeladas, pelas plantações de trigo, pela criação de porcos e pela escravização de indígenas, capturados, sertão adentro, por levas de paulistas que faziam o "descimento do gentio", fosse para trabalho compulsório em suas próprias fazendas, fosse para venda em outras localidades. Para disfarçar o que, de fato, era escravidão, falava-se em "índios administrados", e "serviço dos forros", que, aliás, quase sempre só eram forros no nome. 
Uma ata da Câmara de São Paulo, datada de 27 de janeiro de 1624, mostra, contudo, que os colonizadores nem sempre estavam tão seguros com a presença dos cativos. Dizia ela:
"Aos vinte e sete dias do mês de janeiro do ano presente de mil e seiscentos e vinte e quatro [...] nesta vila de São Paulo [...] se juntaram em câmara os oficiais dela [...] e sendo juntos em câmara puseram em prática as coisas do bem comum da terra e requereu o procurador aos [...] oficiais da câmara [...] que os negros dos brancos e das aldeias não tragam arcos, pelo muito dano que fazem matando as criações dos moradores [...]." (¹)
Os "negros" a que o procurador se referiu eram ditos "dos brancos e das aldeias", subentendendo-se, portanto, a escravização. A menção às aldeias, provavelmente, era relativa àquelas em que indígenas viviam sob a tutela dos jesuítas ou sob as ordens de um oficial conhecido como "capitão dos índios". Mas "negros"? Seriam escravizados de origem africana?
Não, na época quase sempre o termo "negro" era aplicado a quem fosse escravizado, independentemente de sua origem étnica, e isto fica claro quando, na mesma ata, se vê, sob o registro do escrivão, o que é que decidiram os senhores camaristas de São Paulo: "[...] mandaram [...] que nenhum negro do gentio da terra não entrasse nesta vila com arco, para evitar o dito dano [...]." (²) 
Ora, sabe-se que os arcos eram armas que indígenas manejavam com notável habilidade, e talvez galinhas, porcos, cães e vacas fossem alvos fáceis, uma verdadeira tentação para exercício de pontaria. Contudo é lícito conjecturar que a razão para o interdito fosse outra: os colonizadores eram, ainda, pouco numerosos; muitos eram os indígenas, escravizados ou livres. Reunidos dentro da vila e munidos de arcos e de boa quantidade de flechas, poderiam causar muito dano, não só "matando as criações", como dizia a ata, mas contra os próprios moradores. Indígenas, armados e numerosos, seriam, pois, motivo de preocupação, ainda que, nesse tempo, muitos dos colonizadores já se houvessem aparentado com eles

(1) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão, para não fatigar o cérebro e a paciência dos leitores deste blog.
(2) Ibid.


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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Roupas usadas por missionários jesuítas no Maranhão no Século XVII

Por mais que navegadores do final do Século XV e mesmo do XVI descrevessem o Brasil como uma espécie de paraíso, "Éden restaurado", lugar de riquezas e beleza infinitas, a verdade é que a vida colonial estava longe de ser um mar de facilidades. Sim, havia gente abastada e que fazia vir do Reino tanto a roupa quanto a comida de que precisava, embora nada disso fosse garantia de conforto - pode-se imaginar facilmente o estado de deterioração do bacalhau seco e dos queijos que, depois de meses no mar, eram desembarcados e vendidos no Brasil. 
Em se tratando de vestuário, as sedas, cetins e veludos eram reservados às famílias da elite açucareira. Para a maior parte da população, cabia o vestir-se com roupas feitas de algodão grosseiro.  Nas missões jesuíticas do Maranhão, nem mesmo os padres escapavam dos rudes tecidos destinados aos mais pobres. Antônio Vieira, o grande pregador e missionário, em carta a um amigo, afirmou: "[...] Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau (¹); durmo pouco; trabalho de pela manhã até a noite [...]" (²).
Esse tecido "mais pardo que preto", de que se andava fazendo a roupeta dos padres da Companhia de Jesus era tingido de um modo curioso, que o padre André de Barros, escrevendo no Século XVIII, assim explicou, ao expor o modo como os missionários sob a liderança do padre Vieira tiveram de viver, quando empreendiam a catequese de indígenas, contra toda a oposição dos colonizadores: "[...] Por esta causa se reduziram os padres daquela missão a vestir pano de algodão tinto na lama (que é certo lodo, que se acha no fundo de alguns rios), a calçar sapatos de peles dos animais dos matos e a não beber vinho, e finalmente a viver tão pobres como os mesmos índios, poupando desta maneira para ter com que os granjear a eles para Cristo" (³). 
Vieira trabalhou alguns anos como missionário no Século XVII. No centênio precedente, jesuítas como Nóbrega e Anchieta haviam enfrentado dificuldades semelhantes, porém em outras áreas do Brasil, sendo obrigados a pôr em serviço toda a capacidade inventiva para a confecção de calçados e outros objetos de que precisavam. Contudo, a necessidade de procurar soluções caseiras não se restringia aos religiosos: portugueses em geral, bem como seus descendentes, logo descobriram que, se pretendiam sobreviver como colonizadores, tinham muito a aprender com os indígenas, que já viviam no Brasil muito antes deles. 
 
(1) Farinha de mandioca.
(2) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 514.
(3) Ibid., p. 571.


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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Procissão do Enterro em uma aldeia indígena no Século XVII

Como estratégia de catequese, missionários jesuítas que atuavam no Brasil Colonial procuravam, tão rápido quanto possível, edificar uma pequena igreja ou capela nas aldeias indígenas que aceitavam sua presença. A partir disso, a tarefa era atrair a atenção para os ritos católicos que celebravam - as crianças, curiosas, geralmente vinham primeiro, e depois delas, ou por causa delas, também os pais. 
As datas mais importantes do calendário litúrgico eram celebradas com tanta grandeza quanto a situação permitia, e relatos da época apontam para o fato de que homens indígenas viam nas práticas de autoflagelação da Semana Santa uma oportunidade para demonstrar valentia e coragem - bem diferente, portanto, daquela que devia ser a intenção dos padres. 
Na Sexta-feira Santa praticava-se, entre outras, a cerimônia conhecida como Procissão do Enterro, para recordar o sepultamento de Jesus. Foi assim, em 26 de março de 1660, em uma aldeia indígena na Serra de Ibiapaba, entre os atuais Estados do Ceará e do Piauí:
"[...] Ao pôr do sol houve mais que ver, e que chorar na procissão do Enterro. Ordenou-se a fúnebre representação com devota pompa. Iam nela todos os meninos e moços com coroas de espinhos na cabeça e cruzes às costas em duas fileiras; por fora destes ao mesmo compasso e ordem iam os índios grandes arrastando com submissão respeitosa os arcos e flechas; soando ao mesmo tempo, e aumentando a dor e o horror sagrado, as caixas destemperadas, tantas vezes excitativas à fereza, agora à fé e à humanidade; [...]" (*)
Os missionários viam na postura de seus catecúmenos uma evidência de aceitação das novas crenças. Uma questão, contudo, forçosamente se impõe: os rituais funerários indígenas eram muito diferentes daquele cuja representação tanto emocionava os padres. Estaria seu real significado sendo percebido? O choque cultural era óbvio, mas suas consequências talvez não fossem inteiramente compreendidas, ainda, nem por uma parte, nem por outra. 

(*) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 301.


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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Mensagens secretas dentro de queijos

Como foi tramada a Revolta de Beckman


Século XVII, ano de 1684: estava em curso a chamada Revolta de Beckman, no Maranhão. Valendo-se da ausência do governador que exercia o mando em nome do rei de Portugal, homens da elite econômica, liderados por Manuel Beckman, se rebelaram e obtiveram, durante algum tempo, o controle da capital, São Luís.
As causas dessa revolta, dentre outras, foram:
  • A insatisfação com o monopólio concedido pelo governo português a uma espécie de companhia de comércio, que teria exclusividade em vender o que vinha do Reino e, também com exclusividade, o direito de comprar aquilo que se produzisse no Maranhão, tendo em vista o mercado externo. Disso resultavam desvantagens para a população local, porque os valores oferecidos para compra eram considerados muito baixos, enquanto os preços cobrados por tudo o que se vendia eram demasiadamente elevados;
  • A elite econômica, quase toda agrária, pretendia a expulsão dos jesuítas, por sua insistência em lutar contra a escravização de indígenas. Senhores de engenho, por exemplo, julgavam que era impossível produzir açúcar se não dispusessem de mão de obra escrava.
Mas, voltando a falar do idealizador e líder da rebelião, somos informados por Bernardo Pereira de Berredo e Castro (¹) que, estando Manuel Beckman fora da capital, em uma fazenda de sua propriedade, tramava a insurreição com alguns de seus aliados, tendo o cuidado de enviar a eles mensagens secretas. Até aqui, nada surpreendente, se considerarmos os riscos envolvidos, dos quais os rebeldes estavam cientes. Curioso, mesmo, era o modo de fazer chegar a eles os ditos comunicados: "[...] assistido ainda dos mesmos confidentes, comunicou a outros a resolução que havia tomado, porém com tal cautela, que meteu os avisos em queijos de vacas, de que abundava a mesma fazenda; até que satisfeito das operações da sua indústria, passou à cidade de São Luís, para lhes dar mais alma com a sua presença." (²)
Sim, os revoltosos de fato tomaram o controle da cidade, promovendo um levante popular que parecia ter alguma probabilidade de êxito; também expulsaram os odiados jesuítas - mas não para sempre. Como se sabe, quando finalmente as autoridades lusitanas recobraram as rédeas do governo (³), Manuel Beckman pagou com a vida, e não sozinho, a audácia de atentar contra a ordem colonial. Não se imagine, porém, que o efêmero movimento por ele liderado tivesse qualquer viés de independência. Estavam em questão apenas problemas locais, suscitados, em grande parte, pelo modo como, economicamente, se deu a colonização.

(1) Berredo foi, mais tarde, governador do Maranhão e Pará. Com amplo acesso à documentação existente na época, escreveu os Anais Históricos do Estado do Maranhão
(2) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro XVIII. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 590.
(3) Não é incomum que o apoio das massas às causas rebeldes não seja duradouro, um fenômeno talvez explicável pelo temor às possíveis represálias.


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quinta-feira, 7 de julho de 2022

Tática de terra arrasada na luta pelo Nordeste açucareiro

Em uma guerra, destruir tudo o que pode ser útil ao inimigo é, quase sempre, uma atitude desesperada, tática extrema quando nada mais parece funcionar.
Foi no ano de 1635, após a Paraíba ter passado ao controle dos holandeses, a quem a resistência luso-brasileira tentava expulsar do Brasil, desde que haviam ocupado parte de Pernambuco em 1630. Percebendo que o desânimo tomava conta dos seus já pouco numerosos subordinados, o general Matias de Albuquerque decidiu que, se não fosse possível vencer, nada seria deixado à Companhia das Índias Ocidentais. Principalmente, não haveria pilhagem do cobiçado açúcar do Nordeste, razão maior da invasão a Pernambuco. Ao dar ordens a um de seus comandados, recomendou que "quando não fosse possível lutar, [...], que se queimassem todos os canaviais de açúcar e todo o pau-brasil, e se desfizessem todas as plantações, para que o inimigo de nada se aproveitasse [...]" (¹).
A desproporção entre as forças beligerantes era acentuada. Os reforços vindos da Europa para os holandeses eram muito superiores àqueles que a Coroa espanhola (²), com reduzido empenho, enviava ao Brasil. Não se podia esperar que senhores de engenho, lavradores de cana, indígenas e escravos sem qualquer treinamento militar formal, se comportassem como hábeis soldados. Assim, pouco a pouco, mesmo alguns que apoiavam a resistência começaram a abandonar a luta, julgando que, afinal, se fosse possível produzir açúcar e lucrar com isso, não importava muito se os senhores da terra seriam os portugueses ou os holandeses. Com oscilações de intensidade, a guerra ainda iria durar quase duas décadas.

(1) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ainda estava em vigor a chamada União Ibérica (1580 - 1640). 


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