quinta-feira, 6 de abril de 2023

Procissão do Enterro em uma aldeia indígena no Século XVII

Como estratégia de catequese, missionários jesuítas que atuavam no Brasil Colonial procuravam, tão rápido quanto possível, edificar uma pequena igreja ou capela nas aldeias indígenas que aceitavam sua presença. A partir disso, a tarefa era atrair a atenção para os ritos católicos que celebravam - as crianças, curiosas, geralmente vinham primeiro, e depois delas, ou por causa delas, também os pais. 
As datas mais importantes do calendário litúrgico eram celebradas com tanta grandeza quanto a situação permitia, e relatos da época apontam para o fato de que homens indígenas viam nas práticas de autoflagelação da Semana Santa uma oportunidade para demonstrar valentia e coragem - bem diferente, portanto, daquela que devia ser a intenção dos padres. 
Na Sexta-feira Santa praticava-se, entre outras, a cerimônia conhecida como Procissão do Enterro, para recordar o sepultamento de Jesus. Foi assim, em 26 de março de 1660, em uma aldeia indígena na Serra de Ibiapaba, entre os atuais Estados do Ceará e do Piauí:
"[...] Ao pôr do sol houve mais que ver, e que chorar na procissão do Enterro. Ordenou-se a fúnebre representação com devota pompa. Iam nela todos os meninos e moços com coroas de espinhos na cabeça e cruzes às costas em duas fileiras; por fora destes ao mesmo compasso e ordem iam os índios grandes arrastando com submissão respeitosa os arcos e flechas; soando ao mesmo tempo, e aumentando a dor e o horror sagrado, as caixas destemperadas, tantas vezes excitativas à fereza, agora à fé e à humanidade; [...]" (*)
Os missionários viam na postura de seus catecúmenos uma evidência de aceitação das novas crenças. Uma questão, contudo, forçosamente se impõe: os rituais funerários indígenas eram muito diferentes daquele cuja representação tanto emocionava os padres. Estaria seu real significado sendo percebido? O choque cultural era óbvio, mas suas consequências talvez não fossem inteiramente compreendidas, ainda, nem por uma parte, nem por outra. 

(*) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 301.


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3 comentários:

  1. Choca-me, e de que maneira, a visão de alguém que, supostamente, está a levar a verdade aos outros, quando do lado de lá também existe uma convicção, uma verdade...

    Fique bem, Marta :)

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    1. Nisso reside o conflito cultural. Neste caso, talvez pouco entendessem uns dos outros, mas encontravam uma maneira de conviver, ainda que com certa imposição de uma das partes envolvidas. Não preciso dizer qual, não é?

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