quinta-feira, 20 de abril de 2023

Versão de um espanhol para o descobrimento do Brasil

Vejam isto, leitores: um espanhol, Antonio de Herrera y Tordesillas, em obra publicada no começo do Século XVII (¹), falou sobre o descobrimento do Brasil:
"Descobriu primeiro esta terra [0 Brasil] Vicente Iañez Pinzón, por mandado dos Reis Católicos (²), e depois dele Diego de Lepe, no ano de 1500. Seis meses depois, por acaso topou com ela Peralvarez [sic] Cabral, indo com uma armada portuguesa à Índia, na qual, para fugir da Costa de Guiné, foi tão longe no mar que achou esta terra, e a chamou Santa Cruz, porque no dia dela a descobriu [...]." (³)
Quando Herrera escreveu a Descripción de las Indias Occidentales, estava em curso a chamada União Ibérica (1580 - 1640), e não é surpresa, portanto, que houvesse intenção de afirmar a prioridade no descobrimento do Brasil por espanhóis, não por lusitanos. Mas isto é assunto, afinal, de pouca importância: o Brasil, assim como o restante do Continente Americano, era habitado muito tempo antes que europeus pusessem os pés nessas terras. Os tamoios, por exemplo, um dos povos existentes no Brasil no Século XVI, tinham uma versão bem diferente para explicar quem teriam sido os primeiros povoadores da terra em que viviam. 
A diversão começa, porém, quando Herrera passa à descrição do Brasil. Admitindo que meus leitores tenham algum conhecimento do assunto, verão que é coisa verdadeiramente singular:
"É toda ela [a terra do Brasil] quente no inverno e no verão, muito chuvosa, cercada de arvoredos, insalubre e cheia de sevandijas (⁴) peçonhentas, fértil em pastagens para gado e não para trigo e nem para milho. Há nela grandes mostras de prata e ouro, mas os portugueses não são capazes para explorar minas [...]." (⁵)
Quem conhece o Brasil sabe muito bem que não é quente o tempo todo, e nem em todo o seu território, mesmo admitindo-se que Herrera considerasse o limite do Meridiano de Tordesilhas, que ninguém sabia exatamente onde passava. Sem gastar tempo com as tais sevandijas peçonhentas, deve-se dizer, ainda, que o Brasil tinha (e tem) boa produção de trigo e, melhor ainda, de milho. Fica a questão: de onde Herrera tirou, no começo do Século XVII, a ideia de que havia muita prata e ouro por aqui? Jazidas auríferas importantes somente foram encontradas em fins do Século XVII. E então, mesmo sob as deficiências no sistema adotado,  portugueses e seus descendentes foram capazes de extrair o mineral da terra, contando, é bom que se diga, com o conhecimento de extração aurífera que tinham os africanos escravizados.

(1) A primeira edição da Descripción de las Indias Occidentales é de 1601. 
(2) Fernando de Aragão e Isabel de Castela.
(3) HERRERA, Antonio de. Descripción de las Indias Occidentales. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(4) Herrera falava principalmente de insetos e aracnídeos, que era fama serem muito numerosos no Brasil. 
(5) HERRERA, Antonio de, Op. cit. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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2 comentários:

  1. Parece que, já na altura, havia a contra-informação, pois novas terras e possíveis riquezas estavam em causa. Neste caso percebe-se ao serviço de quem. :)
    Muito interessante este post, Marta.

    Fique bem :)

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    Respostas
    1. Certíssimo! Havia muito em jogo, todos sabemos.
      Tenha um ótimo restante de semana.

      Mudando de assunto, algo de que me lembrei agora: hoje, dia 25 de abril, é feriado em Portugal, não é? Data bonita, que serve pra lembrar ao mundo todo, e não apenas aos portugueses, que liberdade e democracia são conquistas trabalhosas e que, mais difícil ainda, é conservá-las. Espero que os que vivem deste lado do Atlântico também não se esqueçam disso...

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