domingo, 30 de setembro de 2012

Gente de má fama

"Os paulistas de hoje", escreveu o Padre Ayres de Casal no início do século XIX, "passam por uma boa gente; mas seus avoengos não o foram certamente." (¹) O que é que fazia o padre escritor ter deles opinião tão desfavorável?
A resposta vem com facilidade: era guiada pelo estigma de que paulistas eram a mesma coisa que bandeirantes, e estes, tidos como pouco melhores que demônios, principalmente por parte dos religiosos, que muito tempo depois ainda não esqueciam o desaforo de terem os jesuítas sido expulsos de São Paulo em 1640, quando o confronto entre padres e colonizadores, a respeito da escravização de índios, chegou ao auge.
Já o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire parecia ver as coisas de outro modo, com seu olhar de estrangeiro, (ao menos para esse propósito)  algo mais imparcial, ainda que contemporâneo de Ayres de Casal:
Monumento em Santana de Parnaíba que 
homenageia os 
bandeirantes que expandiram
os limites do território brasileiro (³)
"Sem nenhuma razão têm sido considerados como um vil ajuntamento de bandidos os primeiros habitantes da referida colônia, quando é certo que entre os companheiros de Martim Afonso contavam-se fidalgos de Portugal e da ilha da Madeira; todos, entretanto, deveriam, naturalmente, participar assim de vícios como das brilhantes qualidades dos homens de sua época; eram o que foram pelos meados do século XVI os outros portugueses. A uma fé ardente, mas pouco esclarecida, a uma generosidade levada à imprevidência, juntavam um espírito empreendedor e aventureiro, uma grande intrepidez, muito orgulho, o amor da glória, o desejo de adquirir riquezas para dispensá-las e brilhar, e sobretudo, uma rudeza de costumes contra a qual lutava, em vão, a inefável doçura do Cristianismo. Nenhum povo europeu era, na mesma época, isento dessa rudeza, e, se os paulistas a conservaram por tempo mais dilatado, foi devido à circunstância de se entreterem, continuadamente, com gigantescas incursões pelos sertões e com as constantes caçadas que organizavam contra os selvagens durante muitíssimos anos." (²)
Lembremo-nos, porém, que nem Ayres de Casal e nem Saint-Hilaire viveram no tempo dos bandeirantes. Suas opiniões eram fruto de analisar o que tinham ouvido ou lido a respeito. Talvez suas ideias fossem influenciadas pelos paulistas com que tinham alguma convivência, o que poderia ser matéria para outras considerações, além dos limites desta postagem.
Contrastes desconcertantes norteavam, no entanto, a vida desses paulistas-bandeirantes: iam ao sertão para apresar índios, levando como companheiros de "caçada" e mestres nas trilhas e nas manhas das selvas outros índios que já haviam escravizado; enfrentavam sem nenhum respeito os religiosos que tentavam, frequentemente em vão, defender os nativos que, nas reduções, eram catecúmenos, mas não raro levavam consigo, mato adentro, religiosos como capelães, e eram particularmente zelosos em fazer disposições quanto a serem sepultados no interior de igrejas, provendo ainda os recursos que assegurariam a contínua celebração de missas em favor de suas almas. Odiados como bandos de verdadeiras feras selvagens em forma humana, acabaram transformados em heróis que fizeram do território brasileiro o gigante de hoje, muito além da linha de Tordesilhas, independente de onde se considerasse que ela devia passar. Em suma, eram humanos, e quanto a serem vilões ou heróis, é uma questão que depende da perspectiva.
 
(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 222.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 140.
(3) A escultura em bronze é obra de Murilo Sá Toledo.


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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Móveis escolares antigos


Carteira escolar para dois alunos (¹)

Alguém aí estudou em uma instituição de ensino que ainda tinha móveis escolares como os que se veem na foto acima? Pesadões, de madeira e ferro, com pés que podiam ser pregados no chão, possivelmente para evitar que a criançada os arrastasse pela sala de aula, fazendo inevitável algazarra, a cada início ou fim de um dia de aulas. Ao centro de cada mesa, um lugar onde devia encaixar-se perfeitamente um tinteiro (apenas deveria, porque os tinteiros pareciam construídos para serem entornados sobre as lições); sob a mesa, um lugar onde se deixavam livros e cadernos que não estavam sendo usados. Havia móveis para uso de um só aluno, e outros que acomodavam dois escolares.
Anúncio de móveis escolares, datado do ano de 1916 (²)
Afinal, nada muito diferente, em termos funcionais, das modernas carteiras que podem ser vistas nas escolas bem equipadas.
Ah, mas os antigos móveis de madeira tinham um charme à parte. Eram tão resistentes que foram usados por sucessivas gerações de pequenos estudantes, e é aí que reside toda a graça: malgrado todas as proibições e ameaças (cumpridas ou não) dos mais severos castigos, quase todo mundo escrevia na madeira, talvez para espantar o tédio das lições monótonas. Quem é que poderia gostar da permanência em uma sala fechada, quando lá fora brilhava o sol, convidando para coisas mais próprias da infância que cópias, tabuadas ou ditados?
Lembremo-nos, esses móveis foram típicos de uma época em que novidades pedagógicas nem sempre eram bem-vindas, embora houvesse um colégio ou outro disposto a inovar. A maioria, porém, estava longe desse perfil.
Mas, como eu disse acima, a madeira era perfeita para quem queria escrever, fosse com uma pena de metal, a ponta seca de um compasso ou, mais recentemente, com uma esferográfica mesmo, e essa sutil distração acabou produzindo, nos velhos móveis, um registro quase mágico para meninos e meninas que se iniciavam nos estudos. Veem-se, nos móveis que sobreviveram, as garatujas de recém-alfabetizados, talvez com uma ponta de sabor de transgressão (lembrem-se, leitores, era proibido escrever nas carteiras!), a glória de perpetuar o próprio nome, quem sabe uma provocação dirigida a um colega, "colas" e mais "colas"... E quem vinha no ano seguinte, encontrando todo esse patrimônio à disposição, julgava ser seu dever aumentar a herança das futuras turmas, que viessem a usar os mesmos móveis, na mesma sala. Desse modo, camadas e camadas de escrevinhações foram sobrepostas, e quem hoje tentar "escavar" e classificar essas divertidas inscrições nos móveis sobreviventes terá, pela frente, tarefa de alguma dificuldade.
É quase desnecessário lembrar que os atuais móveis escolares, sendo mais anatômicos e até mais higiênicos, não permitem, por outro lado, em razão dos materiais de que são confeccionados e da menor durabilidade, que um tal patrimônio de letras e rabiscos venha a formar-se. Eis aí um lado negativo da modernização.
Bem, espero que leitores mais emotivos não cheguem ao ponto de derramar lágrimas de saudade de seus velhos bancos escolares. Fica, no entanto, o convite, para quem quiser fazer um comentário, contando memórias de suas aventuras estudantis.

(1) A carteira escolar da foto pertence ao acervo do Museu Histórico e Geográfico de Monte Sião - MG.
(2) A CIGARRA, 9 de novembro de 1916.


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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Uma visão da sociedade no Império, através de um anúncio de jornal

Um prosaico anúncio de jornal pode, se devidamente analisado, fornecer, a quem se interessa pela História, uma visão muito interessante dos costumes de uma época. Este, que aí está, ao lado, publicado no jornal Aurora Paulistana, na edição de 29 de novembro de 1852, é um ótimo exemplo disso.
Divulga, como se vê, o "Bazar Fluminense", estabelecimento comercial que se inaugurara há pouco na capital do Império, o Rio de Janeiro. Então, dirá talvez um leitor deste blog, porque se fazia publicar tal anúncio em um jornal de São Paulo?
Ora, nesses tempos pré-ferrovias, quase todas as mercadorias de importação, de maior qualidade, ainda entravam pelo porto do Rio de Janeiro (o de Santos viria a ter prioridade a partir da explosão nas exportações de café). Por isso, quem queria artigos finos, tinha de recorrer às lojas do Rio, de modo que estas tratavam de anunciar suas mercadorias também nas Províncias. Aliás, a ênfase da propaganda está justamente nisso: o "Bazar Fluminense" encarregar-se-ia de fazer cuidadosamente a remessa dos produtos encomendados: "A direção do Bazar Fluminense encarrega-se de mandar encaixotar e remeter a seus destinos quaisquer objetos que lhe forem encomendados e prontamente pagos..."
Cabe recordar que, naqueles dias, São Paulo estava longe de ser uma metrópole, a despeito de sua condição de capital da Província - nas décadas subsequentes, no entanto, a prosperidade gerada pelo café mudaria tudo.
E que é que vendia o "Bazar Fluminense"? Essa informação tem relevância, porque nos dá um panorama do que interessava aos consumidores da época. O próprio anúncio responde: "Este estabelecimento é o único de seu gênero nesta Corte, porque nele se reúnem muitos dos objetos que constituem o sortimento das lojas de fazendas (¹) e de armarinho (²), de louça e de ferragem, de ourives e relojoeiro, de roupa e de calçado, de mobília, de livros e papel, etc."
Um outro aspecto interessante que aparece no anúncio que analisamos é a referência à Guarda Nacional: "A Direção do Bazar encarrega-se igualmente de mandar aprontar pelos últimos preços tudo que pertence ao fardamento e uniformes dos Srs. Oficiais da Guarda Nacional".
Explica-se: Criada no Período Regencial, na intenção de estabelecer uma força leal ao Império que ajudasse a manter a ordem em meio às rebeliões que estouraram após a abdicação de Dom Pedro I, a Guarda Nacional veio a ter uma importância política considerável em alguns momentos, e era, entre a elite, uma questão de honra e zelo pela reputação pertencer a ela e, naturalmente, comparecer em fardamento impecável nas festas e bailes que faziam a diversão da alta sociedade durante os tempos imperiais. O aviso sobre a venda de fardamento era, por isso, relevante!
Finalmente, uma dolorosa recordação do maior drama social daqueles dias, a escravidão: "Todas as vendas serão acompanhadas de uma conta a mais circunstanciada, máxime quando forem feitas por intermédio de criados ou escravos..."
Vê-se, por aí, meus leitores, que a propriedade de seres humanos por outros humanos parecia, em 1852, absolutamente natural, pelo menos para a maioria das pessoas que vivia no Império do Brasil. Mas não reajamos com espanto. Há muita coisa absurda também hoje, e às vezes nem nos damos conta.

(1) Tecidos.
(2) Artigos para costura, bordado e outros trabalhos manuais feitos com agulhas.


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domingo, 23 de setembro de 2012

Uma torneira pública idosa, mas eficiente


Torneira pública fabricada pela Companhia Mecânica e Importadora
de São Paulo (Jacutinga - MG)

A Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo foi fundada, no ano de 1887, pelo empreendedor italiano, radicado no Brasil, Alessandro Vincenzo Siciliano. Fabricava um amplo espectro de ferragens e ferramentas, máquinas agrícolas (que começavam a ser produzidas no país), postes para iluminação pública, e muitos outros artigos, além de importar material ferroviário, o que, na época, era de grande significado, face à expansão da rede de ferrovias, particularmente em São Paulo.
Peças então produzidas por essa empresa podem bem fazer parte do acervo de museus - não seria nenhuma surpresa. Mas foi interessante ver uma torneira pública, produzida pela Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo, ainda em pleno uso (com alguma adaptação, me parece), na cidade de Jacutinga (MG), no Parque Primo Raphaelli. Não deixa de ser curioso em nosso tempo, em que queremos coisas novas a cada instante, ver essa torneira pública idosa, mas em boa forma, ainda jorrando água fresca, tão eficientemente como o fazia em sua "juventude". É também uma lembrança de como se iniciou, em muitos lugares, um sistema público de abastecimento de água potável para a população. As fotos que ilustram esta postagem demonstram esse fato.
Fica, aqui, uma observação: Não valeria a pena restaurá-la?

A torneira pública, ainda em funcionamento

Publicado em 1º de agosto de 1915 na revista A Cigarra, este anúncio da
Companhia Mecânica e Importadora
de São Paulo
apresenta uma lista de produtos que ela fornecia.

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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A cavalaria medieval, os exércitos de arqueiros e as opiniões de Dom Quixote

Como se sabe, um cavaleiro medieval, fundamentalmente de origem nobre, usava uma armadura bastante dispendiosa e pesada, cujo uso se aprendia através de longa prática que, iniciada ainda na infância, conduzia o futuro militar à perfeição no manejo das armas. Era pajem, depois escudeiro, finalmente um cavaleiro de verdade. Seu cavalo, igualmente treinado para o combate, era também protegido contra instrumentos perfurantes, que predominavam nos campos de batalha da época.
Tanto o custo de cavalo e armadura como o fato de ser necessário treinamento em tempo integral faziam com que os exércitos fossem, então, relativamente pequenos. Os deveres impostos pelas relações feudais se encarregavam, por outro lado, de manter o interesse dos soldados em sua árdua preparação: as guerras eram frequentes e o cavaleiro, encarnando o ideal de varonilidade, era respeitado.
Aos poucos, no entanto, esse padrão mudaria. Exércitos constituídos por camponeses arqueiros começaram a mostra-se valiosos contra a cavalaria, cujo deslocamento era complicado e que precisava, para o combate, estar frente a frente com o inimigo. Os arqueiros eram pouco dispendiosos, não precisavam de tanto treinamento militar quanto os cavaleiros e podiam atirar de longe, fazendo cair uma verdadeira chuva de setas sobre os inimigos, capaz de espalhar confusão entre os cavalos, principalmente se as condições topográficas fossem desfavoráveis. Finalmente, a introdução do uso de armas de fogo representou um golpe de morte sobre a cavalaria medieval. As antigas táticas, as armaduras, mesmo os ideais cavalheirescos foram sendo aposentados, tornando-se antes matéria para literatos de várias escolas do que prática quotidiana de guerra.
Houve quem lamentasse tal fato. Quem? Ninguém menos que Dom Quixote, o herói da Mancha retratado por Cervantes:
"Foram bons aqueles benditos séculos que careceram da espantosa fúria destes endemoninhados instrumentos da artilharia, cujo inventor, tenho para mim, está no inferno recebendo o prêmio de sua diabólica invenção, com a qual conseguiu que um braço infame e covarde tire a vida a um valoroso cavaleiro, e que, sem saber como ou de onde, na metade da coragem e brio que faz arder e anima peitos valentes, chega uma desmandada bala [...], e acaba num instante com os pensamentos e a vida de quem a merecia gozar por longos séculos."
Sorrimos diante da ingenuidade do anacrônico Cavaleiro da Mancha. Mas, deixando de lado a questão puramente militar, não vivemos rodeados dos que odeiam as novas tecnologias, apenas porque elas parecem matar um mundo aparentemente tão cômodo e estável, que lhes traz a sensação de conforto que tanto temem perder? Como negar, todavia, que têm lá suas razões?


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terça-feira, 18 de setembro de 2012

A guerra, a diplomacia e os exércitos na Antiguidade

"... a guerra é uma coisa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao rigorismo da estratégia, aos preceitos da tática, à segurança dos aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe dentro da frieza de uma fórmula matemática o arrebentamento de um schrapnell e subordina a parábolas invioláveis o curso violento das balas, permanecem - intactas - todas as paixões do homem primitivo."
                                                                                                           Euclides da Cunha, Os Sertões

A guerra, no passado, era um acontecimento muito mais frequente do que é hoje, ainda que, em geral, muito menos destrutiva. Qualquer desavença, fosse entre pequenos grupos tribais ou entre grandes impérios, era usualmente resolvida pela força. A diplomacia entrava no jogo quando, sabidamente, um monarca se via muito mais fraco que seu oponente (sem chances, diríamos), precisando negociar, portanto, ainda que ao preço de severa humilhação (os antigos eram muito bons nisso), ou então, o que era mais comum, quando não passava de espionagem disfarçada de boas intenções.
Tudo isso se explica, em parte, pelas enormes dificuldades de comunicação: era muito demorado enviar diplomatas (que iam a pé, ou nas costas de burros, cavalos ou camelos, até mesmo de elefantes), que deviam ser recebidos pelo adversário e, depois de entabuladas negociações, que muitas vezes envolviam a troca de reféns, era preciso informar ao governante que os enviara, que então provavelmente reuniria seus conselheiros, trocaria ideias, mandaria resposta, talvez tentando novas negociações... Era bem mais prático partir logo para as vias de fato.
Assim, o que costumava acontecer é que um monarca somente descobria que estava para ter seus domínios atacados quando as forças rivais já se encontravam muito perto ou mesmo dentro de seu território. A surpresa era, pois, parte da estratégia. Vê-se, de tal  forma, porque a maioria dos grandes autocratas do passado tinha preferência por dispor de um número enorme de homens que podiam ser imediatamente mobilizados em caso de guerra.
O assunto de quão numeroso devia ser um exército colocava-se de forma simples: pequenas tribos e outros agrupamentos menores precisavam pôr em armas tantas pessoas válidas quantas fosse possível - era uma questão de sobrevivência; grandes reinos e impérios costumavam ter exércitos enormes porque só assim se garantiriam contra eventuais revoltas e insurreições, internamente, bem como assegurariam seus domínios em áreas de fronteira, o que significava, quase sempre, empreender novas conquistas - era uma questão de hegemonia.
De qualquer modo, o serviço militar, ao lado de impostos e tributos, era uma imposição que poucos apreciavam. O camponês posto em armas deixava, é óbvio, seus campos por cultivar, o que significava comprometer o suprimento de comida que estaria disponível, e isso era um fator poderoso de instabilidade social. Eis porque, mesmo dispondo de grandes exércitos, alguns monarcas acabavam destronados. Não há dominação que resista a panelas vazias. Tropas de mercenários também não eram uma solução: no Império Romano, durante a fase de decadência, imperadores eram coroados pelo exército apenas para, em pouco tempo, serem assassinados. O motivo? O novo imperador se dispusera a pagar mais, pelo trono, que seu antecessor.
Recurso mais eficaz, ao menos em sociedades com maior participação política (foi o caso de muitas cidades gregas), era exaltar o guerreiro à categoria de herói, admirado pela força e valorizado como defensor da pátria. Não é sem causa que, na Atenas da Democracia, a condição de cidadão, com plenos direitos políticos, era privativa, entre vários outros fatores, daqueles que houvessem prestado o serviço militar todas as vezes que para isso houvessem sido convocados.


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domingo, 16 de setembro de 2012

Sobre a aclamação de Amador Bueno e a interpretação de documentos históricos

Introdução

Os leitores que frequentam as publicações relacionadas ao passado da humanidade sabem, é certo, que já houve tempo em que se supunha que escrever a História era muito semelhante a redigir biografias mais ou menos encomiásticas, quase sempre sob encomenda, quer de governos, quer mesmo dos próprios biografados ou seus parentes. A oscilação do pêndulo da moda levou, entretanto, a historiografia para extremo oposto: nada era fruto da ação individual, o que valia era a iniciativa das massas...
Ora, sejamos razoáveis, cabe muito bem neste caso a expressão "nem tanto ao mar, nem tanto à terra". Se é verdade que, na maioria das ocasiões, ninguém pode fazer quase nada grande e importante sozinho, também é fato inegável que há lideranças que habilidosamente são capazes de conduzir multidões, e isso por razões profundas, que têm muito a ver com nossas origens e formação enquanto seres humanos. Vale a regra tanto para bons quanto para maus propósitos, e nem é preciso ir longe no tempo para encontrar exemplos - o século XX está repleto deles.
Além disso, apreende-se facilmente, mediante simples observação, que a média dos seres humanos não é apenas constituída de defeitos, muito menos um repositório imaculado de virtudes. Se, vez por outra, alguém é descrito segundo um ou outro extremo, o defeito está mais em quem descreve do que na personagem em si.
 
Análise documental

Amador Bueno é lembrado, pelos estudantes brasileiros, como o homem que recusou a "aclamação" como rei, que seus contemporâneos intentaram, ao chegar a São Paulo a notícia do fim da chamada União Ibérica (1580 - 1640). Há, sobre o episódio, a notícia dada por Pedro Taques de Almeida Paes Leme (¹) que, no século XVIII, escreveu a Nobiliarchia Paulistana, na qual se lê:
"Foi Amador Bueno vassalo de tanta honra e fidelidade, que, achando-se na sua maior opulência de cabedais, respeito e estimação, com dois genros castelhanos (²), ambos irmãos e fidalgos ambos, que tinham poderoso séquito dos espanhóis, casados e estabelecidos em São Paulo, com aliança das famílias mais principais da capitania; não podendo estes castelhanos suportar a gloriosa e feliz aclamação do Senhor rei Dom João IV de Portugal, e segundo do nome entre os sereníssimos duques de Bragança, formaram um corpo tumultuoso, e a vozes aclamaram por seu rei a Amador Bueno, intentando vencer com este bárbaro e sacrílego atentado a constância do honrado vassalo Amador Bueno, para deste modo evitarem a obediência e o reconhecimento que se devia dar ao legítimo rei e natural senhor, ficando São Paulo com a voz de Castela [...]. Tinha o corpo da rebelião adquirido forças nos autores dela, os castelhanos, que por si e suas famílias avultavam em grande número. [...] Porém Amador Bueno, sem temer o perigo nem deixar prender-se da indiscreta lisonja, com que lhe ofereciam o título de rei para o governo dos povos da capitania de São Paulo, sua pátria, soube desprezar, e ao mesmo tempo repreender a insolente aclamação, desembainhando a espada e gritando a vozes: Real, real, por D. João IV, rei de Portugal.
Salvou a vida do perigo em que se viu pelo corpo desta horrorosa sedição, recolhendo-se ao sagrado do mosteiro de São Bento, acompanhado dos leais portugueses europeus e paulistas, até ficar em sossego o inquieto ânimo dos castelhanos que tinham fomentado o tumulto."
Já se vê, de início, que a finalidade do trecho acima citado é exaltar a figura de Amador Bueno; expressões como "vassalo de tanta honra e fidelidade", "opulência de cabedais, respeito e estimação" ou "sem temer o perigo nem deixar prender-se da indiscreta lisonja" dão conta disso. Nesse retrato do herói, tido como modelo de virtudes cívicas, mais se diz pelo que não está escrito (mas subentende-se), do que pelo que se explicita.
Pois bem, é fato que São Paulo, em meados do século XVII, tinha, entre seus habitantes, um número considerável de espanhóis e/ou seus descendentes, que ficaram algo insatisfeitos quando informados da restauração da monarquia portuguesa; é também verdade que as péssimas comunicações, na época, faziam pairar dúvidas quanto à veracidade de fatos ocorridos a enormes distâncias; não se discute que a então pequena vila vivia sofrendo agitações e revoltas, algumas por motivos até bem fúteis; é, além do mais, muito claro que, face a tais incertezas, era sábio manter uma prudente neutralidade, até que os rumos dos acontecimentos não permitissem equívocos.
Portanto, se Amador Bueno manifestou, por um lado, lealdade à Coroa Portuguesa, por outro livrou-se de grave encrenca, coisa inevitável caso houvesse aceitado a tal "aclamação". Pedro Taques diz que correu ele perigo por não aceitá-la, por isso refugiou-se no mosteiro de São Bento, mas é certo que muito maior perigo teria corrido sua preciosa cabeça se tivesse ousado meter-se a rei, ainda que em caráter temporário, até que as coisas ficassem mais claras. E há, ainda, a questão de que, mesmo estando a cidade em rebuliço, é pouco provável que sofresse, seriamente, ameaça à vida, em uma revoltazinha liderada por seus próprios genros (²), visto que, na época, era usual um severo respeito para com pais e sogros, como mais velhos e, no patriarcalismo, como detentores de autoridade, formal ou informal. Atentar contra o sogro era considerado parricídio. Percebe-se, assim, que é bastante provável que tenha se refugiado entre o beneditinos para evitar a coroação, não para escapar à fúria dos rebeldes.

Conclusão

Quem lê um documento histórico precisa estar sempre de olhos muito abertos para o fato de que o escritor original tinha seus motivos para escrever do modo pelo qual o fez, motivos esses que podiam bem significar uma visão muito particular dos acontecimentos, que cabe a quem interpreta, decifrar.

(1) Nascido em 1714. Há alguma divergência quanto à data e circunstâncias do falecimento.
(2) Os genros de Amador Bueno citados eram Dom João Matheus Rendon e Dom Francisco Matheus Rendon de Quevedo, casados, respectivamente, com Dona Maria Bueno de Ribeira e Dona Ana de Ribeira, filhas nascidas do casamento de Amador Bueno com Dona Bernarda Luiz.

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Pães de açúcar

No processo de purificação empregado nos engenhos coloniais, o açúcar era colocado em formas de barro, assim descritas por Antonil:
"São as formas do açúcar uns vasos de barro queimado na fornalha das telhas, e têm alguma semelhança com os sinos, altas três palmos e meio, e proporcionalmente largas, com maior circunferência na boca e mais apertadas no fim, aonde são furadas, para se lavar e purgar o açúcar por este buraco. Vendiam-se por quatro vinténs, salvo se a falta delas e o descuido de as procurar a seu tempo lhes acrescentasse o valor.
O serem de ruim barro, e mal queimadas, é defeito notável, como também o serem pequenas. As boas são capazes de dar pães de três arrobas e meia." (¹)
Como se sabe, no século XVII holandeses fizeram tentativas de estabelecer-se no Nordeste brasileiro, que era, então, a mais rica região produtora de açúcar. Fracassaram, é verdade, mas, para fazer-lhes justiça, é necessário dizer que demonstraram um interesse artístico e científico pelo Brasil como, até então, os colonizadores portugueses não haviam tido. Com Nassau vieram estudiosos que procuraram observar e compreender a natureza tropical, retratando-a em descrições e imagens, que foram, em alguns casos, publicadas em livros. Uma dessas obras que chegaram a ser editadas foi Historia Naturalis Brasiliae, de Willen Pies (também chamado Piso) e Georg Markgraf. Ora, neste livro há a imagem de um engenho, na qual retrata-se justamente o trabalho de colocação do açúcar nas tais formas de barro, para que fosse purificado (ou purgado, como então se dizia):

Colocação do açúcar em formas de barro, conforme se fazia nos engenhos coloniais (²)
É interessante observar que o europeu retratado a supervisionar a tarefa não está vestido como um lusitano, mas sim como um holandês!
Uma vez purificado, o açúcar era retirado das formas, apresentando então o aspecto de grandes pães, por isso chamados "pães de açúcar".
Quantos desses pães de açúcar um engenho chegava a produzir semanalmente? É, mais uma vez, Antonil quem responde:
"Faz um engenho real [...], se a cana render bem, cada semana solteira (³), perto e passante de duzentos pães de açúcar, mas se não render, apenas dá cento e vinte." (⁴)

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 75.
(2) PIES(PISO), Willen et MARKGRAF, Georg. Historia Naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648.
(3) Dizia-se "semana solteira" aquela que não tivesse dias santos (feriados).
(4) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Op. cit. p. 76.


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terça-feira, 11 de setembro de 2012

Antônio Conselheiro não foi o único...

Na postagem anterior tratei de Antônio Conselheiro, o místico sertanejo que liderou o movimento de Canudos, em fins do século XIX. Pois bem, o Brasil do século XIX teve várias dessas personagens, algo místicas, algo alucinadas, não necessariamente perigosas, no entanto, tampouco liderando multidões de adeptos. O curioso, como também mencionei na última postagem, era o papel que a religiosidade desempenhava nas alucinações de alguns - extensão, por suposto, de uma sociedade em que a religião tinha uma função muito mais destacada e enfática do que atualmente. Veremos, a seguir, dois exemplos.
O primeiro deles foi relatado por Saint-Hilaire, durante sua viagem pelo Rio Grande do Sul e Uruguai, algum tempo antes da Independência do Brasil. Tratava-se de um francês radicado no Brasil, excelente pessoa, dedicado a um nobre trabalho social, mas que alegava ter visões com ninguém menos que a Virgem Maria:
"O segundo francês que fui ver é um homem culto, mas muito singular. Há muito tempo deixou seu país, fala perfeitamente o português e compõe até versos nessa língua. [...] M.T. demonstra bom senso, instrução, alegria, mas acredita ter visões; imagina que a Virgem lhe fala e faz milagres em seu favor. Essa mania, contudo, só o leva a praticar atos virtuosos. Ele se julga obrigado a ensinar a mocidade e frequentemente tem ido a localidades muito distantes lecionar, para obedecer, disse-me ele, às ordens da Virgem, que atendera às preces das boas mães de família em favor de seus filhos.
É ainda por ordem da Virgem que ele reside em São Francisco de Paula, instruindo as crianças sem exigir retribuição alguma, não aceitando nem sequer o indispensável para satisfazer as necessidades mais urgentes da vida. Fiquei sensibilizado pelo ar de persuasão e simplicidade com que me falou das revelações de que é honrado pela Virgem e não o fiquei menos pelo carinho que ele demonstra por seus alunos e a doçura com que lhes fala. "Tenho a missão", disse-me ele, "de lhes ensinar o Evangelho; falo-lhes do Menino Jesus, represento-O belo e bondoso, tal como deve ser, e lhes proponho tomarem-NO por modelo."" (¹)
E o naturalista francês ainda conclui:
"M. T. louva muito a docilidade e a boa vontade de seus discípulos; mas queixa-se de que os pais destruam sua obra. Clama contra a pouca religião dos padres, contra a falta geral de instrução, cobiça e a má-fé dos habitantes desta capitania." (²)
Posso bem imaginar que alguns de meus leitores estejam lamentando que maníacos desse tipo não apareçam com mais frequência...
O segundo caso é, sem dúvida, mais dramático e destrutivo. O relato, porém, é breve:
"Na Vila do Rosário (Sergipe) o padre José Rodrigues de Freitas suicidou-se com uma navalha, decepando a garganta. Principiou a sofrer de monomania religiosa, ora considerando-se Pontífice, ora o Espírito Santo, e resolveu suicidar-se, esperando ressuscitar no dia seguinte." (³)
O fato ocorreu em 5 de março de 1867, e não se tem notícia de que tenha, desde então, ressuscitado. Esperava outra conclusão, leitor?
 
(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 115.
(2) Ibid.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães & Cia, p. 171.


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domingo, 9 de setembro de 2012

Reflexões sobre a figura de Antônio Conselheiro, o místico de Canudos

Antônio Conselheiro, nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, o líder do movimento de Canudos, é dessas figuras que têm cativado o interesse de uma multidão de especialistas, das mais diversas áreas do conhecimento. Como é que um sujeito simples, sem, aparentemente, nada de especial, pode ter-se tornado o líder de sertanejos desesperançados, diante da miséria e da seca? - eis um motivo para debate, sem que, talvez, nunca se chegue a uma conclusão que abarque toda a problemática que se impõe.
Dele, escreveu Euclides da Cunha em Os Sertões:
"Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. [...] Mas, posto em função do meio, assombra. [...] Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício."
São muitas as questões que poderiam ser levantadas: Antônio Vicente Mendes Maciel seria Antônio Conselheiro não fora a miséria da população do semiárido, brutalmente agravada pela seca, pela ignorância, pela superstição de natureza religiosa? Seria ele Antônio Conselheiro ainda em nossos dias?
Enquanto o leitor faz suas próprias reflexões, considere ainda que, em fins do Império, já se sabendo que andava a fazer peregrinações sertão afora, solicitou-se, para ele, uma vaga para internação no hospício de alienados no Rio de Janeiro - é o próprio Euclides da Cunha quem o afirma. Entretanto a solicitação foi negada, sob o argumento de que não havia vaga disponível. Ora, o que teria ocorrido se, por hipótese, tivessem capturado o homem, de modo que acabasse recluso em um manicômio? Podemos apenas conjecturar que, possivelmente, Canudos não teria ocorrido, que nunca mais se ouviria falar de Antônio Conselheiro, que talvez nem ficássemos sabendo de sua existência. A certeza, no entanto, é de que as condições miseráveis em que viviam os camponeses nas regiões flageladas pela seca em fins do século XIX, essas, sim, seriam rigorosamente as mesmas.
Fato interessante é que, em tempos passados, a religiosidade estava quase sempre presente em casos de comportamentos, digamos, algo anômalos. Hoje, ao menos nesse aspecto, as coisas seriam diferentes, face à mudança de valores na sociedade.


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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

"Independência ou morte!" em um vaso de porcelana

Não, senhores leitores, não trata esta postagem da célebre obra de Pedro Américo. Tampouco discutirei agora se o chamado "Grito do Ipiranga" ocorreu, de fato, e em que circunstâncias. O assunto é outro: esse curiosíssimo vaso de porcelana, que pode ser visto no Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira (SP):






Fabricado, segundo informação do Museu, pela Cerâmica São José, esta peça tem o objetivo bem evidente de homenagear a Independência do Brasil, em sua versão oficial, centrada no então jovem príncipe D. Pedro, herdeiro do trono português. Inspira-se, por suposto, no óleo de Pedro de Américo, mas não deixa de ter lá sua originalidade, ao colocar a cena em um objeto destinado à decoração, não é?


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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Sete de setembro de 1922 - As comemorações do centenário da Independência não eram para todos...

Festejos no Monumento do Ipiranga em 7 de setembro de 1922 (*)

Comemorações de datas nacionais são, usualmente, mais ou menos semelhantes em muitos lugares: desfiles militares, acompanhados de bandas de música, bandeiras, talvez a inauguração de um monumento, sempre muita gente pelas ruas e praças para assistir a tudo. Em São Paulo, no ano de 1922, centenário da Independência do Brasil, foi mais ou menos isso o que ocorreu, pelo que se vê nas páginas da edição especial publicada pela revista A Cigarra (Ano X, nº 193, 1º de outubro de 1922). Houve desfile de tropas do Exército e da Força Pública na Avenida Paulista, missa campal (a Catedral da Sé estava em construção), cerimônia no Monumento do Ipiranga.

Desfile de tropas do Exército e da Força Pública de São Paulo na Avenida Paulista
em 7 de setembro de 1922 (*)
Embora a capital do Brasil fosse, na época, o Rio de Janeiro, as comemorações do centenário tiveram em São Paulo um grande destaque porque foi nela que, oficialmente, a Independência foi proclamada pelo príncipe D. Pedro.

Público presente às comemorações no Monumento do Ipiranga em
7 de setembro de 1922 (*)
Presume-se que, com tantos preparativos, muita gente tenha aguardado os festejos com grande expectativa, principalmente as crianças. Entretanto, na mesma edição já citada de A Cigarra apareceu este cartoon, que é, no mínimo, bastante revelador sobre o que se considerava, naquele tempo, uma família "comum", sobre quem tomava as decisões, sobre o que se considerava, "independência" pessoal, e quem, no fim das contas, podia tê-la ou não. Ou seja, é possível que esse cartoon estivesse a revelar mais sobre o Brasil "de verdade" do que as pomposas cerimônias oficiais planejadas para a data. Veja por si mesmo, leitor, e tire suas conclusões.


(*) A CIGARRA, Ano X, nº 193, 1º de outubro de 1922.


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domingo, 2 de setembro de 2012

A visão personalista da História nas comemorações do centenário da Independência do Brasil

As comemorações relativas ao centenário da Independência do Brasil, no ano de 1922, tiveram, em muitos sentidos, um aspecto que poderia ser chamado de personalista, ou seja, centrado da figura de determinadas personagens que eram apontadas como vitais no processo de independência.
Na verdade, não se poderia esperar coisa muito diferente disso: os líderes políticos, então no poder, faziam uso de figuras do passado, associando sua própria imagem a elas, para, de algum modo, reforçar a legitimidade de seus atos, em um momento no qual as contestações proliferavam, país afora, face ao óbvio desgaste tanto de políticos quanto de instituições.
Na postagem anterior, por exemplo, está uma moeda, cunhada na época, em que a figura do presidente da República, Epitácio Pessoa, aparece ao lado da imagem do primeiro imperador e proclamador oficial da Independência, D. Pedro I (essa fórmula deve ter dado algum resultado, pois acabaria repetida outras vezes, em outras situações). Vejam, senhores leitores, não se trata aqui de descaracterizar ou negar a atuação individual de quem quer que seja - o que está em questão é o uso da imagem desta ou daquela personagem, dita histórica.
Várias publicações, tanto jornais quanto revistas, dedicaram muitas páginas e, em alguns casos, edições inteiras à data; a revista paulistana A Cigarra, por exemplo, trouxe, em três páginas, primeiro os "Grandes Vultos da Independência" (¹), depois os chefes de Estado, divididos entre os do Império e os da República, como se pode ver abaixo:




Iniciando a galeria dos chefes de Estado em 1808, a revista incluiu a imagem do rei de Portugal D. João VI (que, em 1808, era apenas príncipe-regente, pois ainda vivia a rainha D. Maria I); não se busca a exatidão cronológica, apenas alguma tentativa de hierarquia em termos de importância para o Brasil, já que os imperadores vêm primeiro, e então D. João VI e os regentes do período 1831-1840. Já entre os do período republicano, o lugar central é ocupado pelo proclamador da República, Marechal Deodoro da Fonseca.
O detalhe é que, a despeito da intenção laudatória, o resultado acabou saindo um tanto divertido, talvez até cômico...

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Um outro aspecto é que a comemoração do centenário foi útil, também, a quem soube explorá-la comercialmente (isso também não é novidade e não constitui, por si, nenhum pecado, dentro dos limites da legislação, naturalmente). Veja-se, como exemplo, o anúncio abaixo, que apareceu também em A Cigarra, edição de 15 de setembro de 1922 (²):


Ou este outro, que apareceu no jornal Commercio de Santos (³), na data mesma do centenário, 7 de setembro de 1922:


(1) A CIGARRA, 1º de outubro de 1922, Ano X, nº 193.
(2) A CIGARRA, 15 de setembro de 1922, Ano X, nº 192.
(3) COMMERCIO DE SANTOS, quinta-feira, 7 de setembro de 1922.


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