terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Leis do Império contra bisbilhoteiros que abriam correspondência alheia

"A [...] carta é a mais poderosa alavanca do progresso: nem o jornal lhe chega. Quem se propusesse a estudar sua fisiologia, a sistemar as espécies de que são principais a carta de empenho, a circular dos candidatos, a de crédito, a de namoro, de felicitação, de cumprimentos, a reservada, reservadíssima e confidencial, escreveria uma bela obra, um livro para isso, dos mais justamente apreciados na atualidade."
José de Alencar, Guerra dos Mascates

Escrever cartas, hoje um hobby com poucos adeptos, já foi um modo indispensável de comunicação e, para muitos, parte da atividade profissional. Bisbilhoteiros, porém, são praga universal e quase tão antiga quanto a própria humanidade. Havia, portanto, quem se sentisse tentado a abrir correspondência alheia. Indiscrição, apenas? Não, nos dias do Império, que são alvo hoje de nosso estudo, era crime devidamente previsto no Código Criminal do Império do Brasil.
Vejamos: funcionários dos Correios, em meio ao turbilhão de cartas que lhes passavam pelas mãos, deviam ter sempre em mente que "subtrair ou abrir correspondência alheia, já entregue para envio", podia resultar até em perda do emprego, prisão e multa (¹).  Já aos intrometidos em geral, não sendo funcionários públicos, que abrissem correspondência de quem quer que fosse, dizia o Código Criminal do Império, no Art. 215, que era crime "tirar maliciosamente do correio cartas que lhe não pertencem, sem autorização da pessoa a quem vierem dirigidas", para o qual a punição podia chegar a três meses de prisão, além de multa. Pior ainda seria se, além de abrir correspondência, o infrator divulgasse seu conteúdo para outras pessoas: a penalidade, neste caso, era dobrada. Não tenho certeza de que tais punições fossem fator de dissuasão de eficácia absoluta.


Propaganda de envelopes para correspondência, segunda década do Século XX (²)

Aos que enviavam correspondência era prudente, portanto, que os envelopes fossem fechados com cuidado, para, ao menos, dificultar a vida dos demasiadamente curiosos. Mas, tendo em consideração que as colas em uso, como era o caso da goma-arábica, não eram tão eficientes quanto desejado, o problema talvez persistisse. Um bom número de anos mais tarde - era 1929, o Império já estava distante e a República Velha, de tão velha, chegava ao fim - a revista paulistana A Cigarra trouxe esta nota: "Um envelope colado com clara de ovo não pode ser aberto nem mesmo expondo-se ao vapor de água, porque o calor aumenta a aderência daquela substância" (³). Funciona? Não sei, meus leitores, não fiz a experiência, nem escrevo cartas há muito tempo. Os bisbilhoteiros de correspondência alheia, em nossos dias, atendem por outro nome, e usam métodos bem mais complexos que a simples abertura de envelopes.

(1) Cf. Código Criminal do Império do Brasil, Art. 129, § 9.
(2) CORREIO DA SEMANA, Ano V, nº 204, 23 de maio de 1914. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) A CIGARRA, Ano XV, nº 342, 1ª quinzena de fevereiro de 1929.


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2 comentários:

  1. Texto muito interessante, sem dúvida, qual implícita tentação a um mergulho no tempo para melhor percepção da problemática.
    Mergulhei, confesso, e por lá permaneci um tempo. A realidade era tão diferente!

    Fique bem, Marta! :)

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    Respostas
    1. Os tempos eram outros, com as possibilidades técnicas correspondentes. A natureza humana... Bem, essa sim, era exatamente a mesma.

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