terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Uma voz contra o uso da palmatória nas escolas do Império do Brasil

Embora não fizesse referência explícita à palmatória, o Código Criminal do Império do Brasil admitia e tolerava a aplicação de "castigo moderado" (¹) por pais e professores. Sucede, porém, que o emprego da palmatória era tão comum nas escolas primárias que poucos imaginariam um estabelecimento de ensino que não contasse com pelo menos uma, para terror da criançada (²). 
Já no Código de Instrução Pública da Província de São Paulo de 1857, o emprego da palmatória para castigar alunos era não só admitido, como prescrito, como parte do sistema disciplinar que deveria reger as escolas públicas primárias em toda a Província: 
"Art. 188. Os alunos que infringirem qualquer dos dois anteriores artigos (³), ou qualquer preceito do professor, ou não derem boa conta da lição por negligentes, serão punidos com as seguintes penas: 
§ 1º - Repreensão. 
§ 2º - Tarefa dobrada, ou fora das horas regulares, na escola ou fora dela. 
§ 3º - Castigos que excitem o vexame (⁴). 
§ 4º - Participação ao pai ou tutor para imposição de maior pena.
Art. 189. Os alunos que dentro ou fora da escola faltarem ao respeito aos mestres, ou se insultarem, ou brigarem uns com os outros, ou pronunciarem palavras desonestas, ou praticarem atos da mesma natureza, serão punidos com as seguintes penas, à discrição dos professores: 
§ 1º - Repreensão. 
§ 2º - Comunicação aos pais para maior castigo. 
§ 3º - Emprego moderado da palmatória. 
§ 4º - Expulsão da escola." 
No entanto, recomendava-se cautela no uso da palmatória: 
"Art. 191. A pena do Art. 189 § 3º somente será imposta muito raras vezes, e quando as anteriores se tiverem mostrado ineficazes para um aluno [...]." 
Concluída a instrução primária, aqueles que prosseguissem nos estudos somente seriam punidos com a palmatória se o professor tivesse, para isso, autorização explícita dos pais: 
"Art. 244. Nas escolas médias não terá lugar a pena do Art. 189 § 3º, salvo havendo recomendação escrita dos pais dos alunos." 
Quem, todavia, iria crer na moderação do uso da palmatória, sabendo que, sem ela, dificilmente se ensinava alguma coisa na maioria das escolas do Brasil? 
Apesar disso, já nesse tempo havia vozes que discordavam do emprego de castigos físicos na educação escolar. Uma dessas falas contrárias vinha de Abílio César Borges, barão de Macaúbas. "[...] entre nós tão pouco se lê", afirmou ele, "graças ao pouco gosto que se toma pela leitura aprendida a contragosto, e a poder de dores e humilhações." (⁵) 
Ousando remar contra a corrente, assim se expressou, em um discurso proferido no ano de 1858: 
"Qual será em verdade o estudante que tome gosto pela instrução, se, para alcançá-la, é preciso atravessar um longo suplício de palmatoadas e castigos de todo gênero, além de ter diante de si eternamente um mestre sempre carrancudo, que mais mereceria o nome de inimigo ou carrasco?" (⁶) 
Disse, também, desta vez no ano de 1867: 
"Mas sei [...] que não obstante tudo quanto sobre a matéria tenho escrito [...], continua a férula a ter estrênuos advogados, chegando alguns educadores a declararem-na (ainda hoje!) indispensável para os progressos literários e científicos da mocidade, e fundamento principal da disciplina e da moral. 
[...]. 
Como é que em um país livre como este nosso, em que tanto se fala de liberdade, se continua a educar a mocidade por método tão despótico e humilhante, e por conseguinte tão antiliberal?" (⁷) 
Ao barão de Macaúbas, com todas as suas boas intenções, e mesmo com o sucesso obtido no Gymnasio Bahiano, talvez se devesse responder que incorria em erro ao supor o Brasil um país livre. Talvez o fosse, sim, para alguns, mas que dizer da multidão de escravos, submetida continuamente aos mais aviltantes castigos? A violência, assim, era parte do quotidiano, e nela se incluía a educação ministrada aos pequenos, na suposição de que a obediência não viria senão pela força. E, como velhos hábitos não saem de cena facilmente ou por decreto, com a ressalva de exceções, a palmatória, permitida formalmente ou não, continuou a ter presença garantida nas escolas, mesmo depois de inaugurado o Século XX. 

(1) Artigo 14, § 6. 
(2) Os leitores que tiverem a curiosidade de saber como exatamente era uma palmatória podem ver a postagem "Ela, a palmatória - instrumento para torturar jovens estudantes", em que há uma fotografia elucidativa. Pelo estado do objeto, deve ter sido bastante utilizado. 
(3) No Art. 186 estipulava-se que somente podiam falar os alunos interrogados pelo professor; no Art. 187, a proibição era de que mais de um aluno saísse da sala de aula ou escola ao mesmo tempo. 
(4) Incluir-se-iam aqui as famosas orelhas de burro? 
(5) BORGES, Abílio César. Vinte Anos de Propaganda Contra o Emprego da Palmatória e Outros Meios Aviltantes no Ensino da Mocidade. Bruxellas: Typographia e Lithographia E, Guyot, 1880, p. IV. 
(6) Ibid., pp. 7 e 8. 
(7) Ibid., pp. 34 e 40. 


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