terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Quem podia ser barbeiro em São Paulo no Século XVI

O que faziam os barbeiros do final do Século XVI? Aparavam barbas, naturalmente, e cabelos... Não só. A população da vila de São Paulo recorria aos barbeiros para várias tarefas que hoje poucos buscariam (se é que alguém ainda faz), e que eram, contudo, muito procuradas em tempos passados: sangrias (¹), por exemplo, e também curativos para feridas, porque a probabilidade de haver um médico nas vilas coloniais era muito reduzida.
Ocorre que, ciumentos de suas prerrogativas, os barbeiros reconhecidos por uma corporação de ofício colocavam todos os empecilhos que podiam à atuação de intrusos na profissão. No ano de 1597 os oficiais da Câmara de São Paulo decidiram agir contra a entrada indiscriminada de forasteiros que se propunham ao trabalho de barbeiros, e que diminuíam, portanto, a freguesia disponível para os profissionais que já residiam na localidade. Diz a ata correspondente:
"Aos dezesseis dias do mês de agosto do dito ano fizeram audiência os oficiais da Câmara e assentaram coisas pertencentes ao bem comum. E logo assentaram entre todos que porquanto nesta vila havia muitas pessoas que de fora vinham e outros que não eram examinados curavam feridas e faziam sangrias por toda a terra, e que pois havia na vila Antônio Ruiz, barbeiro e homem experimentado e examinado (²), que era bem fazê-lo juiz do ofício e que sem sua ordem e sem ser visto todo o que assim curar não possa fazer nem usar da dita cura e sangrias sem sua licença e carta de examinação [sic], salvo quem em suas casas o faz e mostrem o fazer por necessidade ou em negócio e caso fortuito, não sendo achado o dito Antônio Ruiz, farão as ditas curas e sangrias para quem souberem fazer [...]." (³)
No entanto, meus leitores, talvez nos seja lícito supor que, por trás dessa tão salutar preocupação da Câmara, talvez manobrasse o próprio barbeiro Antônio Ruiz, porque, logo em seguida, a ata é enfática em dizer que o homem compareceu de imediato a prestar juramento para ser feito juiz de ofício: 
"[...] para este efeito apareceu logo o dito Antônio Ruiz e recebeu juramento dos Santos Evangelhos perante mim, escrivão, sobre um livro deles, da mão do vereador Antônio de Proença, e prometeu de usar e fazer o dito seu ofício bem e fielmente para estar aqui com os ditos oficiais que lhe mandaram passar provisão deste caso [...]."
Quanta prontidão! Sabendo que paulistas da época eram mestres em tergiversar, se conveniente, não parece pouco razoável fazer a leitura dessa ata menos pelo que diz e mais pelo subentendido, em relação à prática do sangrento ofício de barbeiro no Século XVI (⁴).

(1) A falta de médicos era gritante no território colonial, de modo que até jesuítas tinham, eventualmente, autorização do Padre Geral para efetuar sangrias, uma mania da época que se acreditava salvar vidas, embora não tenham sido poucas, certamente, as que se perderam por causa dela.
(2) Examinado talvez ainda em Portugal, em uma corporação de ofício.
(3) A Ata da Câmara de São Paulo de 16 de agosto de 1597 foi aqui transcrita na ortografia atual e com a adição de alguma pontuação, para torná-la compreensível aos leitores da atualidade (assim espero).
(4) O ofício de barbeiro continuou a envolver sangrias, curativos e até extração de dentes por muito tempo.


Veja também:

4 comentários:

  1. Lido e relido, fica a constatação: Antônio Ruiz podia ter dificuldades em tratar os outros, mas sabia mesmo tratar de si.

    Uma boa semana, Marta :)

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    1. Não é novidade neste planeta que interesses pessoais podem, às vezes, ser chamados de interesse público.

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  2. Prezada Marta,

    Parabéns pelo seu blog, estamos precisando de mais trabalhos assim.

    No livro no tempo dos Bandeirantes, o documento que você transcreveu é datado em 16 de Agosto de 1579, entretanto você disse que o documento é de 1597. Como ainda estou estudando as Atas Paulistas de 1570, não posso precisar exatamente qual autor(a) cometeu um equívoco.

    Com relação ao Antonio Roiz/Rodrigues de Alvarenga ter pressionado por algo, isto é extremamente provável, pois todos os documentos que obtive deste nobre cidadão comprovam sua influência. Sem falar no brasão de armas dado a seus descendentes durante três séculos initerruptos. Você poderia nos passar a fonte que usou para escrever este post? No momento trabalho com este link https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=coo.31924015279825&view=1up&seq=5 .

    Na eventualidade de querer conversar e desenvolver trabalhos sobre este e outros antigos habitantes paulistas, estarei a disposição, mas meus conhecimentos é focado no momento aos meus ancestrais, pois faço um trabalho voltado exclusivamente a eles.

    Atenciosamente,

    Thiago
    Thiago

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  3. Olá, Thiago,

    Bom dia. A data aqui está correta. É, de fato, 1597, conforme você poderá verificar nas páginas 26 e 27 das Atas da Câmara de São Paulo, volume II, edição de 1915.

    Diante do seu interesse pelo assunto, recomendo enfaticamente a leitura do citado volume II das Atas, porque nele você encontrará muitas referências a Antônio Roiz, inclusive ocupando cargos na administração da Vila de São Paulo (como vereador, por exemplo).

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