sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Bondes de tração animal e bondes elétricos

"Vede o homem que vai na frente do bond elétrico. Tendo a seu cargo o motor, deixou de ser cocheiro, como os que regem bestas, e chamamos-lhe motorneiro em vez de motoreiro, por razão de eufonia. Há quem diga que o próprio nome de cocheiro não cabe aos outros, mas é ir longe demais, e em matéria de língua, quem quer tudo muito explicado, arrisca-se a não explicar nada."
 Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 14 de outubro de 1894

Na década de 90 do Século XIX a capital do Brasil, o Rio de Janeiro, começou a ter seus bondes de tração animal substituídos, gradualmente, por bondes elétricos. Em 16 de outubro de 1892, Machado de Assis escrevia na Gazeta de Notícias:
"Não tendo assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar."
Não tardou, porém, a que acidentes com vítimas fatais levassem a questionamentos sobre o novo sistema de transporte urbano. Muita gente o tinha como perigoso demais. Os burros eram mais lentos e, portanto, mais seguros...
Inúteis as reclamações - os bondes elétricos tiveram vida longa. O próprio Machado de Assis, em 12 de abril de 1896, na mesma Gazeta de Notícias, relataria o caso de uma companhia de bondes que se viu obrigada a indenizar o proprietário de um cavalo que, atingido por um de seus veículos, morreu:
"A Companhia Vila Isabel foi condenada a pagar ao dono de um cavalo, morto por um de seus carros, a soma de sessenta contos de réis. Não é demais, tratando-se de animal de fina raça. Conheço pessoas que não valem tanto; algumas podem dar-se de graça e não raras ainda levariam cem ou duzentos mil réis de quebra."
Deixemos de lado o viés algo pérfido do relato. Machado prossegue suas considerações:
"Nem todos os cocheiros são imprestáveis, grosseiros, desobedientes: nem todos atropelam a gente pedestre; nem todos precipitam o carro antes que uma senhora acabe de descer. Dizem até que há alguns, poucos, que quando bradam, avisando: - Olha à esquerda! olha à direita! moderam naturalmente o galope dos animais, para que os avisados tenham tempo de escapar às carroças ou andaimes que estão no caminho."
Por um bom tempo os dois sistemas, o de tração animal e o elétrico, coexistiram pelas ruas da capital do Brasil. Durante anos discutiu-se, também, quantos passageiros cada banco de um bonde poderia levar. As autoridades determinavam um número, as empresas de bondes teimavam em outro. Annibal Amorim, militar brasileiro que esteve em Montevideo em 1911, observou com desgosto o quanto o sistema de bondes usado no Uruguai era superior ao empregado no Rio de Janeiro:
"Esses veículos são confortáveis e elegantes.
Os nossos correriam envergonhados, se os vissem.
Entra-se neles pela face posterior. As laterais são envidraçadas, abrigando, assim, os passageiros da chuva ou da poeira. Bancos estofados para duas pessoas, e um longo corredor onde transitam o condutor e o fiscal, que, de instante a instante, vem marcar el boleto. Ordem, asseio, rapidez e comodidade. São todos providos de limpa-trilhos.
Os do Rio são incômodos e antiestéticos, com bancos para quatro e cinco pessoas, que se atropelam, que se pisam e que se empurram, abrutalhadamente. Em todo o caso, já é um progresso, em vista dos bondes de tração animal, que, há pouco mais de dois anos, serviam esta grande cidade de província, que é o Rio de Janeiro. Não se vê em Montevideo o que se vê nos bondes da linha de Botafogo: motorneiros à paisana, com chapéu mole à cabeça, uma verdadeira indecência. Nada custara à companhia distribuir bonés aos seus motorneiros, sob desconto." (¹)
As coisas, no entanto, podiam ser ainda piores. É o mesmo Annibal Amorim quem conta, a propósito dos bondes que viu no Recife:
"Uma nota, muito curiosa, acerca dos bondes da Mauriceia: São puxados a burros, e iluminados a luz elétrica! Não rias, leitor amigo, que é a pura verdade. Os estudantes dão-lhes, com muito espírito, o nome de eletroburros. É bem achado." (²)
Vejam os senhores leitores que, em se tratando de transporte coletivo no Brasil, as mudanças têm ocorrido no sentido da substituição, apenas, de um sistema por outro. Saem os demasiado obsoletos, entram outros em seu lugar e, como regra, com muito atraso e insuficientes face à demanda. Ou seja, mesmo havendo mudança nos meios de transporte, os problemas são quase sempre os mesmos. Quantitativa e qualitativamente.

Bonde puxado por burros em Belém do Pará (³)

(1) AMORIM, Annibal. Viagens Pelo Brasil. 
Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., p. 316.
(2) Ibid., p. 76.
(3) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 18. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Jabuticabas e jabuticabeiras


Jabuticabas bem maduras, doces, são ótimas. A frutinha, que é encontrada junto ao tronco da árvore que a produz, encantou os colonizadores e, já no Século XIX, buscando sistematizar informações históricas e geográficas sobre o Brasil, o Padre Ayres de Casal observou:
"A jabuticabeira é árvore pequena, delgada e de casca lisa; as folhas, que são envernizadas por ambas as bandas, mas não de um mesmo verde, variam de forma num mesmo ramo; só floresce no tronco, começando do chão até onde os ramos têm boa grossura; [...] é fruta gostosa e inocente: dela se destila um licor forte." (¹)
Deixemos de lado quaisquer considerações sobre o último falar de Ayres de Casal...
Em meados do Século XIX, o jovem Império do Brasil, ainda coberto por densas florestas, despertava uma certa curiosidade, atraindo a visita de estrangeiros que, entre suas observações, sempre relatavam as frutas da terra que haviam tido ocasião de apreciar. O príncipe Adalberto, que percorreu terras brasileiras nos anos quarenta do Século XIX, contou:
"Paramos então por um momento debaixo de uma árvore da qual fizemos cair, sacudindo-a, uma grande quantidade de jabuticabas, uma fruta muito parecida com a nossa cereja preta, que nos refrescou agradavelmente." (²)
Esse príncipe prussiano deve ter realizado um sonho de menino ao andar pela América do Sul; no entanto, não sei de onde tirou a ideia de que jabuticabas são semelhantes a cerejas pretas. É provável que não lhe ocorresse, ao escrever, nenhuma outra comparação que pudesse dar a seus leitores uma ideia exata do que eram as jabuticabas.
Não muito feliz, também, foi a comparação feita por Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista, nascido nos Estados Unidos, que residiu no Brasil durante o Período Regencial:
"Essa árvore pertence à ordem das mirtáceas e é dotada da grande singularidade de dar as flores e os frutos diretamente colados ao tronco e aos galhos principais enquanto que as extremidades são cobertas por densa folhagem verde. A fruta é deliciosíssima, e dá a ideia de uma grande uva roxa." (³)
"Grande uva roxa"? Muito estranho. Talvez o príncipe Adalberto e o missionário Kidder só tenham acertado mesmo no formato, o que, convenhamos, não era tão complicado. Mas, se queremos ser justos com eles, havemos de admitir que a tarefa não era fácil. Quem é que nunca se viu sem palavras ao tentar descrever a outra pessoa uma fruta ou mesmo uma especialidade culinária pouco conhecida?

(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. 
Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, pp. 97 e 98.
(2) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 145.
(3) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 216.


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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Escravos presos deviam ser alimentados pelos senhores

Um escravo podia ser preso, ou porque havia cometido um delito qualquer, ou porque seu senhor o mandara para a prisão. Qualquer que fosse o caso, a alimentação do escravo detido era, nos tempos coloniais, uma obrigação do senhor, segundo estipulavam as Ordenações do Reino, em seu Livro Primeiro, Título XXXIII, § 11:
Escravos sentados, desenho de Rugendas (²)
"E aos escravos que estiverem presos, a que seus senhores não quiserem dar de comer, o carcereiro lho dará, e poderá gastar com cada um até vinte réis por dia; e morrendo o escravo, lhe serão pagos os dias ao dito respeito pela fazenda de seu senhor. E sendo livre por sentença, não será solto até que o senhor pague os ditos gastos." (¹)
Era simples: ou o senhor mandava alimentos para o escravo, ou o carcereiro se encarregaria disso. No entanto, antes de ser solto, o senhor devia pagar a conta. Esperava-se que logo o fizesse, já que, muito provavelmente, tinha todo o interesse do mundo em ter o escravo de volta. Para trabalhar, evidentemente.

(1) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Por que o peixe-boi era muito apreciado no Período Colonial

O peixe-boi é mamífero sirênio. Portanto, de peixe, só tem o nome pelo qual é popularmente conhecido. No Brasil, as espécies encontradas, uma marítima, outra fluvial, são Trichechus manatus e Trichechus inunguis, respectivamente.
No Século XVI, os colonizadores europeus ficaram maravilhados com ele. Gândavo observou:
"É um peixe muito saboroso e totalmente parece carne e assim tem o gosto dela; assado parece lombo de porco ou de veado, coze-se com couves, e guisa-se como carne, nem pessoa alguma o come que o tenha por peixe, salvo se o conhecer primeiro. As fêmeas têm duas mamas pelas quais mamam os filhos, criam-se com leite (coisa que se não acha noutro peixe algum)..." (¹)
Bem se vê que Gândavo não sabia muito bem como diferenciar peixes de mamíferos. Não era, porém, o único a ignorar tais distinções.

Peixe-boi (²)

Há, também do Século XVI, a descrição feita por Gabriel Soares, detalhando o método cruel que era usualmente empregado na captura:
"Goaragoá é o peixe a que os portugueses chamam boi [...], o qual peixe tem o corpo tamanho como um novilho de dois anos, e tem dois cotos como braços, e neles umas mãos sem dedos; não tem pés, mas tem o rabo à feição de peixe e a cabeça e focinho como boi; tem o corpo muito maciço [...], não tem escama, mas a pele parda e grossa. A estes peixes se mata com arpões muito grandes, atados a grandes arpoeiras mui fortes, e no cabo delas atado um barril ou outra boia, porque lhe largam com o arpão a arpoeira, e o arpoador vai em uma jangada seguindo o rastro do barril ou boia, que o peixe leva atrás de si com muita fúria, até que o peixe se vaza todo do sangue e se vem acima da água morto, o qual levam atado a terra ou ao barco, onde o esfolam como novilho, cuja carne é muito gorda e saborosa, e tem o rabo como toucinho, sem ter nele nenhuma carne magra, o qual derretem como banha de porco e se desfaz todo em manteiga, que serve para tudo o para que presta a de porco, e tem muito melhor sabor [...]." (³)
Estejam certos os leitores de que, quanto aos colonizadores, a primeira utilidade que procuravam, em qualquer animal que encontravam, era a dos fins culinários. Mau para o peixe-boi, que foi amplamente apreciado. Por leigos e por clérigos.
O Padre Anchieta, pelo que se depreende de seus escritos, apreciava a carne do peixe-boi, embora tivesse lá suas preocupações. Dizia ele:
É excelente para comer-se, não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe; da sua gordura, que está inerente à pele e mormente em torno da cauda, levada ao fogo faz-se um molho, que pode bem comparar-se à manteiga, e não sei se a excederá; o seu óleo serve para temperar todas as comidas; todo o seu corpo é cheio de ossos sólidos e duríssimos, tais que podem fazer as vezes de marfim." (⁴)
A questão-chave aqui é: "...não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou antes como peixe". Muito simples, senhores leitores. Anchieta estava conjecturando se a carne do peixe-boi era ou não apropriada para dias de jejum prescritos pela Igreja, como era o caso da Quaresma. Grave problema naqueles tempos, nos quais havia muita religiosidade e, de um modo geral, pouco saber científico.
O caso pode hoje nos parecer irrelevante. Não o era, porém, no Século XVI. Não poucas vezes Anchieta e seus irmãos jesuítas registraram ter passado fome, enquanto percorriam a colônia portuguesa na América fazendo aquilo que criam ser seu dever, ou seja, procurando catequizar indígenas. Um único peixe-boi podia atingir centenas de quilogramas, e acabava sendo um suprimento alimentar muito bem recebido. É o que se percebe nesse trecho de uma carta, também escrita por Anchieta e datada de 31 de maio de 1560: "...e como pouca provisão nos sobrasse para o resto da viagem, lançaram os marinheiros a rede ao mar, e colheram de um só lanço dois dos tais bois marinhos, os quais, apesar de serem tão grandes, não romperam a rede, quando um só deles era suficiente para rasgar e despedaçar muitas redes; e assim, provendo-nos com fartura a munificência divina, fizemos o resto da viagem." (⁵)
Que ideia tinham os jesuítas de si mesmos? O relato dessa pesca que reputavam miraculosa é bastante elucidativo, uma vez que toda a linguagem que Anchieta empregou é quase clonada de um certo milagre registrado no Evangelho segundo São João: "Ascendit Simon Petrus et traxit rete in terram plenum magnis piscibus centum quinquaginta tribos et cum tanti essent non est scissum rete" - e, com serem tantos, a rede não se partiu...

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 40.
(2) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 55.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 282.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 107 e 108.
(5) Ibid., p. 110.


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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Clérigos e fidalgos não podiam ser comerciantes

De acordo com a legislação portuguesa que também regia o Brasil no Período Colonial, havia certas pessoas que estavam proibidas de exercer qualquer atividade relacionada ao comércio. Não eram, de modo algum, consideradas desonestas a priori. É que seu status social (no caso dos fidalgos) ou ocupação (em se tratando de religiosos ou militares) tornava-as, à vista da Lei, incompatíveis com a manutenção de uma atividade comercial.
Assim prescreviam as Ordenações do Reino, no Livro 4º, Título XVI:
"Os Clérigos de Ordens Sacras, ou Beneficiados, e os Fidalgos e os Cavaleiros, que estiverem em ato militar, não comprarão coisa alguma para revender, nem usarão publicamente de regataria, porque não convém a suas dignidades e estado militar entremeterem-se em ato de mercadejar, antes lhes é por Direito defeso (¹). E portanto, mandamos às nossas Justiças que lhes não consintam negociarem em semelhantes negócios. E aos ditos Clérigos e Beneficiados sequestrarão as mesmas mercadorias, e farão autos, que remeterão com as mercadorias aos Juízes Eclesiásticos, seus Ordinários." (²)
Membros do clero e militares tinham meios de sustento, mas havia fidalgos que, a despeito do título de nobreza, eram muito pobres. Que fazer, se não podiam ser comerciantes?
Deviam, nesse caso, buscar a nomeação para o exercício de algum cargo público, quer no Reino, quer em alguma das Colônias. Assim é que cada novo governador que vinha ao Brasil fazia-se acompanhar, como regra geral, de uma leva de "providos em algum cargo". Afinal, essa gente precisava viver... Desnecessário é lembrar que o auge de tudo isso aconteceu em 1808.

(1) Ou seja, proibido.
(2) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os "aguadeiros", vendedores de água


Vendedor de água (⁴)

"Aguadeiros" eram chamados os vendedores de água que, antigamente, percorriam as ruas das cidades brasileiras. Nem sempre eram escravos. Havia alguns, em menor número, que eram de condição livre. No entanto, quer livres, quer cativos, eram muito necessários em tempos nos quais o suprimento de água potável, para uso doméstico, podia ser um grande problema.
Os escravos vendedores de água tinham um modo peculiar de anunciar a mercadoria, conforme conta Joaquim Manuel de Macedo, ao explicar que, durante o vice-reinado de Dom Luís de Vasconcelos (¹), chuvas muito fortes deixaram a cidade do Rio de Janeiro com grande falta de água, fazendo com que os preços praticados pelos aguadeiros subissem vertiginosamente:
"Alguns meses apenas tinham passado depois da chegada de Luís de Vasconcelos ao Rio de Janeiro, quando, em consequência de chuvas aturadas e violentas, romperam-se os aquedutos das fontes públicas, deixando os habitantes da cidade em luta com a carestia d'água, que somente de longe se podia trazer.
Então o pretinho que passava pela rua gritando - Ii! - fazia pagar por um preço relativamente fabuloso o pote d'água que levava à cabeça, e isso era um tormento para os pobres e um motivo de lamentações para os ricos." (²)
Curiosa, mesmo, é a origem atribuída ao grito que os aguadeiros usavam para deixar claro a meio mundo que iam já pela rua com a água tão necessária. É ainda Macedo quem se dispõe a elucidar a questão:
"Se não compreendeis bem a significação deste grito dos vendedores d'água, que ainda se ouvia no Rio de Janeiro em uma época muito recente, eu vo-lo explico. Logo depois da fundação da cidade de S. Sebastião, eram os índios ou gentios que vendiam água aos colonos e a anunciavam na sua língua, bradando: - Ig! Ig! - palavra que foi corrompida mais tarde pelos africanos escravos." (³)
Origem difícil de comprovar, convenhamos. Mas a explicação é engenhosa, e Joaquim Manuel de Macedo não é o único autor a fazer-lhe a defesa.

Escravos carregadores de água (⁵)

Cabe notar que nem todo mundo comprava água dos aguadeiros. Havia, por suposto, quem dispunha de sua própria fonte ou poço, ou ainda quem tinha um ou mais escravos encarregados da tarefa de buscar água nos chafarizes ou em outros pontos de abastecimento.
Levaria ainda um bom número de anos para que as grandes cidades brasileiras deixassem de ter problemas para assegurar, aos moradores, qualidade satisfatória no abastecimento de água. Já quanto às pequenas povoações no interior, em particular nas localidades em que longas estiagens não são incomuns, não é possível afirmar que, mesmo hoje, o problema tenha sido de todo resolvido. Um absurdo, afinal, que já na segunda década do Século XXI, ainda precisemos expressar insatisfação com a estrutura de saneamento básico de parte do Brasil.

(1) Governou o Brasil entre 1778 a 1790.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 82.
(3) Ibid., pp. 82 e 83.
(4) _____________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Ibid. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog .


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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Como os indígenas do Brasil faziam canoas

Não há quem desconheça o fato de que os indígenas do Brasil, como regra geral, eram excelentes nadadores. Eram também muito hábeis em construir canoas e, com elas, podiam deslocar-se por rios e mesmo no mar, embora, neste último caso, nunca se distanciassem muito da costa, ou acabariam perdidos em meio ao oceano, sem que pudessem voltar.
Cada grupo indígena tinha sua própria técnica para construir canoas, mas era quase unânime o uso de um só grande tronco, conforme explicou Frei Vicente do Salvador:
"...os índios naturais da terra, as embarcações que usam são canoas de um só pau, que lavram a fogo e a ferro; e há paus tão grandes, que ficam depois de cavados com dez palmos de boca de bordo a bordo; e tão compridos, que remam a vinte remos por banda." (¹)

Sistema indígena para fabricação de canoas, de acordo com desenho de
Joaquim José Codima (²)

Lavrar a ferro, é bom recordar, só foi possível, todavia, a partir do escambo (troca) com europeus. Antes disso, as ferramentas eram de pedra.
Os tupinambás estavam entre os que faziam canoas pelo sistema de usar um único tronco:
"...São grandes remadores, assim nas suas canoas, que fazem de um só pau, que remam em pé vinte ou trinta índios, com o que as fazem voar." (³)
Os tamoios (⁴), que o Padre Anchieta tão bem conheceu, provavelmente usavam um método parecido, pelo que se depreende da explicação dada pelo famoso jesuíta nativo das Canárias:
"...Tinham aparelhadas duzentas ou mais canoas, que fazem de uma cortiça só de uma árvore cada uma, pondo-lhes outros pedaços da mesma cortiça por bordos, mui bem atados com vimes, e são tão grandes que levam cada uma delas vinte e vinte e cinco e mais pessoas, com suas armas e vitualhas; e algumas mais de trinta, e passam ondas e mares tão bravos que é coisa espantosa e que não se pode crer nem imaginar, senão quem o vê..." (⁵)

Canoa indígena, de acordo com Rugendas (⁶)

Os leitores já devem ter notado que uma característica das técnicas indígenas para confecção de objetos de uso diário era que sempre usavam material fartamente disponível na área em que viviam. Não era comum que fossem procurar recursos a grande distância. Portanto, grandes canoas feitas de um só tronco eram possíveis a quem vivesse próximo às grandes matas. Sendo outras as circunstâncias naturais, a técnica para a construção de embarcações também mudava, como podemos facilmente deduzir desta descrição, feita por Gabriel Soares, das canoas usadas pelos índios caetés:
"As embarcações de que este gentio usava eram de uma palha comprida como a das esteiras de tabua (⁷) que fazem em Santarém, a que eles chamam periperi, a qual palha fazem em molhos muito apertados com umas varas como vimes, a que eles chamam timbós, que são muito brandas e rijas, e com estes molhos atados em umas varas grossas faziam uma feição de embarcações, em que cabiam dez a doze índios, que se remavam muito bem e nelas guerreavam com os tupinambás neste rio de São Francisco, e se faziam uns aos outros muito dano. E aconteceu por muitas vezes fazerem os Caetés desta palha tamanhas embarcações, que vinham nelas ao longo da costa fazer seus saltos aos tupinambás junto da Bahia, que são cinquenta léguas." (⁸)
É verdade que, do ponto de vista tecnológico, os colonizadores europeus estavam muito à frente, de um modo geral, dos povos indígenas do Brasil. No entanto, é inegável que os ameríndios estavam bastante bem adaptados ao meio em que viviam e, com habilidade por vezes surpreendente, eram capazes de satisfazer às suas pequenas necessidades de consumo, como suas eficientes embarcações eram capazes de demonstrar.

(1) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, c. 1627.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 321.
(4) Segundo a compreensão atual, os tamoios pertenciam ao grupo tupinambá, e a distinção do nome se faz pela região em que habitavam, ou seja, o litoral dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 203.
(6) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) Em São Paulo também se diz "taboa".
(8) SOUSA, Gabriel Soares de. Op. cit., pp. 38 e 39.


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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Ônibus puxados por burros

Carruagens, seges, coches e outros veículos de tração animal podiam transportar poucas pessoas. Cidades grandes precisavam, mesmo no Século XIX, de algum tipo de transporte coletivo. O Rio de Janeiro, por exemplo, capital do Império do Brasil, teve um sistema de ônibus puxados por burros.
Como era isso?
Temos um bom relato, deixado pelo pastor e missionário metodista Daniel P. Kidder, americano que residiu em território brasileiro entre 1837 e 1840. Seu testemunho chega a ser surpreendente e, como se verá, apresenta algum contraste com a realidade do transporte coletivo urbano no Brasil de hoje:
"Mais ou menos por essa época uma companhia de ônibus iniciou o serviço de transporte coletivo por meio de carros, entre a Praça da Constituição - ponto central da cidade - e os bairros das Laranjeiras e Botafogo, de um lado, e, de outro, São Cristóvão e o Engenho Velho. Nenhum outro serviço semelhante havia sido até então inaugurado em qualquer outra cidade do país. Os belos carros construídos especialmente para esse fim eram tirados por quatro mulas e apresentavam aspecto quase tão interessante como os que correm pela Broadway." (¹)
Depois de assinalar que um ponto desfavorável é que o número de veículos era pequeno para a quantidade de passageiros em potencial (que novidade!), Kidder afirma que a população tinha, dentro dos ônibus, uma conduta excelente:
"As pessoas habituadas ao ar indiferente dos passageiros de semelhantes carruagens, em Nova Iorque, surpreender-se-iam ao ver a amabilidade e a polidez com que, no Rio, se tratavam nos ônibus pessoas inteiramente estranhas." (²)
Estão surpresos, senhores leitores?!!!
Vindo dos Estados Unidos onde, naqueles dias, também havia trabalho escravo, Daniel Kidder ainda afirmaria:
"Outra coisa surpreendente é que a ninguém se nega ingresso por causa da cor." (³)
Cabe aqui uma explicação. Nenhum negro livre era impedido de usar os ônibus, mas escravos não podiam fazê-lo, havendo apenas exceção para amas que acompanhavam as respectivas senhoras. Não era a cor da pele, portanto, o fator de discriminação, e sim a condição social.

(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. 
Brasília: Senado Federal, 2001, p. 142.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mau comportamento na igreja (não só das crianças!)

Você, leitor ou leitora deste blog, é do tipo de pessoa que tem alergia ao mau comportamento de crianças, principalmente em lugares públicos - uma igreja, digamos?
Pois bem, na década de 70 do Século XIX uma professora de escola pública na então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, publicou um pequeno livro que logo foi adotado como útil à prática da leitura em muitos estabelecimentos de ensino. O título do livro era Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade (¹); Guilhermina de Azambuja Neves era o nome da autora.
Na página 11 do dito livrinho encontramos:
"Que feia coisa não é ver meninos a correr para um e outro lado no sagrado recinto, comendo gulodices, como se estivessem no passeio ou no teatro."
Cai por terra aquela ideia de que, antigamente, a criançada era rigidamente controlada pelos pais que, com um domínio absoluto, garantiam a disciplina de seus pequenos. Se todos fossem verdadeiros anjinhos, onde teria ido a Professora Guilhermina buscar a figura do pestinha que faz algazarra na igreja?
Continuemos. Para instruir seus hipotéticos educandos a autora prossegue com um "estudo de caso", no qual o menino Adolfo apronta das suas:
"Tem bem em vista estes meus conselhos e nunca imites o proceder do estouvado Adolfo, que se dobra hipocritamente como se estivesse rezando, mas em verdade não está.
Sua mãe já lhe tem feito muitas advertências, mas Adolfo não se corrige.
Sabes o que faz ele de cabeça baixa?
Leva a contar os ladrilhos da igreja, a fazer caretas e a espiar para um e outro lado para ver o que fazem os outros.
Ainda há poucos dias pendurou-se por tal modo na grade da comunhão que caiu desastradamente, fazendo um galo na testa e chamando a geral atenção das pessoas circunspectas que ali estavam em silêncio, ouvindo piedosamente o ofício divino.
Mas ainda bem que no dia seguinte o Senhor Vigário o repreendeu asperamente, ameaçando-o de o não admitir mais na igreja se não se corrigir." (²)
Podem sorrir, leitores. É coisa ingênua, mesmo, mas que no Século XIX era vista como muito apropriada à educação de meninos e meninas.
Missa na Igreja de N. Sra. da Candelária
em Pernambuco, de acordo com Rugendas (⁵)
Agora, é hora de falar sério. Pelo testemunho de ninguém menos que o naturalista Auguste de Saint-Hilaire, podemos deduzir que desordens na igreja não eram, no Brasil do passado, um privilégio de crianças. O autor francês, aliás muito devoto, notou com horror que, durante um serviço religioso no Rio Grande do Sul, as pessoas presentes não pareciam nada preocupadas em, pelo menos, alardear religiosidade:
"Durante todo esse tempo ficara exposto o Santíssimo Sacramento, mas a assistência nem por isso guardava respeito, portando-se quase como se estivesse num mercado." (³)
Observou, depois, algo parecido em São Paulo, desta vez na Semana Santa de 1822, durante a liturgia de quinta-feira:
"No ofício de quinta-feira santa, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do bispo. Olhavam todos à direita e à esquerda, conversavam antes deste solene momento e recomeçavam a conversar imediatamente depois." (⁴)
Sejamos justos: nada muito diferente do "estouvado Adolfo"...
Apenas algumas observações, a título de conclusão. Primeiro, é bom recordar que, ao contrário do que sucede hoje em dia, quando só vai a alguma igreja quem quer, no Século XIX o comparecimento às cerimônias religiosas era visto como um absoluto dever cívico e social; além disso, o Brasil - fosse sob governo joanino ou já Império - era um país oficialmente de religião católica, o que conferia ao comparecimento à igreja um aspecto muito diferente daquele que se tem hoje; por último, como esperar que a criançada desse um espetáculo de santidade se os bem crescidos estavam longe daquela conduta que, segundo os costumes do tempo, poderia ser chamada de "exemplar"?

(1) A edição consultada, cujo original pertence ao acervo da BNDigital, foi:
NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875.
(2) Ibid., pp. 12 e 13.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 85.
(4) Idem.  Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 104.
(5) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Armas indígenas

As armas mais comuns dos povos indígenas - arcos, flechas, lanças de madeira, tacapes, pequenos machados de pedra - são bem conhecidas e, de fato, podiam ser encontradas, à época da chegada dos colonizadores europeus, entre a maioria dos nativos habitantes do litoral.
No entanto, cada grupo indígena tinha suas particularidades e técnicas específicas para a confecção de armas, fosse na escolha do material, no método de preparo ou mesmo na decoração que identificava a tribo.
Os goitacás arriscavam a pele à busca de tubarões. Motivo? Obter dentes, que usavam como ponta para flechas, segundo escreveu Gabriel Soares, na segunda metade do Século XVI:
"Costumavam estes bárbaros, por não terem outro remédio, andarem no mar nadando, esperando os tubarões com um pau muito agudo na mão, e em remetendo o tubarão a eles, lhe davam com o pau, que lhe metiam pela garganta com tanta força que o afogavam e matavam, e o traziam a terra, não para o comerem, para o que se não punham em tamanho perigo, senão para lhe tirar os dentes, para os engastarem nas pontas das flechas." (¹)
Já os ubirajaras, ainda de acordo com Gabriel Soares, usavam uma arma que lhes era específica, bem diversa das de outros povos:
"A peleja dos ubirajaras é a mais notável do mundo [...], porque a fazem com uns paus tostados muito agudos, de comprimento de três palmos, pouco mais ou menos cada um, e são agudos de ambas as pontas, com os quais atiram a seus contrários como com punhais; e são tão certos com eles que não erram tiro, com o que têm grande chegada, e desta maneira matam também a caça, que [...] não lhes escapa, os quais com estas armas se defendem de seus contrários tão valorosamente como seus vizinhos com arcos e flechas [...]. (²)
Para dar acabamento ao trabalho, muitos índios usavam um recurso semelhante, no efeito, a uma lixa, mas obtido de um vegetal muito comum no litoral brasileiro, a embaúba:
"Embaúba é uma árvore comprida e delgada, que faz uma copa em cima de pouca rama; a folha é como de figueira, mas tão áspera que os índios cepilham com elas os seus arcos e hastes de dardos, com o que se põe a madeira melhor que com a pele de lixa." (³)

Índios bororenos indo à guerra, de acordo com Debret (⁴)

Estas descrições, como já disse, são do Século XVI. Como elas, há muitas outras. Boas imagens, porém, só as há do Século XIX, quando muitas tribos que originalmente habitavam o litoral já haviam desaparecido. Assim, o que se conhece é apenas uma parte do rico patrimônio original de técnicas, tanto para confecção de armas como de outros artefatos indígenas de uso diário.

Índios puris lutando (⁵)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 78.
(2) Ibid., p. 348.
(3) Ibid., pp. 196 e 197.
(4) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. 
Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O rapto de mulheres na Antiguidade

O rapto das sabinas é, provavelmente, dos eventos mais conhecidos da Antiguidade, mas, por certo, não é o único do tipo, quer histórico, quer lendário (ou ambas as coisas), cujo relato chegou até nós: os romanos, desesperados por não terem mulheres, organizaram uma festança e convidaram os sabinos que, desatentos, acabaram tendo suas filhas raptadas pelos espertos anfitriões.
Na Bíblia conta-se que, tendo os hebreus lutado entre si, deixaram poucos sobreviventes à tribo de Benjamim e, ainda por cima, juraram que ninguém permitiria que suas filhas viessem a casar-se com eles. Depois de "esfriar a cabeça", perceberam que, sendo assim, uma das famosas doze tribos acabaria extinta. Para evitar tão infeliz situação, adotaram, entre outras medidas, uma autorização para que, durante uma de suas festas, os benjamitas raptassem moças com as quais poderiam contrair matrimônio. E, como era rapto, não dependia de autorização dos pais.
O costume de raptar mulheres era, pois, nada raro na Antiguidade. Heródoto, na sua História, conta que as encrencas entre europeus e asiáticos tiveram início, nem mais e nem menos, por causa disso.
A coisa aconteceu assim: Um dia, os fenícios, os grandes comerciantes marítimos da Antiguidade, foram fazer suas vendas em Argos. Lá atraíram a atenção das mulheres, que ficaram encantadas com as mercadorias oferecidas (leitores do sexo masculino, cuidado com as ideias sexistas!). Como eu ia dizendo, fizeram os fenícios as vendas durante alguns dias e, entre as compradoras, estava a belíssima Io, filha do próprio rei de Argos. Ora, os fenícios, ao acabarem-se as vendas, tiveram a ideia de raptar as mulheres da localidade. A maioria, segundo Heródoto, conseguiu fugir deles, mas não a jovem Io, que foi conduzida ao Egito.
Não pararam aí as confusões. Para vingar-se do desaforo feito aos gregos, teriam os cretenses raptado Europa, filha do rei de Tiro. E, como "olho por olho" não era suficiente, outros raptos vieram, sempre na intenção da desforra.
O mais célebre de todos os raptos, que acabou em guerra sangrenta, teria, ainda de acordo com Heródoto, vindo em decorrência dessas estripulias. Falo, é claro, do rapto de Helena pelo filho de Príamo, Alexandre, que resultou na Guerra de Troia.
Nem sempre é fácil determinar com exatidão o quanto disso de fato ocorreu, o quanto foi exagero e acréscimo posterior de quem relatava os acontecimentos. O que fica de muito instrutivo, aqui, a quem se interessa por História, é um quadro bastante vívido da condição das mulheres, à vista dos povos do Mediterrâneo da Antiguidade, que se depreende dessas narrativas, até porque, para enlouquecer as leitoras deste blog, o grande Heródoto tinha a capacidade de, em suas considerações, asseverar que, se as mulheres raptadas de fato não quisessem, nunca teriam sido roubadas da casa de seus respectivos pais ou maridos...


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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O abacaxi e a Inquisição

"Uma espécie mui galante e causa de louvar o Autor da natureza é a que chamamos ananás; seu fruto é a modo de pinha de Portugal, o gosto e cheiro a modo de maracotão o mais fino, suas folhas são semelhantes a erva babosa. A cabeça do fruto galanteou a natureza com um penacho ou grinalda de cores aprazíveis."
Padre Simão de Vasconcelos (¹)

Ao contrário das colônias da Espanha na América, o Brasil, colônia portuguesa, nunca teve tribunais fixos do Santo Ofício da Inquisição. Teve, porém, "Visitações" do Santo Ofício, que poderiam ser definidas como uma versão ambulante do Tribunal, com uma estrutura bastante simplificada, cujos funcionários obrigatórios eram apenas três: o visitador, um escrivão e um meirinho (²).
Foi na última década do Século XVI que a primeira Visitação chegou às terras do Brasil, ocorrendo a publicação dos editos da Fé e da Graça em Salvador, então capital, no domingo, 28 de julho de 1591.
Expliquemos.
Tendo o visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, chegado ao Brasil e efetuado as apresentações formais às autoridades civis e eclesiásticas (que, conforme o rito, deviam demonstrar satisfação e submissão aos atos inquisitoriais), determinava-se que toda a população da cidade e adjacências comparecesse à cerimônia na qual, após um sermão enaltecendo as virtudes do Santo Ofício, era feita uma proclamação dando prazo de trinta dias para confissões e denúncias.
Fica entendido que tal prática precisa, necessariamente ser avaliada no contexto da época, em que a Inquisição inspirava autêntico terror, tanto pelas penas eternas que sugeria como pelas terrestres, talvez até mais temidas. A consequência é que, nos trinta dias "de graça" a população corria a confessar os supostos crimes contra a fé, com o agravante de que era necessário fazê-lo antes que alguém denunciasse...
A perversidade do sistema era de tão alto grau que mesmo cônjuges, apavorados, corriam a denunciar os respectivos companheiros. No entanto, alguns casos podiam até, pelos nossos padrões, ter um viés cômico. Foi o caso da confissão feita por uma certa Catarina Fernandes, que vivia no Brasil condenada a degredo de cinco anos, por ter-se envolvido em um caso de homicídio no Reino.
Ananás ou abacaxi (⁶)
O escrivão relatou:"...e confessando-se disse que haverá ano e meio que em dia de Nossa Senhora da Conceição pela manhã, morando ela em Pirajá desta Capitania, se confessou ao capelão do engenho da cidade Pantaleão Gonçalves, e dele recebeu o Santíssimo Sacramento, e depois indo para sua casa lhe lembrou seu marido que ela antes de ir para a igreja tinha comido uma talhada de ananás (³), e ela vendo também as cascas no chão lhe lembrou então que tinha comido uma talhada de ananás antes de ir comungar, e então teve grande arrependimento e se tornou a confessar a um padre da Companhia (⁴), o qual lhe deu em penitência que trouxesse um cilício quinze dias e rezasse cinco vezes o rosário e outras tantas a coroa de Nossa Senhora e jejuasse três sábados a pão e água, a qual penitência ela cumpriu, e que hora pedia misericórdia nesta mesa, conforme a este tempo de graça."
Quem acha que, afinal, o caso de Catarina Fernandes não era para tanta severidade, não vê a coisa com os olhos de um inquisidor. O Senhor Visitador do Santo Ofício, em pleno exercício dos quase ilimitados poderes que lhe eram conferidos, farejou aqui a possibilidade de um caso de negação da chamada transubstanciação, de modo que interrogou a confitente de forma pormenorizada, ao que ela respondeu "...que nunca esteve em terra de luteranos, nem tratou com eles e que sabia muito bem que se há de comungar em jejum e que a isso estava obrigada [...]."
Diante da insistência do Visitador, saiu-se ela com uma explicação bastante razoável para seu inusitado esquecimento de que comera abacaxi, ou seja, "...com a cólera e agastamento que levava contra seu marido, com quem pelejara, lhe não lembrou"... (⁵)
Esse episódio chegaria às raias do ridículo, não fora o fato de nos dar informação sobre a desconfiança que devia pairar na sociedade nos tempos inquisitoriais, fazendo com que as pessoas corressem, por medo, a publicar ações e pensamentos diante de um inquisidor e seu escrivão. O temor de uma denúncia e subsequente processo garantia aos detentores do poder eclesiástico um nível elevado de controle sobre os indivíduos, mesmo porque a rede de "familiares" do Santo Ofício era certeza de que não seria por falta de informação que deixaria de estar ocupada a mesa inquisitorial.
O que entenderia Catarina Fernandes sobre transubstanciação, consubstanciação, luteranismo, etc.? Pouco ou nada, é bem provável. Ao final da confissão, como não soubesse assinar o próprio nome, pediu que o escrivão o fizesse por ela.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 243.
(2) Para efeitos práticos, um meirinho tinha, em uma Visitação, o papel de oficial de justiça.
(3) Abacaxi.
(4) Um jesuíta.
(5) Todas as citações da confissão da degradada Catarina Fernandes são provenientes da edição de 1922 da Primeira Vistação do Santo Ofício às Partes do Brasil, série Eduardo Prado.
(6) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 87.


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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

As boas ações praticadas pelos condenados ao degredo no Brasil

Pero Vaz de Caminha, após o relato da segunda missa celebrada na "Terra de Santa Cruz", recomendava que, numa próxima viagem que se fizesse ao Brasil, viesse um padre para batizar índios, supondo que haveria conversos, em razão dos dois condenados ao degredo que ficavam na terra:
"Se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degradados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram."
A crer, entretanto, nos relatos feitos ao longo dos séculos da colonização, não era exatamente por obra de degradados que deveriam os portugueses esperar conversões entre os indígenas.
Nada disso - a maioria dos condenados ao degredo, uma vez no Brasil, mantinha a mesma prática de "boas ações" que os levara à condenação no Reino, de modo que não poucos religiosos, fatigados por seu mau exemplo, imploravam às autoridades que não mais permitissem a vinda desse tipo de gente.
O Padre Manuel da Nóbrega, dos primeiros jesuítas que vieram ao Brasil com Tomé de Sousa, era da opinião de que sentenciados ao degredo somente viessem se condenados, simultaneamente, a trabalhos forçados na Colônia:
"...certo é mal empregada esta terra em degradados, que cá fazem muito mal; e já que cá viessem, havia de ser para andarem aferrolhados nas obras de Sua Alteza." (¹)
Neste caso, o problema devia ser tão evidente, que Nóbrega escreveu o trecho acima em uma carta datada de agosto de 1549, ou seja, pouco depois de ter chegado ao Brasil.
Sobre um desses degradados, observou o Padre Simão de Vasconcelos, também jesuíta:
"Eram mais ilustres que ele seus vícios, cometidos assim em Portugal, como no Brasil: malfeitor, arrogante, soberbo, desbocado, sem temor de Deus nem dos homens, em cabo desalmado." (²)
Que lista de virtudes!
A que conclusão chegamos?
A ideia das autoridades do Reino era que, ao enviar condenados ao degredo, mais rapidamente fosse povoada a Colônia (uma prova, afinal, de que, livremente, poucos viriam); dava-se, ao mesmo tempo, uma oportunidade aos condenados para que endireitassem a vida. Parece, no entanto, que o resultado estava longe disso, se levarmos em conta o testemunho dos padres, segundo o qual o maior obstáculo à catequese eram os colonos europeus e, entre eles, claro, os famosos degradados.
 
(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 291.
(2) Ibid., pp. 52 e 53.


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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

"Será degradado para o Brasil"

Os desterrados que ajudaram a povoar a colônia portuguesa na América


De acordo com o Padre Simão de Vasconcelos, ao vir ao Brasil, o primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, trouxe consigo, entre outras pessoas, seiscentos soldados e, nada mais, nada menos, que qua-tro-cen-tos condenados ao degredo, ou seja, desterro:
"Constava o grosso da gente de mil homens, os seiscentos soldados, os quatrocentos degradados, afora outros muitos moradores com suas casas, e alguns criados de El-Rei, que vinham providos em ofícios". (¹)
Faz-se quase desnecessária a recordação de que essa não foi a única leva de desterrados que veio ao Brasil. Aliás, a coisa começou antes: na expedição de Cabral vieram dois, que, segundo Caminha, participaram muito devotamente da segunda missa celebrada por Frei Henrique de Coimbra. O motivo, naturalmente, devia ser o fato de que não sabiam se teriam ocasião para alguma outra. Depois desses dois "pioneiros" vieram muitos e muitos outros, nos centênios subsequentes.
Ora, que gente era essa que, contra a vontade (supõe-se) acabava tendo de embarcar para a Colônia?
Não pretendo dar aqui uma listagem exaustiva, apenas menciono alguns casos em que a sentença, segundo as Ordenações do Reino (²) deveria ser degredo temporário ou vitalício para o Brasil (que, diga-se de passagem, era, na época, pena mais severa que o degredo para as colônias em solo africano: como regra geral, um ano no Brasil equivalia a dois anos na África). Estipulava a lei, também, que o degredo no Brasil nunca seria inferior a cinco anos. Vejamos, pois, senhores leitores:

- Dez anos no Brasil para o carcereiro que tivesse "ato desonesto" com presa, com o consentimento dela (sendo não-consentido, atribuía-se pena de morte);
- Degredo perpétuo para procuradores de justiça que fizessem algum tipo de movimento, pressão ou acordo para elevação de seus salários;
- Dez anos de degredo para "escrivães relapsos";
- Dez anos para aquele que, praticando a mineração no Reino, não encaminhasse o ouro encontrado para fundição;
- Degredo e multa para "adivinhos" (astrólogos, todavia, não eram incluídos, já que, nesses tempos, a astrologia ainda era vista como uma ciência);
- Degredo perpétuo para usuários de pequenas quantidades de moeda falsa;
- Também degredo perpétuo para quem reduzisse o metal precioso de moedas de pouco valor;
- Degredo perpétuo para homens de alta posição social que retirassem freiras de algum convento;
- Degredo perpétuo para adúltero, quando a adúltera fosse perdoada pelo marido traído (não havendo perdão, ambos os adúlteros seriam executados);
- Degredo para a amante reincidente de algum religioso;
- Degredo e açoites para freira alcovitada;
- Degredo, finalmente, para ladrões de bolsas (devia ser das causas mais comuns que "trazia" gente ao Brasil).

As Ordenações do Reino determinavam que, ao sair um navio de Lisboa para o Brasil, devia seu comandante informa-se se havia condenados a levar. Nos primeiros tempos coloniais as viagens não eram muito frequentes e, portanto, essa determinação tinha por objetivo assegurar que os sentenciados deixassem a prisão e passassem efetivamente ao cumprimento das respectivas penas o mais cedo possível. Para prevenir fugas, os prisioneiros faziam a viagem tendo cadeia no pé ou colar de ferro no pescoço.
Resta observar que, toda essa gente altamente qualificada (³) acabou, para bem ou para mal, fazendo parte da massa de colonizadores. Fica para outro dia a discussão das consequências práticas de tal fato, embora os leitores deste blog bem possam fazer algum uso da imaginação, tirando conclusões por si mesmos.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 28.
(2) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(3) Padres e governantes da Colônia não demorariam em fazer chegar ao Reino veementes protestos contra o envio sistemático de sentenciados a degredo, informando que eram responsáveis por corromper a população nativa que se procurava catequizar, bem como por inúmeras outras desordens.


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