domingo, 24 de outubro de 2010

Vai de liteira ou de automóvel?

Em 17 de novembro de 1852 o jornal Aurora Paulistana trouxe, em sua quarta e última página, este anúncio:
"Nas imediações do campo redondo, chácara denominada - do Arouche existe uma oficina de marceneiro onde se apronta toda a qualidade de obra relativa a este ofício com a maior perfeição e comodidade de preço. Na mesma casa existe uma liteira perfeitamente acabada, asseada e muito barata, tendo sido concluída há pouco mais de oito dias."
Liteiras, como se sabe, eram usadas para transportar pessoas. Se a viagem era longa, havia liteiras adaptadas para serem carregadas por dois burros; se, no entanto, eram de uso urbano e, por isso, para trajetos mais curtos, as liteiras eram, geralmente, transportadas aos ombros de escravos. Uma hipótese bastante provável é que, sendo feito sem encomenda prévia, um produto devia ter saída assegurada, mesmo em São Paulo, que na época ainda não era o grande porto seco do café, e era reputada como pouco mais que uma cidadezinha provinciana. Seges e coches não eram para todos e o primeiro serviço de bondes (tracionados por burros) iniciou suas operações na capital paulista apenas em fins de 1872.
Carro de Bois, de acordo com Debret
Por outro lado, transporte de carga era coisa para carros de bois. Eram amplamente empregados nas fazendas e, até que as ferrovias viessem trazer um significativo avanço ao escoamento da produção cafeeira, seu rangido estridente foi sinônimo de atividade econômica. Não torça o nariz, leitor. Não duvido que, em algum recanto mais longínquo do Brasil, ainda haja algum carro de bois em uso, e não estou falando de fins turísticos.
Gradualmente, no que se refere ao transporte de carga e de passageiros a longas distâncias, o Brasil mudou bastante com a implantação de uma expressiva malha ferroviária. Entenda-se: expressiva em termos de América do Sul, não havendo qualquer possibilidade de comparação com as ferrovias centro-europeias, ou dos Estados Unidos, ou ainda do Império Russo, na mesma época.
A modernização, no entanto, teve seu preço. Liteiras, cadeirinhas e carros de bois eram fabricados aqui mesmo. As locomotivas tinham que ser importadas, quase sempre da Inglaterra, embora fossem usadas americanas também. E, quando os automóveis começaram a circular pelas cidades, a dependência das importações sofreu um agravamento. Havia modernização, até por ser quase inevitável, mas crescia a dependência externa. Como exemplo, veja esse interessante anúncio, publicado em uma edição do mês de dezembro de 1914 na revista A Cigarra:
O anunciante, que se declara "importador", oferece bicicletas, motocicletas, pneus e automóveis, todos obviamente importados, dando-se relevo ao fato de que os produtos são de origem inglesa, o que, naqueles tempos, era sinônimo de qualidade, ao menos no imaginário popular.
Ora, quanto ao problema da importação de automóveis, só haveria mudança na década de 1950. Mas, antes disso, era imperativo abrir rodovias, por onde os automóveis pudessem circular. E, pode acreditar, esse assunto foi alvo de muita polêmica, principalmente na década de 1920 (é fácil, de nossa posição de observadores do futuro, criticar a falta de visão dos humanos do passado).
Um samba de Eduardo Souto, do ano de 1929 (gravado por Francisco Alves), tendo como título É sim, senhor, dizia:

Ele é estradeiro?
É sim, senhor.
Habilitado?
É sim, senhor.

O "estradeiro", alvo da zombaria, era nem mais, nem menos, que o então presidente Washington Luís, o homem do "Governar é abrir estradas". E, efetivamente, foi com Washington Luís como governador de São Paulo que foi iniciada a construção da primeira rodovia ligando São Paulo ao Rio de Janeiro, obra que só foi concluída quando era ele já presidente da República. Malgrado a galhofa da população, que se referia às estradas de rodagem como "estradas de bobagem", a obra teve o mérito de encurtar sensivelmente o tempo de viagem entre as duas capitais: era possível cobrir a nova rodovia em 14 horas. Sem ela, tentar ir de carro podia levar mais de um mês, razão pela qual as viagens de automóvel eram vistas mais como atividade esportiva que como transporte confiável.
É sempre possível enfrentar oposição quando o que se precisa fazer não está ao alcance da compreensão de todo mundo. Dá-se, no caso em questão, a desculpa de que a população era pouco instruída e, por isso, não entendia os benefícios a longo prazo da construção de rodovias. É verdade. Mas quando vai acabar o pretexto da falta de instrução? Já passou e muito o tempo de extirpar essa praga. Eu, pelo menos, não vejo a hora de ver este País completamente livre dela, mesmo porque necessitamos, com urgência, de grandes obras que renovem e expandam a infraestrutura disponível. Sem isso, o desenvolvimento econômico corre sério risco de sofrer um estrangulamento.


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