"Olhou a manhã, que estava de uma transparência admirável. A chuva da véspera limpara a atmosfera; corria fresco. Os bondes passavam cheios de empregados públicos; viam-se amas de leite acompanhando os bebês; senhoras que voltavam do banho de mar, o cabelo solto, uma toalha ao ombro."
Aluísio Azevedo, Casa de Pensão
Essas tardes mornas de primavera parecem prenunciar um verão digno das melhores praias do Brasil - como não? Mas, enquanto o verão e as férias não comparecem, daremos uma olhadela no modo pelo qual as gentes de um passado não tão remoto apreciavam os encantos do litoral.
Comecemos por um interessantíssimo trecho de Machado de Assis, no conto A Chave (1880), no qual iremos ao encontro da jovem Marcelina, descrita como muito bela e, além disso, ótima nadadora, na manhã do dia 7 de outubro de 1861. Acompanha-me na leitura?
"Lá está ela, à porta da barraca com as mãos cruzadas no peito, como quem tem frio; traja a roupa usual das banhistas, roupa que só dá elegância a quem já a tiver em subido grau. É o nosso caso. Assim, à meia-luz da manhã nascente, não sei se poderíamos vê-la de modo claro. Não; é impossível. Quem lhe examinaria agora aqueles olhos úmidos, como as conchas da praia, aquela boca pequenina, que parece um beijo perpétuo? Vede, porém, o talhe, a curva amorosa das cadeiras, o trecho de perna que aparece entre a barra da calça de flanela e o tornozelo; digo o tornozelo e não o sapato porque Marcelina não calça sapatos de banho. Costume ou vaidade? Pode ser costume; se for vaidade é explicável porque o sapato esconderia e mal os pés mais graciosos de todo o Flamengo, um par de pés finos, esguios, ligeiros. A cabeça também não leva coifa; tem os cabelos atados em parte, em parte trançados, — tudo desleixadamente, mas de um desleixo voluntário e casquilho."
Pode sorrir leitor: os modelitos de praia para moças na segunda metade do século XIX incluíam calça de flanela e sapatos de banho! E não nos esqueçamos da coifa na cabeça... Nem o próprio Machado de Assis (que não conhecia os trajes de banho de nossos dias) achava elegante tal vestuário. Mas não era só. Se continuarmos a ler Machado veremos que as meninas de boa reputação tinham um "acessório" a mais:
"— Onde está o José?
O José apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o José, Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior.
[...].
Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça."
Nem é preciso muita explicação: um jovem escravo tinha a obrigação de acompanhar a menina rica para que não corresse risco nas ondas do mar. E eis aí em que consistia ir à praia no século XIX.
Na postagem "Vai de Liteira ou de Automóvel?" tratei da modernização relativamente veloz, ainda que forçada, nos meios de transporte usados no Brasil, durante as primeiras décadas do século XX. Sucede, no entanto, que mudar tecnologias é mais fácil, no fim das contas, que produzir alterações em coisas como vestuário e em outros códigos ligados à conduta socialmente aceita. Falei do comércio de liteiras em 1852 e do de automóveis em 1914, e podemos fazer algo similar em relação aos "trajes de praia", já que lemos esse encantador trechinho de Machado, referindo-se a 1861, e podemos ver, a seguir esta foto, de 1914:
A legenda original, publicada na revista A Cigarra (em edição de 29 de agosto de 1914) dizia: "Instantâneo da praia do Guarujá, à tarde, tirado especialmente para "A Cigarra"". Ao contrário do ocorrido com os meios de transporte, a roupa considerada aceitável para praia não sofreu, em um período quase idêntico, nenhuma alteração significativa. Levaria ainda um bom tempo para que o conceito sobre banhos de mar e "curtir uma praia" começasse a ficar parecido com aquele que temos hoje, o que não significa que os banhistas do passado tivessem menor divertimento. Se alguém está habituado a um estilo de trajar e até acha que seria errado usar outra coisa, dificilmente verá a necessidade de mudança. Todavia, pelo menos no Ocidente, à medida que o capitalismo ganhou proporções efetivamente mundiais, alçando consigo a indústria da moda, antes restrita a poucos lugares e infinitamente mais lenta em sua capacidade de provocar mudanças, é que as pessoas começaram a ver a "necessidade" de alterar seus padrões de vestuário, sentindo-se imensamente incomodadas em usar coisas tão antiquadas, ou seja, da estação passada.
Portanto leitor, tem aqui desde já sua lição de férias: quando estiver descansando tranquilamente ao sol do próximo verão, não se esqueça de fazer uma comparação entre a paisagem diante de si e a foto desta postagem. Profundos conhecimentos históricos irão brotar dessa reflexão, eu lhe asseguro.
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