terça-feira, 2 de março de 2021

A pesca do pirarucu no Século XIX

Ele é chamado "bacalhau da Amazônia": morto e salgado, parece bacalhau, mas só assim... É o pirarucu (Arapaima gigas), de água doce, doces como são as águas da Amazônia. "Este peixe salgado", explicou o cônego Francisco Bernardino de Sousa (¹), "é um dos gêneros que mais concorrem a facilitar a alimentação pública em geral e quase que constitui a base do sustento de uma boa parte da população (²). A língua do pirarucu, duríssima como ferro, serve para ralar e é com ela que costumam os indígenas ralar o guaraná" (³).
Para a realidade das águas doces, um pirarucu adulto é um peixe enorme, frequentemente com mais de dois metros de comprimento. Seu ciclo reprodutivo, porém, dificulta um pouco a propagação da espécie. Seria necessário, portanto, algum cuidado no que se refere à pesca. Não era o que acontecia no Século XIX, pelo que se vê com facilidade nas palavras de Francisco Bernardino de Sousa:
"A pesca [...] do pirarucu é dos seguintes modos: servem-se algumas vezes do anzol ou flecha, outras do arpão [...]; do camuri, que é uma boia com isca para chamá-lo à superfície da água, e então arpoá-lo; ou tapando a boca dos lagos, ou finalmente empregando o cacuri, que é uma espécie de cercado.
[...]
Não há ainda medida nem regra, que eu saiba, nesta violenta caçada. Tanto o grande como o pequeno peixe morrem à fisga, ao anzol e ao arpão, e não será para admirar que este importantíssimo recurso da pobreza venha a escassear em um futuro que talvez não esteja muito longe, porque acresce ao estrago feito pela mão do homem a diminuição considerável da espécie, ocasionada em alguns anos pela vazante extraordinária dos lagos. Em alguns pontos em que até então abundavam, já hoje se têm tornado raros e escassos (³)."
Já era assim há cento e tantos anos! Surpreendente é a visão desse autor, preocupado com uma questão ecológica que só muito tempo depois viria a ser de interesse geral. 
Atualmente a pesca do pirarucu está submetida a regulamentos que têm por objetivo a preservação da espécie pelo manejo sustentável. As chamadas "fazendas aquáticas" são um modo de realizar a criação desses peixes. A foto abaixo foi feita em uma delas, não muito longe de Manaus, a capital do Estado do Amazonas.

Pirarucu sob a água

(1) Encarregado dos trabalhos etnográficos da Comissão do Madeira.
(2) Entenda-se que Francisco Bernardino de Sousa fez essa afirmação no Século XIX.
(3) SOUSA, Francisco Bernardino de. Pará e Amazonas, Primeira Parte. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1874, p. 116.
(4) Ibid.


Veja também:

4 comentários:

  1. Muito interessante esses documentos do XIX em que aparecem essas visões de preocupação ambiental. Muito provavelmente com o objetivo de manter a continuidade de recursos. É de se refletir também sobre a datação da fonte. Não conheço trabalhos sobre, mas pelas observações que já fiz de algumas fontes é de se notar que na década de 70 do século XIX o abastecimento de alimentos era um problema emergente na região da Província do Amazonas - principalmente em Manaus. Produtos vendidos lá chegavam a custar, segundo alguns Relatórios,até quatro vezes mais do que em Belém na Província do Pará.

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    1. É exatamente isso, Wendell. As observações do cônego Francisco Bernardino de Sousa vêm da década de 70 do Século XIX. A aparente prosperidade ocasionada pela exploração da borracha trouxe consigo uma inflação avassaladora. O próprio cônego já advertia que a borracha talvez viesse a trazer mais desgostos aos trabalhadores que benefícios.
      Quanto aos problemas ambientais, tenho trabalhado um pouco com este assunto e, talvez, no futuro, coloque alguma coisa aqui no blog. Já no Século XVIII havia múltiplas vozes advertindo quanto às consequências da exploração irresponsável de recursos naturais.

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  2. Gosto do nome pirarucu, talvez porque me soe a raridade. Ou, melhor ainda, porque me recorda o enorme esforço de alguns pela não extinção, seja do que for.
    Seja como for, o que eu aprendo por aqui, Marta. Grato.

    Tenha um bom final de semana :)

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    1. No aspecto, parece mesmo bacalhau, quando seco. Foi explorado quase à extinção, mas hoje passa por manejo mais inteligente.

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