quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A reação de indígenas da América do Sul às armas de fogo usadas por europeus

Ulrich Schmidel, alemão, embarcou para a América do Sul na armada sob comando espanhol Pedro de Mendoza, ainda na primeira metade do Século XVI. Seria apenas um soldado, mais um dentre os muitos aventureiros que vieram tentar a sorte no Novo Mundo, a não ser por um detalhe: quando retornou à Alemanha, escreveu um livro, cuja primeira edição, datada de 1567, trazia um título longuíssimo (como era costume na época), que começava com Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart - História Verdadeira de uma Navegação Maravilhosa... O êxito da obra é comprovado pelas sucessivas edições, algumas em outros idiomas, além do alemão.
Mutatis mutandis, Schmidel está para Argentina e Paraguai como Hans Staden (¹) para o Brasil. Sua permanência na América do Sul foi, porém, muito maior que a de Staden: vinte anos, tempo suficiente para que esse soldado-aventureiro-escritor pudesse observar e descrever, o mais das vezes cruamente, os rumos da colonização espanhola na região. No exercício de suas obrigações profissionais, não poucas vezes participou de batalhas contra grupos indígenas, nas quais, com raras exceções, o resultado foi o massacre da população nativa (²). Mesmo que eventualmente o sucesso inicial fosse dos ameríndios, a revanche resultava brutal. Por quê? Demos a palavra a Schmidel, ao narrar a luta contra os habitantes de uma aldeia defendida por uma paliçada e um fosso:
"Quando nos aproximamos e disparamos nossas armas de fogo contra eles, vendo que sem que alguma bola (³) ou flecha os atingisse, aparecendo apenas um ferimento no corpo, ficaram aterrados como diante de uma magia, e desataram a correr, uns sobre os outros, como se fossem cães, e, na pressa por alcançar o interior da paliçada, uns trezentos dentre eles acabaram caindo nos buracos disfarçados que havia ao redor dela." (⁴) 
Usem a imaginação, leitores, e visualizem a cena: os buracos ao redor da paliçada estavam repletos de estacas pontiagudas, e eram disfarçados ao inimigo com a sobreposição de arbustos, terra ou outro material que se prestasse a escondê-los. Na correria que sucedeu à primeira descarga das armas de fogo, os próprios indígenas caíram nas covas. O resultado foi uma carnificina. Mas, com fojos ou sem eles, as armas de fogo dos "conquistadores" eliminariam a maioria dos oponentes. Aos que sobrevivessem (e que não fossem capturados para a escravização) só restava a possibilidade da fuga para algum lugar distante.

Combate entre colonizadores espanhóis e indígenas da América do Sul , de acordo
com a edição de 1599 do livro de Ulrich Schmidel (5)

(1) Hans Staden, eu diria, é mais sofisticado como escritor, levando a vantagem de ter vivido entre indígenas, mesmo contra a vontade. Ulrich Schmidel tem destaque por ter permanecido na América durante duas décadas.
(2) Ainda que algumas vezes os conquistadores tenham sofrido derrotas nada desprezíveis. Muitas das escaramuças narradas por Ulrich Schmidel decorriam da tentativa, por parte dos invasores, de tomar posse do estoque de alimentos de que os povos nativos dispunham. 
(3) Talvez uma referência às boleadeiras que eram usadas como arma por alguns grupos indígenas da América do Sul.
(4) SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599, p. 25. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

2 comentários:

  1. A minha imaginação prodigiosa fez-me estremecer perante as suas descrições. O ser humano vem piorando exponencialmente a sua capacidade de matar.
    Uma linda semana
    Ruthia

    P.S. saiba que no dia que conhecer o pequeno explorador, vai mudar a sua opinião sobre as crianças em geral

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    Respostas
    1. 1. Você não conhece meus sobrinhos e sobrinhas. Se conhecesse, entenderia meu ponto de vista.

      2. Aguarde as próximas postagens. Há pela frente coisas ainda piores que a humanidade tem aprontado. Procuro "temperar" os assuntos, para evitar que os leitores fiquem desesperados rsrsrssssss...

      Tenha uma ótima semana!

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