Usada tanto como arma em combate como para caçar, a boleadeira era já conhecida de indígenas da América do Sul antes da chegada de colonizadores. Mais tarde, depois da introdução do gado de origem europeia, passou a ser usada também na captura desses animais, e a própria confecção da arma veio a incluir, sincreticamente, o emprego de materiais somente disponíveis a partir da colonização, que vocês, leitores, não terão dificuldade em identificar nesta explicação dada pelo espanhol Félix de Azara (¹), ao dizer que havia constatado o uso de boleadeiras de dois tipos (²):
"Estas [boleadeiras] são de duas classes: a primeira se compõe de três pedras redondas do tamanho de um punho, forradas de couro de vaca ou de cavalo e atadas a um centro comum com cordas de couro de uma polegada de espessura e comprimento de três pés. Eles (³) seguram na mão a menor das três bolas e, fazendo as outras girarem com velocidade por cima da cabeça, lançam as três a uma distância de até cem passos; estas bolas se enredam e cruzam de tal modo nas pernas, pescoço ou corpo de um animal ou homem, que é impossível escapar." (⁴)
Perceberam a referência ao emprego de couro de vaca ou de cavalo? Tal coisa somente seria possível a partir da introdução de bovinos e equinos na América do Sul por colonizadores europeus. O outro tipo de boleadeira descrito por Azara, como ele próprio observou, era chamado de "bola perdida":
"A outra classe de bola se reduz a uma só pedra, que eles (⁵) chamam de bola perdida: ela tem o mesmo tamanho das outras, mas quando é feita de cobre ou chumbo (⁶), como acontece muitas vezes, ela é muito menor. É forrada de couro e atada a uma corda do mesmo material com cerca de três pés de comprimento. Para usá-la, seguram a ponta da corda e fazem a bola girar como uma funda, que disparam oportunamente, dando um terrível golpe a cinquenta passos, e mesmo a maior distância, pois eles fazem o lançamento a cavalo, correndo a toda velocidade." (⁷)
É quase desnecessário observar que o emprego de bolas de metal, bem como o lançamento a cavalo são mostras evidentes da aquisição de elementos da cultura e tecnologia dos colonizadores. Para que ninguém incorresse no erro de julgar que boleadeiras eram armas quase inofensivas, Azara acrescentou uma amostra prática do estrago que podiam fazer:
"No tempo da conquista, com esta arma eles [os índios pampas] mataram em uma batalha a Dom Diego de Mendoza, irmão do fundador de Buenos Aires, e outros nove dentre os principais capitães que estavam a cavalo, além de muitos outros espanhóis. Embrulhando bolas perdidas em palha acesa, conseguiram queimar muitas casas de Buenos Aires, e até alguns barcos." (⁸)
Os tempos conflituosos da colonização passaram. As boleadeiras, contudo, permaneceram, usadas na caça por gaúchos, quer de origem indígena ou europeia, durante os dias de cuidado do gado nos campos do sul do Continente.
(1) Félix de Azara foi enviado à América do Sul como comandante da Comissão de Limites Espanhola, cargo que desempenhou entre 1789 e 1801.
(2) Azara menciona boleadeiras com uma e com três bolas, mas imagens antigas mostram o emprego, também, de boleadeiras com duas bolas.
(3) Referia-se aos índios pampas.
(4) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 188. Todos os trechos desta obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Nova referência aos índios pampas.
(6) Outra evidência do contato com a tecnologia dos colonizadores.
(7) AZARA, Félix de. Op. cit., p. 188.
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