terça-feira, 11 de junho de 2019

Conhecimento, na Antiguidade, era questão de ver e de ouvir

beatus qui legit et qui audiunt verba prophetiae et servant ea quae in ea scripta sunt tempus enim prope est
APOCALYPSIS IOHANNIS I, 3

"Para a aquisição de conhecimento", escreveu Estrabão, "a audição é mais importante que a visão" (¹). Essa ideia, é fácil notar, contraria a percepção de hoje no Ocidente, em que se concede um privilégio acentuado ao visual. O que é que levava esse grego da Antiguidade, que viveu no mundo romano, a favorecer o sentido do ouvir? 
No contexto de sua Geografia, Estrabão, explicando que havia viajado muito, mais do que a maioria dos contemporâneos que escreviam sobre o mesmo assunto que ele, afirmou que, a despeito de tudo quanto observara, precisava recorrer continuamente a informações ouvidas de outros, daí a importância que atribuía aos relatórios dos que haviam visitado lugares remotos, nos quais ele próprio nunca pusera os pés.
Contudo, meus leitores, havia razões, na Antiguidade, que, de fato, contribuíam para a relevância do ouvir na aquisição do conhecimento. É que a alfabetização, como vocês sabem, estava longe de ser universal. Assim, os felizes alfabetizados se tornavam leitores para os incapazes de ler. Mas não era só: por estranho que pareça, textos da Antiguidade eram, em muitas línguas, escritos sem qualquer separação entre as palavras (²), e esse detalhe nada insignificante dificultava, se é que não impedia por completo, a leitura silenciosa. Portanto, se havia alguém a ler para si mesmo, compulsoriamente em voz audível, havia gente por perto para ouvir, desejando ou não. Quanta informação não terá circulado dessa maneira!...
Finalmente, havia outro aspecto, que remete ao modo como livros eram publicados no mundo romano. Não havia, é claro, nenhum processo mecânico para a multiplicação de exemplares e, por consequência, qualquer pessoa que escrevesse um livro precisava, para publicá-lo, encomendar cópias manuscritas que, depois, eram distribuídas ou vendidas. Sendo poucos os exemplares, uma atividade social entre a elite era convidar amigos para reuniões de leitura, em que alguém lia, enquanto todos os demais ouviam. É razoável supor que essas reuniões se tornavam mais interessantes na eventualidade de que o autor de uma obra fosse, também, seu leitor, mas é preciso admitir, por certo, que em alguns casos deviam ser um grande tédio, que precisava ser tolerado a bem da etiqueta. Até mesmo em banquetes havia leitura, para entretenimento dos comensais. Quanta atenção, todavia, era dada a essa fração intelectual do cardápio, podemos presumir, meus leitores, por tudo o que sabemos quanto às práticas correntes nos banquetes da velha Roma.

(1) Geografia, Livro II.
(2) Como exemplo, a epígrafe desta postagem ficaria mais ou menos assim, já que, originalmente, foi escrita em grego: 
ΜΑΚΑΡΙΟΣΟΑΝΑΓΙΝΩΣΚΩΝΚΑΙΟΙΑΚΟΥΟΝΤΕΣΤΟΥΣΛΟΓΟΥΣΤΗΣΠΡΟΦΗΤΕΙΑΣΚΑΙΤΗΡΟΥΝΤΕΣΤΑΕΝΑΥΤΗΓΕΓΡΑΜΜΕΝΑΟΓΑΡΚΑΙΡΟΣΕΓΓΥΣ 
Alguém se candidata a ler? Não será demais recordar que, como na Antiguidade tudo o que havia para ler era sempre manuscrito, a caligrafia do copista era um fator a mais para facilitar ou dificultar a leitura.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.