quinta-feira, 6 de junho de 2019

Nos primeiros tempos da Capitania de Ilhéus

Era comum, no princípio da colonização, atribuir à intervenção sobrenatural qualquer coisa que os novos povoadores julgavam ser a eles favorável. Em consequência das ideias religiosas populares que então circulavam, não havia muito espaço para questionamentos de caráter ético e/ou moral em relação à conduta dos colonizadores. Um episódio relativo ao princípio da capitania de Ilhéus, contado por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, ilustra muito bem este assunto. À semelhança daquilo que ocorria em outras capitanias, o contato algo amistoso entre portugueses e indígenas logo foi transformado em confronto aberto:
"Mas sobrevindo [...] a praga dos selvagens aimorés, causaram em tudo grande destruição, e tornou muito atrás esta capitania, assim em fazendas como em moradores. Costumavam estes fazer suas entradas ao sertão contra os aimorés, e em uma destas lhes armaram eles uma tal cilada, que de todos os que entraram, só dizem escaparam quatro, para trazerem as novas (¹) à Vila da morte dos companheiros. [...]." (²)
Assim escaldados, nem por isso desistiram os colonizadores, tampouco registrou-se que tenham eles considerado que suas entradas ao sertão, recobertas de más intenções, é que poderiam ter engendrado a reação dos aimorés, que, por suposto, já tinham ouvido sobre a escravização de indígenas e não queriam ser as próximas vítimas. Sua vitória, contudo, teve vida curta, porque os colonizadores sobreviventes não tardaram em preparar a revanche. Continua Jaboatão:
"Para os vingar ajuntaram amigos e parentes dos mortos uma boa esquadra, com que repetindo as entradas, em uma deixaram sem vida a muitos, e trouxeram presos e cativos uma grande multidão daqueles bárbaros." (³)
Era a lógica da colonização em movimento. Curioso, mas não surpreendente, é que os colonizadores, derrotando e escravizando indígenas, atribuíssem o sucesso a uma intervenção sobrenatural:
"Foi atribuída esta desejada vitória ao socorro e patrocínio da Senhora das Neves, titular e venerada em uma capelinha, sita na mesma Vila dos Ilhéus ao pé do monte que nela se vê no fim da rua que chamam de S. Bento. [...]." (⁴)
As ações dos que viveram no passado não podem ser julgadas apenas pela lógica de hoje. Parte do estudo da História envolve a compreensão da mecânica das relações sociais, dos valores e dos processos mentais daqueles que viveram em tempos diferentes dos nossos. Mas fica evidente que, por volta do primeiro centênio da colonização, as ideias e crenças religiosas não só balizaram comportamentos como foram ferramentas muito úteis para justificar os métodos empregados e - por que não? - para eventualmente acalmar consciências incomodadas com a carnificina que se perpetrava de parte a parte.

(1) Uma referência implícita ao livro de Jó: "...et effugi ego solus uti nuntiarem tibi" (I, 19)
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil  Volume 1. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1858, pp. 88 e 89.
(3) Ibid., p. 89.
(4) Ibid.


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