terça-feira, 18 de junho de 2019

A ilha do índio que fugiu

Pedro Sarmiento de Gamboa foi escolhido para comandar uma expedição que, saindo do Peru, devia percorrer o Estreito de Magalhães, para mapear a região e procurar locais favoráveis ao estabelecimento de povoações colonizadoras. A razão para isso é que se supunha, com sobejas razões, que o extremo sul do Continente, apesar de ser área de navegação dificílima, andava a receber a visita de corsários - aliás, de um corsário em particular, o famoso Francis Drake. Julgava-se, portanto, que era necessário efetivar o controle espanhol da região. Essa expedição de Sarmiento aconteceu entre os anos de 1579 e 1580.
Nas instruções dadas pelo vice-rei antes da partida, havia uma em que se dizia, expressamente, que fizessem o possível para conseguir, com bons modos, índios que servissem de "línguas", ou seja, de intérpretes: "E achando algumas povoações de índios, depois de havê-los tratado com carinho e dado das coisas que levais de tesouras, pentes, facas, anzóis, botões coloridos, espelhos, guizos, contas de vidro e outras coisas das que se dão a eles (¹), procurareis levar alguns índios para línguas às partes onde fordes [...], aos quais fareis todo o bom tratamento [...]." (²)
É possível que, além de ter intérpretes para a viagem, o que já é surpreendente, por ser improvável que encontrassem naquela distante região indígenas que, além de sua língua materna, falassem espanhol, os espanhóis também quisessem trazer alguns ameríndios ao convívio colonial, para que, ao tempo em que se estabelecessem colônias nos arredores do Estreito, fossem com os povoadores e facilitassem o contato com a população nativa. Pergunto: como seria possível conseguir, apenas com a prática de boas maneiras, que alguém deixasse sua família, seu grupo tribal, e fosse, contra a vontade, viajar e viver entre desconhecidos? Contraditório, não? Na formalidade dos documentos é preciso ver além daquilo que se diz. 
De acordo com o relatório feito durante a expedição, Pedro Sarmiento procurou, em todo o tempo e nos menores detalhes, ser o mais obediente cumpridor das instruções do vice-rei. Foi com seus homens em dois navios, costeando a América do Sul, e, com o uso de outra pequena embarcação, às vezes descia em terra para ver o que havia. Assim, logo encontrou indígenas, com os quais procurou fazer contato, e, tendo sucesso, convenceu-os a ir ao lugar em que havia deixado o que trazia, embora desconfiasse, sempre, da possibilidade de um ataque dos nativos. Sua intenção, porém, era, tão pronto quanto possível, capturar um "língua": "Ao chegar ao alojamento, Sarmiento pôs, por segurança, duas sentinelas; procurou tomar algum [dos indígenas] para língua, e com toda a diligência conseguiu tomar um deles, e em seguida Pedro Sarmiento o abraçou, [...], vestiu e o meteram no batel, e nos embarcamos todos [...]." (³)
Missão cumprida? Nada disso: "[...] No quarto da alva o índio que havíamos tomado fugiu daquele que o vigiava; mandando buscá-lo [...] pela beira do mar, o guarda de quem ele havia fugido encontrou-o, e, ao agarrá-lo por uma camisa que vestia, deixou-a em suas mãos, lançou-se ao mar e se foi. [...]" (⁴) Quem, em plena razão, esperaria outra coisa?
No relatório da viagem, o escrivão acrescentou: "Chamamos a este lugar "a ilha do índio [que] fugiu". (⁵)" Aos muito curiosos, informo que, posteriormente, Sarmiento e sua gente capturaram outros índios, com o mesmo propósito de obter intérpretes, e não se fez qualquer menção de que houvessem conseguido escapulir.

(1) Eram as práticas correntes de escambo, não só na chamada América Espanhola, como no Brasil.
(2) GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Viaje al Estrecho de Magallanes. Madrid: Imprenta Real de la Gazeta, 1768, p. 16. Todos os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid., p. 111.
(4) Ibid., pp. 116 e 117.
(5) Ibid., p. 117.


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