Era comum, nos primeiros tempos da colonização do Brasil, que missionários fizessem relatos do que lhes sucedia em seus labores de catequese junto aos povos indígenas. Em cartas enviadas à Europa (¹) e nos livros que escreviam, reuniam informações preciosas sobre o modo de vida dos ameríndios, dificuldades da catequese, beleza natural da terra em que estavam e percalços enfrentados - falta de recursos, doenças, e, para muitos, uma morte prematura.
Se isso era verdade em relação aos que vinham ao Brasil sob o beneplácito do governo português, que dizer de quem pisava o Continente Americano como parte de alguma aventurosa tentativa de estabelecer colônia, "furtando" terras para alguma outra potência? Seria bem o caso dos que tentaram a França Antártica e a França Equinocial...
Foi nessa perspectiva que quatro capuchinhos franceses chegaram ao Maranhão em 1613. Um deles, o padre Yves d'Évreux, escreveu um livro, em que relatou um fato no mínimo curioso, de leitura imperdível:
"O capitão de um navio de guerra deu-nos uma bela imagem, tomada de um navio português, que ia para Pernambuco.
Por acaso [sic!] mandei guardar essa imagem, na hora em que a recebi, numa das caixas que tinha em nosso quarto, e nesse mesmo momento vieram muitas mulheres índias à nossa casa, e vendo a imagem muito bem esculpida, pintada com diversas cores sobre fundo de ouro, admiraram-se e não queriam entrar, dizendo - Yanaité asse quege seta? "que coisa nova é esta que nos olha tão vivamente? Ela nos faz medo." Fi-los entrar dizendo-lhes que não tivessem medo, e que era uma imagem dos servos de Deus. Admirei-me de vê-los imediatamente prostrados a seus pés chorando sua boa-vinda, e depois me perguntaram que carne ela comia para irem buscá-la. Ri-me de tal simplicidade, e coloquei a imagem na capela de São Francisco." (²)
Analisemos com seriedade:
- Escaramuças entre embarcações portuguesas e francesas não eram, nesse tempo, nada incomuns no litoral brasileiro, resultando, para um lado e outro, em eventual apresamento de artigos considerados valiosos;
- Yves d'Évreux não diz quem a imagem representava (a indicação de que foi colocada na capela de São Francisco não é uma pista conclusiva);
- Relatos de vários autores dos Séculos XV, XVI e XVII corroboram a ideia de que indígenas demonstravam muito interesse por objetos de culto trazidos por europeus (³).
Então, onde estaria o inusitado?
Ora, leitores, no fato de que nosso devoto capuchinho francês, que correra o risco da travessia do Atlântico e da vida cheia de percalços na América para catequizar indígenas, não parecia ter nenhum escrúpulo em conservar na capela uma imagem que, afinal, fora roubada dos portugueses!
(1) Cartas eram escritas tanto para dar satisfações aos superiores como para narrar aos irmãos de Ordem as façanhas do dia a dia. Talvez despertassem uma ponta de inveja nos que haviam ficado na terra natal...
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 270.
(3) No Brasil, ao que parece, a curiosidade começou com o levantar da cruz para a celebração de missa por frei Henrique de Coimbra, que viera na esquadra comandada por Cabral.
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