terça-feira, 13 de março de 2018

Geração espontânea

Um capuchinho francês e suas ideias sobre a origem de mosquitos e grilos


Geração espontânea: lembram-se dela, leitores? É aquela teoria maluca, há muito abandonada, segundo a qual seria possível que seres vivos "surgissem", não como descendentes de outros seres vivos, mas a partir de coisas não vivas, ou seja. a partir de matéria orgânica ou inorgânica (¹).
Ora, os defensores da geração espontânea eram tão sérios em seu "método científico" que sugeriam até experimentos comprobatórios. Uma camisa suja de suor, por exemplo, à qual eram adicionadas algumas espigas de milho, podia, perfeitamente, produzir ratos, desde que se esperasse algum tempo. Ou, como se sabe, um pedaço de carne, deixado à decomposição, produziria, espontaneamente, uma porção de vermes!... Curioso é que ninguém tinha o cuidado de isolar o "sistema" para a obtenção de resultados imparciais. Foi somente na segunda metade do Século XVII que a teoria da geração espontânea, até então candidamente aceita, começou a ser questionada com maior profundidade.
Enquanto isso não acontecia, um capuchinho francês, missionário que veio ao Brasil em 1613, escrevia, entusiasmado, sobre as condições naturais nos arredores da colônia que seus compatriotas tentavam fundar no Maranhão. E, como homem de seu tempo, esse missionário, padre Yves d'Évreux, não cogitava excluir a geração espontânea das explicações que formulava para o que via à sua volta. Mosquitos, por exemplo, tão comuns e tão irritantes (²), eram "criados por águas":
"Há neste país diversas espécies de mosquitos [...]. Originam-se de um humor acre, gostam dos sabores picantes e ácidos, e por isso encontram-se muito no mar e suas praias no tempo do inverno, formados pelo humor e vapores do mar.
[...].
Nos lugares mais próximos à água, maior abundância deles existe, visto serem criados por águas, como já disse." (³)
E havia também o caso dos grilos, ao menos no parecer do padre d'Évreux, que ainda se deu ao trabalho de construir uma argumentação para "demonstrar" a origem desses insetos:
"De todos os animais que fazem companhia ao homem no Brasil, nenhum há que se iguale ao grilo, chamado pelos selvagens Cuju [...].
Nasce da corrupção (⁴).
Quando se faz uma casa coberta de palma fresca, aparecem num momento milhões e milhares desses grilos ou Cujus. Virão dos bosques vizinhos? Não pode ser, porque nas casas cobertas de palma velha não são encontrados (⁵), logo força é confessar que se formam na palma nova com o auxílio do sol.
[...]. 
Além disso originam-se também de ervilhas e favas podres, o que conheci por experiência [sic]." (⁶)
Não, leitores, não critiquem as ideias do padre d'Évreux. Ele apenas olhava o mundo através de uma janela muito pequena, cujas vidraças eram meio embaçadas: estou falando da ciência, tal qual ela era no começo do Século XVII.

(1) A teoria da geração espontânea pode ser chamada abiogênese. Evitei o uso desse termo porque, atualmente, ele é empregado também em outro sentido.
(2) Infelizmente, no comportamento desses monstrinhos de asas não houve qualquer melhora ao longo dos séculos. Lamentável!
(3) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 164 e 165.
(4) Ives d'Évreux se referia à matéria em decomposição, embora a mesma expressão fosse eventualmente usada para lixo ou sujeira.
(5) Circunstância que, sob um raciocínio correto, poderia ter levado Yves d'Évreux a outras conclusões.
(8) D'ÉVREUX, Yves. Op. cit., pp. 165 e 166.


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2 comentários:

  1. Marta, deixe que lhe diga que adoro estes relatos.
    Não vou discursar acerca das conclusões do bem intencionado francês. Reconheço-lhe, contudo, tendo em conta o "olhar" daquele tempo, um manancial de boas intenções, fundamentadas em vivência própria. :)

    Um abraço, Marta :)

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    1. As observações de d'Évreux são mesmo incríveis. Podemos achar graça em suas explicações, porque hoje sabemos que não é assim que as coisas acontecem, mas ele teve o mérito de investigar o que havia à sua volta, escrever o que via e, mesmo com conclusões equivocadas, deixar um relato precioso, pelo que lhe somos todos agradecidos. Ele fez, certamente, um bom trabalho.

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