terça-feira, 6 de março de 2018

Material didático usado nas escolas do Brasil Colonial

Cada época tem o material escolar correspondente à sua cultura. Assim, fossem placas de argila (na antiga Mesopotâmia), papiros (entre os egípcios e outros povos) ou mesmo tábuas recobertas por finas camadas de cera (comuns entre os romanos), o fato é que estudantes de todas as idades precisaram e ainda precisam de um suporte adequado ao registro de suas lições. Por trás disso, como sempre, um amargo recurso pedagógico (¹): repetir, repetir e repetir, até que a lição, com boa ou má vontade, encontre um lugar no cérebro. 
Isso era na Antiguidade. Lembro-me de ter entrevistado alguns idosos que frequentaram o jardim da infância nos anos vinte ou trinta do século passado, quando era comum que cada criança dispusesse, na sala de aula, de um pequeno quadro-negro ou lousa, no qual, com giz, podia garatujar as primeiras letras, sem medo de errar e sem desperdício de papel. Quando a lição terminava, era só apagar o quadro, ainda que as mãos dos pequenos ficassem logo sujas do incômodo pó branco ou colorido. O detalhe curioso é que esses quadrinhos tinham o formato aproximado de um tablet com tela de mais ou menos dez polegadas, daí ser possível pensar em um antes e um depois dos gadgets na educação. Desculpem-me, leitores, se a ideia parecer estranha, mas não pude evitar a comparação quando, dias atrás, vi uma menininha de quase seis anos, em fase de alfabetização, escrevendo, apagando o que escrevera e tornando a escrever no tablet que havia recebido como presente no último Natal...
Mas, por exigência do título, falemos do Brasil nos tempos coloniais. Não eram pequenas as dificuldades enfrentadas pelos jesuítas que exerciam a função de educadores no Século XVI. Anchieta, por exemplo, chegava a passar noites em claro para copiar as lições que, no dia seguinte, devia entregar aos alunos. No centênio posterior, o décimo sétimo, as dificuldades, persistentes, eram acrescidas do pouco interesse por parte de colonizadores em mandar a filharada para a escola. Sabe-se que, chegando ao Pará como missionários em 1653, os jesuítas que tinham por superior o padre Antônio Vieira logo constataram que a população, fosse adulta ou infantil, estava longe de primar pela solidez acadêmica. Que fazer? Os enérgicos inacianos não tiveram dúvidas em, tão pronto quanto possível, dar início às classes, para sanar tão lamentável deficiência. Um depoimento datado de 1654, tendo por autor certo licenciado de nome Matheus de Souza Coelho, diz:
"Abriram os ditos padres escolas públicas, em que logo começaram a ensinar, não só aos filhos dos portugueses, mas também a religiosos de diferentes religiões (²)." (³) 
No entanto, para desasnar a criançada (⁴), os padres precisaram fazer mais que dar aulas - tiveram que fornecer também o material escolar, conforme explicou Matheus de Souza Coelho no já citado documento, em que, de passagem, faz referência a um problema crítico no Brasil Colonial, que era a falta de papel: "...dando os ditos padres a todos, de graça, as artes (⁵), cartapácios (⁶) e mais livros por onde haviam de aprender, que para este efeito tinham trazido do Reino, e até o papel em que escrevessem os estudantes por haver pouco na terra, e não chegarem as posses de todos ao poder comprar". (⁷) 
Observem, leitores, que o improviso não era marca da ação educacional do grupo de missionários que Vieira liderava. Se haviam trazido material didático do Reino é porque planejavam, tão logo chegassem, dar início à instrução, não só dos indígenas, a quem queriam catequizar, mas também dos filhos dos portugueses que viviam no Brasil como colonizadores. Vieira nascera em Lisboa, mas se criara na cidade da Bahia, e, portanto, tinha uma ideia exata das carências que haveria a defrontar, assim que tornasse a pôr os pés no Brasil.

(1) Nem sempre muito recomendável, ainda que praticado em larga escala até hoje.
(2) A referência, aqui, é aos membros de diferentes ordens religiosas.
(3) Citado em MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 432.
(4) Não se assustem, leitores: as escolas de alfabetização eram, no Brasil Colonial, conhecidas como "escolas de desasnar"...
(5) Livros-texto ou cartilhas.
(6) Livros para anotações, cadernos.
(7) MORAES, José de S.J. Op. cit., p. 432.


Veja também:

4 comentários:

  1. Acho que as crianças recebem eletrónicos demasiado cedo. O Pedro usa, de vez em quando, o tablet do pai mas apenas ao fim-de-semana. E só teve autorização para tal por volta dos 8 anos. É preciso amar os livros primeiro.
    Beijinho
    Ruthia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Estou totalmente de acordo. Embora eu seja apaixonada por tecnologia, penso que tudo tem seu tempo, inclusive para começar a usar livros eletrônicos. Os de papel devem vir primeiro, são herança cultural da humanidade.
      Um abraço, tenha uma ótima semana!

      Excluir
  2. Desasnar, curiosa expressão usada por quem se sentia detentor da mensagem, detentor da verdade. A verdade dos vencedores, é óbvio, é assim que (grande parte d)a História é escrita.
    Marta, proponho-lhe um exercício que, para mim, é excitante: imaginar o como seria a América se os europeus fossem rechaçados. também o mundo seria diferente, pois é claro. ;)

    Um bom final de sábado :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Acho a ideia muito interessante; prometo pensar nela. Apenas registro aqui que, há alguns anos, ao fazer uma palestra para um grupo de estudantes, propus a seguinte questão: Tentem imaginar o que teria acontecido se, em lugar de virem os europeus à América, os da América é que tivessem "descoberto a Europa"...

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.