Periodicamente, a Câmara de São Paulo mandava vir à presença das autoridades locais todos os juízes de ofícios existentes na vila, para que prestassem juramento, segundo o costume e legislação da época, e para que, com a assistência de um companheiro, que devia zelar pelos interesses do povo, fizessem uma tabela dos preços que podiam ser praticados por todos os que exerciam a mesma profissão.
Assim, é possível, através da documentação existente, saber quais ofícios tinham quem os exercesse em uma determinada ocasião, e, por consequência, tem-se uma ideia do desenvolvimento econômico que, passo a passo, ocorria na localidade. Para o ano de 1628, por exemplo, foram juramentados em São Paulo:
a) Juiz dos carpinteiros, em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Garcia Roiz, carpinteiro, para ser juiz dos carpinteiros que nesta vila há [...]" (¹);b) Juiz dos barbeiros, também em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Francisco Botelho, para servir de juiz do ofício de barbeiro e de tudo mais que tocar a ele [...]" (²);c) Juiz do ofício de seleiro, igualmente em 27 de maio:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio Alves, para que fosse juiz do ofício de seleiro (³) e fizesse o regimento e taxa das obras [...]";d) Juiz do ofício de alfaiate, ainda em 27 de maio de 1628:
"[...] foi dado juramento a Gaspar Gonçalves, para ser juiz do ofício de alfaiate e faça o regimento e taxa das obras [...]";e) Juiz do ofício de ferreiro, em 10 de junho de 1628:
"[...] apareceu Gaspar Dias, ferreiro, e pelo juiz lhe foi dado juramento para servir de juiz do ofício de ferreiro e fizesse o regimento e taxa do que hão de levar os oficiais ferreiros das obras que fizerem [...]";f) Juiz do ofício de sapateiro, em 26 de novembro de 1628:
"[...] foi dado juramento dos Santos Evangelhos a Francisco Roiz, sapateiro, para servir de juiz do ofício e debaixo do dito juramento faça a taxa e regimento [...]."
Um indígena como juiz de ofício em São Paulo no Século XVII
Há, porém, um caso que foge ao padrão. Será melhor deixar que a ata correspondente, do dia 9 de setembro de 1628, fale por si:
"[...] pelo vereador mais velho foi dado juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles a Antônio, moço da terra, da casa de Francisco Jorge, para ser juiz do ofício dos tecelões, por não haver homem branco que o seja, e o dito moço ser o melhor tecelão que há na terra, o qual examinará todos os negros (⁴) que tecem, ao que for perito lhe será dada sua carta de examinação [sic], e ao que não for para isso, que não trabalhe [...]."
Que conclusões são possíveis, então?
A ata é explícita em afirmar que não havia na vila algum português, do Reino ou da terra, que fosse tecelão; é clara, também, em afirmar que o novo juiz dos tecelões, Antônio, era indígena ("moço da terra"), e provavelmente, escravo ("da casa de Francisco Jorge). Se for esse o caso, então todo o trabalho que fazia seria lucro para seu senhor, não para si mesmo, mas isso é apenas uma conjectura. Não há dúvida, porém, de que devia ser respeitado pela qualidade do trabalho que fazia. Finalmente, fica entendido que a preferência era, sempre, para juízes de ofício dentre os colonizadores, em cuja falta, porém, um indígena poderia ser admitido.
(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) No Século XVII, e mesmo muito depois, barbeiros não se encarregavam apenas de fazer a barba ou cortar o cabelo de seus clientes. Em geral, também extraíam dentes e faziam sangrias.
(3) O ofício de seleiro tinha muita importância, porque cavalos e mulas eram indispensáveis ao transporte terrestre, além de usados em diversas tarefas na agricultura.
(4) O termo "negro", nesse tempo, nem sempre era empregado em sentido étnico. Era costume chamar "negros" a todos os escravizados, independentemente da origem, africana ou indígena.
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