sexta-feira, 15 de julho de 2016

A escassez de mão de obra qualificada no Brasil Colonial

As primeiras povoações de colonizadores no Brasil começaram em meio a grandes dificuldades, embora seja verdade que, enquanto não houve tentativas de escravizá-los, indígenas mostraram-se muitas vezes amistosos, ajudaram espontaneamente no trabalho e atuaram como guias quanto ao uso de madeiras, frutos, e mesmo quanto a técnicas de caça e pesca, vitais para a sobrevivência em uma terra ainda desconhecida.
Não era fácil, porém, derrubar árvores (¹), construir casas, limpar uma área para lavoura. Algumas estimativas apontam para um tempo mínimo de dois anos para que uma povoação fosse completamente estabelecida, ao menos com o que havia de mais indispensável para os padrões da época. Existia, ainda, uma dificuldade adicional: eram raros, entre os colonizadores, os chamados "oficiais mecânicos", trabalhadores qualificados que pudessem comandar e supervisionar as tarefas. Para começar a Cidade da Bahia (Salvador), por exemplo, fundada por Tomé de Sousa para ser a primeira capital, vieram muitos funcionários públicos, soldados, alguns religiosos, uns tantos condenados a degredo, mas eram tão poucos os que sabiam ofícios que, segundo Varnhagen, foi necessário baixar um regulamento dispensando os oficiais mecânicos de alguns impostos pelo prazo de cinco anos, a fim de estimular sua vinda ao Brasil. A lista dos profissionais incluía "carpinteiros, calafates, tanoeiros, ferreiros, serralheiros, besteiros, pedreiros, cavouqueiros, serradores ou oleiros" (²), gente indispensável, já se vê, para as construções que a cidade precisaria ter e para a confecção de armas e utensílios necessários à sua defesa.
A necessidade de pessoas qualificadas para o trabalho não passou despercebida ao padre Manuel da Nóbrega, que liderava o primeiro grupo de jesuítas que veio ao Brasil em companhia de Tomé de Sousa. Escrevendo ao padre-mestre Simão Rodrigues em agosto de 1549, observou: 
"É necessário Vossa Reverendíssima mandar oficiais, e hão de vir já com a paga, porque cá diz o governador, que ainda que venha alvará de Sua Alteza para nos dar o necessário, que não o haverá para isto. Os oficiais que cá estão têm muito que fazer [...]. Portanto me parece que haviam de vir de lá [de Portugal], e se possível fosse com suas mulheres e filhos, e alguns que façam taipas, e carpinteiros. [...].
Serão cá muito necessárias pessoas que teçam algodão, que cá há muito, e outros oficiais." (³)
O tempo ficou encarregado de mostrar aos missionários jesuítas que melhor seria para eles que tivessem seus próprios oficiais mecânicos, independente de ajuda do governador-geral. Sendo grande a necessidade, alguns membros da Ordem exerceram ofícios - Simão de Vasconcelos menciona um religioso chamado Mateus Nogueira, que era ferreiro (⁴) - mas, à medida que a Companhia de Jesus prosperava no Brasil, passou a ter escravos que faziam o trabalho. Preocupados em que os escravos fossem casados segundo as leis da Igreja, os jesuítas compravam também escravas, que exerciam ofícios considerados femininos. Seguimos com o relato, de 1585, que é atribuído a Anchieta:
"Quanto aos escravos [...] também são oficiais de vários ofícios, como pedreiros, carpinteiros, ferreiros, carreiros, boieiros e alfaiates, e é necessário comprar-lhes mulheres por não viverem em mau estado e para este efeito na roça têm a dita povoação com suas mulheres e filhos, as quais também servem para plantar e fazer os mantimentos, lavar a roupa, anilar e serem costureiras, etc." (⁵)
Cabe ainda dizer que, se o clero entendeu que era mais fácil treinar cativos para os ofícios, por caminho semelhante andaram os laicos, até porque a ideia era duplamente lucrativa: escravos que tinham uma profissão trabalhavam em oficinas e a renda ia para as mãos dos senhores; o preço de mercado de um escravo que sabia um ofício mecânico era alto, face à escassez de mão de obra qualificada. A Nobiliarchia Paulistana menciona que, no Século XVII, Lourenço Castanho Taques foi proprietário de oficinas nas quais trabalhavam escravos:
"A sua casa era de numerosa escravatura, com lugar destinado para o lavor das oficinas, em que trabalhavam os mestres e oficiais de vários ofícios, seus escravos, de que percebia os lucros dos salários que ganhavam." 
É provável que esses escravizados fossem indígenas, já que essa era a regra em São Paulo nos tempos coloniais. Quanto aos salários, nem precisava dizer...
Há, ainda na Nobiliarchia, uma menção a outro paulista, João Pires das Neves, que também tinha oficinas:
"A sua fazenda era um como arraial pelas casas que tinha com numerosa escravatura de pretos e mulatos, e estes oficiais de artes fabris e mecânicas, os quais trajavam calçados."
João Pires das Neves faleceu em 1720. Distinguiu-se na São Paulo colonial, não porque seus escravos tivessem ofícios, que, como percebem os leitores, não era um fato incomum, mas por ter escravos de origem africana, numa localidade em que imperava a escravização de indígenas, e por permitir que seus escravos andassem calçados, contrariando uma tradição que vinha da Roma Antiga.

(1) Não havia motosserras, é claro; machados e serras manuais demandavam grande esforço físico. Sabe-se que, para os indígenas, cujas ferramentas eram apenas de madeira ou pedra, os machados e serras metálicos pareciam muito atraentes e eram alvo frequente para trocas com europeus.
(2) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 252.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 297 e 298.
(4) Ibid., vol. 1, pp. 176 e 177.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 415.


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