Os moradores das vilas e cidades coloniais eram ávidos por cargos públicos. Explica-se essa preferência, não por fervor cívico, mas pelo desejo de receber o pagamento em moeda corrente, um privilégio que pouca gente tinha, uma vez que quase não havia dinheiro amoedado circulando no Brasil.
Diz-se, porém, que para toda regra há exceção, e houve, no caso do paulista João Martins Barros, um sujeito pra lá de sui generis. Queria ser padre, e até estudou para isso, mas mudou de ideia. Mesmo assim, no dizer de Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana, "conservou-se sempre na resolução de não tomar estado conjugal". Sendo homem muito estimado, não faltou quem lembrasse de seu nome para um cargo público, mas João Martins Barros recusou a nomeação - não queria ver-se metido em encrencas políticas. Diz a Nobiliarchia:
"Para se livrar de entrar muitas vezes em roda de coices [sic], com disposições e governo do senado de sua pátria, pelo despotismo que praticam [...] muitos ministros corregedores da comarca de São Paulo, sacrificou-se a ser guarda-mor das terras e águas minerais, de que teve provisão pela Secretaria do Rio de Janeiro, para gozar da liberdade e quietação fora do ônus de republicano."
Tendo herdado dos pais uma fazenda, João Martins Barros estabeleceu um engenho de açúcar (se com roda d'água ou com bois, não sabemos, mas é certo que não era "roda de coices"...). Lá viveu em paz, ao que parece, mas não por muito tempo.
Paulistas cresciam ouvindo histórias dos sertanistas que, tendo explorado o interior do Brasil à procura de ouro ou capturando índios, voltavam para contar as aventuras para a gente boquiaberta que não arredara pé de sua povoação nativa. Compreende-se, pois, que o sonho acalentado por quase todo menino, assim que chegava à adolescência, era juntar-se a uma bandeira e ir, também, à caça das próprias histórias para contar. Mas já o Século XVIII passava da metade, e a época de ouro das bandeiras, em mais de um sentido, ia ficando para trás.
Então... Continuava Martins Barros a fazer produtivo o seu engenho, quando um acontecimento inesperado mudou tudo. Estando o capitão-general de São Paulo à procura de um homem (¹) que comandasse uma expedição fluvial ordenada por El-Rei, houve quem indicasse o quase padre e que agora era senhor de engenho, "com o concurso", informa a Nobiliarchia, "de ser geralmente amado de seus nacionais e dos seus vizinhos moradores da vila de Sorocaba, cujos paulistas haviam de formar o corpo de trezentos soldados escolhidos para a dita expedição".
Não há como dizer o que é que foi decisivo para arrancar João Martins Barros da paz de sua fazenda, se a honra da nomeação para tão importante empreendimento, se algum senso de dever, se a vontade de provar a si mesmo que podia ser, também, um sertanista capaz, como os paulistas de antigamente, ou se tudo isso e mais alguma coisa. Fato é que, segundo a Nobiliarchia Paulistana, "não pôde João Martins isentar-se desta eleição, e ficou encarregado de todo o trabalho do comando desta expedição que formou um corpo de trezentos e vinte soldados, e no dia 28 de julho de 1767 voltou com as canoas do seu transporte pelo rio Anhamby, que em São Paulo se chama Tieté, e os castelhanos da Província do Paraguai nos seus mapas nomeiam Piquiri." (²)
Ora, meus leitores, o mais curioso disso tudo é que o homem que não queria cargo público pelas razões já declaradas precisou deixar a velha teimosia e foi, para efeitos de comandar a expedição, nomeado capitão-mor. Mas, como aqui se trata da vida real e não de ficção, não é possível terminar com um final feliz: ao que se sabe, João Martins Barros morreu no sertão, na longínqua localidade (³) que, com ordem real, estabelecera, e que, por parecer inviável pela distância, falta de comunicações e insalubridade foi, algum tempo depois, desmantelada.
(1) A Nobiliarchia Paulistana traz: "...um paulista com as prendas que o fizessem digno da importante expedição ao sertão [...].".
(2) A grafia antiga foi mantida em "Tieté" e "Anhamby", para que os leitores tenham uma ideia de como é complicada a questão de determinar quais eram, de fato, os topônimos adotados antigamente.
(3) A Nobiliarchia Paulistana refere-se à povoação como "Guatemim". Tratava-se do Presídio de Iguatemi, uma praça militar que o governo lusitano tencionava manter para assegurar as fronteiras com a América Espanhola, e que foi extinta porque as doenças entre a população, os constantes ataques indígenas e as pragas na lavoura consumiam tantas vidas e recursos que era impossível fazê-la prosperar.
(3) A Nobiliarchia Paulistana refere-se à povoação como "Guatemim". Tratava-se do Presídio de Iguatemi, uma praça militar que o governo lusitano tencionava manter para assegurar as fronteiras com a América Espanhola, e que foi extinta porque as doenças entre a população, os constantes ataques indígenas e as pragas na lavoura consumiam tantas vidas e recursos que era impossível fazê-la prosperar.
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"Ora, meus leitores, o mais curioso disso tudo é que o homem que não queria cargo público pelas razões já declaradas precisou deixar a velha teimosia e foi, para efeitos de comandar a expedição, nomeado capitão-mor."
ResponderExcluirUm homem, por mais que queira, nunca se consegue desligar do mundo que o rodeia, nem que seja por imposição dos outros. Teria, João Martins Barros, aceitado a missão por convicção, ou por imposição? Nunca saberemos, parece-me.
Gostei do post, Marta.
Aqueles eram tempos em que uma nomeação era vista como uma grande honra, uma espécie de atestado de competência e dignidade. É bastante provável que tudo isso tenha determinado a quebra da resistência de João Martins Barros, embora não possamos ter certeza absoluta.
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