sexta-feira, 8 de julho de 2016

A chegada da locomotiva a vapor

Locomotiva a vapor (¹)
A fumaça e o tschuk-tschuk-tschuk característico não deixavam dúvidas: dobrando uma leve curva, lá vinha a locomotiva a vapor, a primeira a chegar àquelas paragens, trazendo consigo dois carros para os passageiros ilustres da viagem inaugural. Há algum tempo, trabalhadores haviam suado debaixo do sol intenso para a implantação dos trilhos. Agora, finalmente, ela aparecia, e toda gente corria rumo à pequena estação para ver a maravilha moderna. Bandeirinhas coloridas que o vento agitava mostravam que esse era mesmo um dia de festa. Quem é que iria querer economizar papel de seda nessa ocasião?
 Um cheiro intenso de carvão queimado tomava conta dos arredores. Promessas de progresso, desenvolvimento, um futuro melhor para a vilazinha interiorana andavam de boca em boca. Bandos de meninos curiosos chegavam tão perto quanto podiam da máquina fumegante. Os mais velhos, com mais compostura, olhavam admirados. Havia até quem se persignasse - era a primeira vez que se via alguma coisa correndo por conta própria, sem ser puxada por cavalos, mulas ou jumentos.
Tschuk-tschuk--tschuk---tschuk----tschuk...
A estrela do dia parece resfolegar. Estará cansada? 
Ouve-se o estalar dos fogos de artifício. O pequeno ajuntamento aplaude os discursos grandiloquentes dos figurões que desejam ser vistos como porta-vozes da modernidade (²). Aqui e ali, circulam comentários do povinho embasbacado.
 Depois da necessária manutenção, maquinista e foguista estão novamente a postos, e lá se vão locomotiva, carros, passageiros. Ouve-se um longo apito e, aos poucos, o tschuk----tschuk---tschuk--tschuk-tschuk da composição que, acelerando, deixa a vila para trás, indo causar espanto em outra povoação.
Nem tudo, porém, é festa. Há medo, também. É sempre assim com as grandes novidades.
Antes das ferrovias, eram poucas as pessoas que viajavam. Havia os tropeiros, é certo, que viajavam continuamente por dever do ofício. Havia gente abastada que ia, de vez em quando, à capital do Império. O cúmulo do luxo cabia aos grandes monocultores que, pelo menos uma vez na vida, reuniam a família e, cruzando o Atlântico, iam à Europa. As coisas que vinham contando deixavam a gente comum boquiaberta, até porque gente comum dificilmente teria como interromper a rotina de trabalho, quase sempre na roça, para ir correr mundo. Compreende-se que, diante das novas perspectivas, havia quem temesse o desmoronar do mundo que até ali parecera tão seguro. Era modorrento, sim, mas isso só sabiam os que já haviam visto algo mais do que a vila e as fazendas ao seu redor.
Havia, além disso, o medo da velocidade. Não se riam, leitores. Uma locomotiva a vapor do Século XIX, desde que em boa forma, podia desenvolver uns cinquenta quilômetros por hora, o que era alucinante para a época. Tenham em mente que a percepção do que é uma "velocidade alucinante" tem mudado muito nos três últimos séculos. Havia quem jurasse que jamais poria os pés em um carro ferroviário. Havia quem, dentro de um trem, tivesse forte vertigem, e não era por causa do balanço desconfortável dos carros e vagões. Montar uma mula parecia infinitamente mais seguro.
Não se pode, contudo, subestimar as mudanças que as ferrovias introduziram no Brasil. As notícias que, no melhor dos casos, viajavam a cavalo, passaram a vir com os trens. Jornais da capital, que podiam antes levar semanas para chegar, vinham no mesmo dia da edição, ou, se tanto, no dia seguinte. Para um Brasil em que havia ainda escravidão, uma mudança notável na demografia de algumas regiões foi introduzida com as levas quase contínuas de imigrantes europeus que o transporte ferroviário fazia chegar às terras do chamado "Oeste Paulista". Eram trabalhadores livres, que pretendiam encontrar ocupação e um lugar onde viver com dignidade, ainda que, para muitos deles, os anos seguintes se provassem de amarga decepção.
Ferrovias, é fato, foram implantadas com a ideia de melhorar as condições de transporte para a produção agrícola que se queria exportar - quem é que poderia, em sã consciência, achar que carros de bois, mulas e escravos eram o modo mais adequado de levar café aos portos? Mas foram, também, um fator poderoso de urbanização e de mudanças, ainda que lentas, nos hábitos de consumo, pela maior variedade de mercadorias que tornavam disponíveis. Viajar, de vez em quando, já podia andar na perspectiva de um número muito maior de pessoas. Novas ideias políticas transitavam pelos trilhos de ferro.

(1) Esta locomotiva a vapor foi restaurada pela ABPF - Associação Brasileira de Preservação Ferroviária.
(2) Em alguns casos, houve inaugurações portentosas para os padrões da segunda metade do Século XIX, em que o trem da viagem inaugural levava o próprio imperador D. Pedro II e outras figuras de destaque do Império. 


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2 comentários:

  1. QUe belo post, Marta!
    Impossível ler seu post sem lembrar da linda viagem de maria-fumaça entre Tiradentes e São João del Rey, em Minas.
    Não consigo entender como num país com dimensões continentais, como o Brasil, não tenhamos uma malha ferroviária adequada. Uma triste realidade que dificulta o transporte do nosso povo...
    Um beijo,
    Ana Christ

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    Respostas
    1. A mudança da matriz de transporte (de ferroviário para predominantemente rodoviário) foi uma opção de governo, a partir dos anos 50 do Século XX.
      É claro que os dois sistemas poderiam coexistir, mas havia, na época, como ainda há, uma variedade de interesses envolvidos. No entanto, seria bom que o assunto fosse repensado, e em escala nacional.
      Obrigada por comentar. Abraços...

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