segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Antônio Conselheiro, uma celebridade?

Em 22 de julho de 1894, mais de dois anos antes, portanto, do início da Guerra de Canudos, Machado de Assis escreveu em sua coluna A Semana, na Gazeta do Rio de Janeiro:
"Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com dois mil homens perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos."
Parece que o mito se formava, já, muito antes que o conflito armado contra as tropas governamentais tivesse início. Estaria o Conselheiro se tornando uma celebridade? Sim, ao modo do Século XIX, talvez não no sentido popular que a palavra ganhou em nossos dias. Em 14 de fevereiro de 1897, quando as armas contra Canudos já não eram apenas as da palavra, e na capital do Brasil os ânimos se exaltavam em debates quanto a ser ou não o movimento de caráter monarquista, Machado de Assis, também na Gazeta de Notícias, voltou a falar do Conselheiro, a partir de um pequeno incidente que presenciara:
"Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:
- Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
- Quem?
Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isso mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residem.
Esta é a celebridade."
Pois bem, celebridade ou não, o Conselheiro não escapou à morte durante a luta travada para esmagar o movimento que suscitara com suas pregações feitas entre o povo castigado pela pobreza e pela seca no Nordeste brasileiro. Aparecera ainda quando o Brasil era Império, e, segundo descrição feita por Euclides da Cunha em Os Sertões, usava "camisolão azul, sem cintura, chapéu de abas largas, derrubadas, e as sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas". Citada também em Os Sertões, a Folhinha Laemmert de 1877 dizia:  
"Apareceu no sertão do norte um indivíduo que se diz chamar Antônio Conselheiro (¹), e que exerce grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto, Revela ser homem inteligente, mas sem cultura." 
Euclides da Cunha provavelmente nunca viu o Conselheiro vivo, mas viu-o depois de morto. A última resistência do arraial de Canudos foi vencida em 5 de outubro de 1897, e, na manhã do dia seguinte, o cadáver do místico foi desenterrado, conforme se lê em Os Sertões:
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. 
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do "famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra (²) - mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
[...]
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista."
Segundo Euclides da Cunha, tiveram a ideia, depois, de cortar a cabeça do Conselheiro, para exibi-la como prova da vitória. Mas já estava morto... Muitos prisioneiros não tiveram a mesma sorte. Foram degolados - vivos.

(1) Antônio Vicente Mendes Maciel.
(2) Como poderia ser diferente?


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