Em 22 de julho de 1894, mais de dois anos antes, portanto, do início da Guerra de Canudos, Machado de Assis escreveu em sua coluna A Semana, na Gazeta do Rio de Janeiro:
"Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com dois mil homens perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem dizem que fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos."Parece que o mito se formava, já, muito antes que o conflito armado contra as tropas governamentais tivesse início. Estaria o Conselheiro se tornando uma celebridade? Sim, ao modo do Século XIX, talvez não no sentido popular que a palavra ganhou em nossos dias. Em 14 de fevereiro de 1897, quando as armas contra Canudos já não eram apenas as da palavra, e na capital do Brasil os ânimos se exaltavam em debates quanto a ser ou não o movimento de caráter monarquista, Machado de Assis, também na Gazeta de Notícias, voltou a falar do Conselheiro, a partir de um pequeno incidente que presenciara:
"Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:Pois bem, celebridade ou não, o Conselheiro não escapou à morte durante a luta travada para esmagar o movimento que suscitara com suas pregações feitas entre o povo castigado pela pobreza e pela seca no Nordeste brasileiro. Aparecera ainda quando o Brasil era Império, e, segundo descrição feita por Euclides da Cunha em Os Sertões, usava "camisolão azul, sem cintura, chapéu de abas largas, derrubadas, e as sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas". Citada também em Os Sertões, a Folhinha Laemmert de 1877 dizia:
- Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
- Quem?
Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-lhe que algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isso mesmo. O nome de Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à filha, depois à neta, à porta da estalagem, ou no quarto em que residem.
Esta é a celebridade."
"Apareceu no sertão do norte um indivíduo que se diz chamar Antônio Conselheiro (¹), e que exerce grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto, Revela ser homem inteligente, mas sem cultura."Euclides da Cunha provavelmente nunca viu o Conselheiro vivo, mas viu-o depois de morto. A última resistência do arraial de Canudos foi vencida em 5 de outubro de 1897, e, na manhã do dia seguinte, o cadáver do místico foi desenterrado, conforme se lê em Os Sertões:
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.Segundo Euclides da Cunha, tiveram a ideia, depois, de cortar a cabeça do Conselheiro, para exibi-la como prova da vitória. Mas já estava morto... Muitos prisioneiros não tiveram a mesma sorte. Foram degolados - vivos.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do "famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra (²) - mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
[...]
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista."
(1) Antônio Vicente Mendes Maciel.
(2) Como poderia ser diferente?
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