terça-feira, 5 de maio de 2020

O que os ferreiros de São Paulo fabricavam no Século XVI

- Mestre Antônio! Ó de casa!...
A fumaça que vem da fornalha enche todo o ambiente, já de si escuro. Só se vê o vermelho do carvão em brasa e, em um dos cantos da oficina, um aprendiz, que, com o martelo, tortura os ouvidos de quem chega, com o som de uma ferradura que ajusta na bigorna. Verdadeiro mistério é que o teto de sapé não se incendeie.
- Ô mestre Antônio! 
Um homem vem, lentamente, ver quem chama.
- Ô Lourenço, bons dias!...
- Bons dias. Vim buscar a encomenda...
- Já está quase tudo pronto, homem. Então partem amanhã?
- Amanhã, depois da missa. Não quer ir?
- Não. Tenho aprendizes, e, desta vez, fico. No ano que vem, talvez vá, também. Venha conferir: estão aqui as tesouras, as facas. Olhe as enxadas, o machado...
Loureço dá um risinho maroto.
- Nem precisava tanto capricho, mestre Antônio!
É que as encomendas eram para "resgates", as trocas com indígenas que a gente de São Paulo fazia em suas idas ao sertão. 
- O facão que me pediu, dos bons, fica pronto daqui a pouco. Estava polindo a lâmina. Vai sair uma beleza!...
- Então, passo depois. E quanto àquelas correntes?
- Guardei lá dentro. São garantidas. As "peças" (¹) não lhe escapam. 
Nova risada.
- Terá sua parte, mestre Antônio...

Deixemos mestre Antônio entretido no trabalho, com seus aprendizes e fregueses. Ferreiros que viviam e trabalhavam na Europa no Século XVI tinham como principais encomendas a fabricação de armas, ferramentas e objetos de uso doméstico. Já aqueles estabelecidos na vila de São Paulo, na mesma época, precisavam atender às demandas do quotidiano colonial, com suas inevitáveis especificidades. 
Como sabemos disso?
Um tabelamento de preços, imposto no ano de 1587, é documento valioso para mostrar o que é que mantinha os ferreiros da vila ocupados. A ordem partiu da Câmara de São Paulo e foi lida publicamente no dia 24 de agosto, "ao pé da cruz que está junto ao adro da dita vila", conforme era costume. Impossível não pensar em tudo o que tal cruz não teria ouvido nesses tempos, se ouvir pudesse, é claro.
A lista é extensa; vamos ao que é indispensável, em transcrição na ortografia atual e com a pontuação necessária à compreensão:
"Das foices roçadeiras de roçar (²), dando seu dono o ferro, setenta réis de feitio, e se o ferreiro der o carvão lhe pagará o dono da foice, e das foices [...] de resgate, sessenta réis; [...] de uma foice nova calçada que vender o ferreiro, duzentos réis; das enxadas para casa, setenta réis de feitio; das enxadas para resgate cinquenta réis de feitio; [...] de um machado novo, sendo ferro e aço de quem manda fazer para trabalho de casa, cem réis; [...] do feitio de um machado novo para resgate, sendo o ferro do dono, oitenta réis; [...] do feitio de uns engonços (³), dando quem os manda fazer o ferro, dez réis; de uma perna para mesa ou cadeira, sendo o ferro de quem o manda fazer, de feitio cinco réis; pregos de foices de trabalho, dois réis, e dando seu dono o ferro, um real; tachinhas para caixas de marmelada, dando seu dono o ferro, duas por real, e sendo do ferreiro, três por dois réis; [...] do feitio de um espeto de três palmos, sendo o ferro de quem o manda fazer, com argola, trinta réis; [...] anzóis pargueiros a três réis [...]; do feitio de um cadeado, sendo o ferro de quem o manda fazer, com uma chave, seis vinténs, e sendo do ferreiro, duzentos réis; de uma chave macho, cinquenta réis, e de feitio de uma fêmea, quatro vinténs; de um ferrolho com sua fechadura e chave, sendo o ferro de quem o manda fazer, para porta de casa, [...] trezentos réis, e sendo do ferreiro, trezentos e cinquenta réis [...]; uma tesoura de resgate, cinquenta réis, e se for o ferro de quem a mandar fazer, trinta réis; [...] de uns estribos de ferro do ferreiro, três cruzados."
Para quem se aventurasse a desobedecer, a mesma ata ainda estipulava uma "pena de quinhentos réis, a metade para o acusador e a metade para o concelho (⁴)."
O que podemos concluir dessa lista que quase acaba com o fôlego de quem lê?
Vejamos cinco aspectos:
  • Devia haver um número muito maior de objetos que ferreiros podiam fornecer, constando na tabela de preços apenas os mais comuns;
  •  Fica evidente a diferença entre ferramentas para uso próprio e "para resgate", pela variação nos preços entre elas. Lembrando que "resgates" eram as trocas ou escambo que se fazia com indígenas, nota-se que era explícita a ideia de que, para esse efeito, as ferramentas não precisavam ser lá muito boas;
  • As tachinhas para as caixas de marmelada eram importantes: a produção de marmeladas da vila de São Paulo tinha fama que alcançava outras capitanias, e, malgrado o pequeno valor cobrado pelos preguinhos, quem as exportava para outras capitanias precisava de um bom número deles;
  • Embora o tabelamento fosse feito em moeda da época, não se deve esquecer que, no Século XVI, e mesmo mais tarde, quase não havia dinheiro amoedado circulando em São Paulo (⁵), e, portanto, os valores deviam funcionar apenas como referência, sendo os pagamentos feitos, de hábito, em espécie;
  • Finalmente, havia um óbvio incentivo à delação, visto que aquele que denunciasse um infrator receberia metade do valor da multa imposta. Essa prática talvez desobrigasse a Câmara de exercer fiscalização por si mesma, porque não faltaria quem desse com a língua nos dentes, se algum ferreiro tentasse burlar o tabelamento (⁶).

(1) No Brasil Colonial, escravos eram muitas vezes chamados "peças". Neste caso, é uma referência a indígenas que sertanistas de São Paulo capturavam e forçavam ao trabalho.
(2) De que mais seriam?
(3) Dobradiças.
(4) Concelho, aqui, é mesmo com "c", por se referir à administração municipal da época.
(5) O mesmo acontecia em outros pontos de colonização no Brasil.
(6) Sim, isso acontecia, mesmo sob a ameaça de multa.


2 comentários:

  1. Um post muito bom: pela introdução (deduzo que de criação da autora) para contextualizar, pela fonte histórica de que se socorre (lista) e pela conclusão aduzida.
    Parabéns, Marta!

    Abraço

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    Respostas
    1. Deveria dizer: Um post muito longo rsrsrssssss... Cheguei a planejar as duas partes (introdução ao estilo de ficção histórica e análise documental) como dois posts distintos, mas acabei juntando tudo e o resultado foi esse que se vê. Só tenho a elogiar a paciência de quem lê até o final.
      Tenha uma ótima semana!

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