Em 1587 os oficiais da Câmara de São Paulo mandaram publicar um tabelamento de preços que podiam ser cobrados pelos ferreiros que trabalhavam na própria vila, ou nos arredores de sua jurisdição. Ora, meus leitores, temos boas razões para crer que a obediência ao tabelamento não mereceria ser classificada como exemplar, porque, no ano seguinte, 1588, manifestaram-se queixas amargas contra um ferreiro que, para impedir que seus fregueses examinassem a tabela de preços, adotara um expediente algo curioso. Deixemos que fale a documentação da época, com seu sabor característico. Dizia a ata da Câmara relativa ao dia 15 de abril de 1588 (¹):
"Aos quinze dias do mês de abril da era de mil quinhentos e oitenta e oito anos, nesta vila de São Paulo [...], pelo procurador do concelho (²) foi requerido ...] que [...] provessem sobre as posturas feitas no ano passado [...], e o povo clamava da pouca justiça mormente agravada da grande carestia e desordem do ferreiro [...]."
Portanto, leitores, fica-se sabendo, já de saída, que o perturbador da boa ordem era o ferreiro, contra quem clamava a opinião pública. Dias mais tarde, os vereadores decidiram chamar à vila dois aprendizes do ferreiro, de quem suponham poder arrancar informações confiáveis:
"Hoje, vinte e oito dias do mês de maio da era de mil e quinhentos e oitenta e oito anos, nesta vila de São Paulo [...] se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] e [...] acordaram os oficiais que se notificasse a Domingos Fernandes, ferreiro, que com pena de mil réis mandasse a esta vila seus aprendizes [...] para com eles fazer certas diligências [...]."
Infere-se, por esse documento, que a oficina do ferreiro devia estar fora da cerca que protegia a vila. Não sabemos o que podem ter conversado o ferreiro e seus aprendizes diante da ordem expedida pela vereança, mas é certo que dois homens compareceram para depor, e não parece ter havido grande dificuldade em fazê-los dar com a língua nos dentes:
"Hoje, quatro dias do mês de junho da era de 1588 anos, nesta vila de São Paulo [...] se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] para fazerem diligência com os aprendizes de Domingos Fernandes, ferreiro, porquanto todo o povo geralmente se queixava por sua carestia, e que não guardava nem queria guardar as taxas que lhe foram dadas de seu ofício [...]."
Cumpridas as formalidades correntes na época, segundo as quais as testemunhas deveriam jurar dizer a verdade pondo a mão direita sobre um livro dos Evangelhos, passaram os vereadores a interrogar Clemente Alves:
"[...] o vereador Fernão Dias (³) lhe fez pergunta se sabia ele se seu amo Domingos Fernandes guardava as posturas e taxas que lhe foram dadas da Câmara, declarou que era verdade que seu amo não guardava as posturas e dava as coisas que fazia na sua tenda por mais da taxa, e se fez pergunta por que razão seu amo mandara pregar o regimento (⁴) que lhe foi dado nesta Câmara no cume do esteio [...], tão alto que não podia ninguém ler e visto de muito poucos, respondeu que é verdade que seu amo lhe mandou a ele pregar o dito regimento na ilharga do dito esteio alto, dizendo-lhe que quem o quisesse ver o fosse lá ler ou dissesse que lho descessem [...]."
Hilária, certamente, essa estratégia do ferreiro descumpridor dos regulamentos. O segundo aprendiz, identificado como Pedro (⁵), confirmou os ditos de seu colega:
"[...] lhe fez pergunta se era verdade que seu amo não guardava as taxas e posturas que lhe foram dadas nesta Câmara e seu regimento, declarou que seu amo não guardava as posturas da Câmara nem usava pelo dito regimento, e levava o que queria pelas obras, e pelo não guardar o mandou pôr à ilharga do esteio da casa, alto que o não podia ler debaixo, dizendo que quem o quisesse ler o mandasse descer [...]."
As trapaças do ferreiro parecem ter irritado os administradores da vila. Uma multa dupla foi estipulada, à qual se juntou a ameaça de que nova desobediência poderia ter consequências mais graves, que, no entanto, não foram referidas:
"Vista a diligência que nesta Câmara se fez com os obreiros ou seus aprendizes de Domingos Fernandes, ferreiro, como declaram que seu amo não guarda as posturas da taxa que desta Câmara lhe foi dada [...], mas tudo faz e dá como ele quer para mais da taxa, o condenamos em mil réis [...], e visto outrossim como ele, em vez de pôr o regimento que desta Câmara levou à porta como é costume, e o mandou pregar em um esteio da casa da tenda tão alto que pessoa alguma o pudesse ler do chão, e é parte que de mui poucos podia ser visto, no que usou como homem pouco temente às Justiças, o condenamos pela desobediência e desordem em quinhentos réis [...], e será avisado que daqui por diante use melhor de seu ofício, guardando as taxas em tudo, sob pena de ser gravemente castigado."
O que teria tornado os aprendizes tão loquazes? Não sabemos. É certo, contudo, que a penalidade deveria servir para desestimular imitadores. Quem conhece alguma coisa da vida na São Paulo quinhentista ou seiscentista sabe, porém, que explorar a freguesia não era defeito apenas de um ferreiro.
A vida nas vilas coloniais, precária como era, acabava resultando em um convite à sagacidade de comerciantes e artesãos de vários ofícios, ávidos por maiores lucros, contra os quais as sucessivas administrações precisavam lidar, nem sempre com muito sucesso.
(1) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, sendo acrescentada a pontuação indispensável.
(2) Concelho com "c", unidade municipal portuguesa.
(3) Esse Fernão Dias, vereador, viveu no Século XVI. Não era, portanto, o bandeirante conhecido como "caçador de esmeraldas".
(4) O regimento devia ser manuscrito em papel ou outro material, porque, nesse tempo, ao que se sabe, não havia quem imprimisse alguma coisa em São Paulo.
(5) A falta de um sobrenome talvez seja um lapso do escrivão, mas poderia ser indicação de que esse aprendiz fosse um indígena formalmente cristianizado. Refere-se que foi capaz de assinar seu nome no final da ata correspondente.
A eterna tentação de driblar a lei vigente, em prol do lucro fácil: ontem, hoje e amanhã. Muda-se a forma, não o conteúdo.
ResponderExcluirUma boa semana, Marta.
Essa é mais uma "infecção" que acompanha a humanidade através dos tempos.
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