O que seria motivo de preocupação entre os administradores da vila de São Paulo de Piratininga, lá pela última década do Século XVI? As atas da Câmara de São Paulo mostram, entre os assuntos recorrentes, a necessidade de zelar por cercas e muros (como prevenção contra ataques de indígenas) e o cuidado com a conservação dos caminhos que levavam à vila - em um documento datado de 1584, cuja autoria é atribuída a Anchieta, o "Caminho do Mar", que ligava o planalto à vila litorânea de Santos, é descrito como um "dos mais trabalhosos caminhos que [...] há em muita parte do mundo" (¹). Além disso, eram frequentes os problemas com a prática de preços exorbitantes no incipiente comércio local; reclamações quanto a pesos e medidas desonestos não eram nenhuma raridade.
Então...
Então, na ata da Câmara de São Paulo, relativa ao dia 22 de fevereiro de 1597, encontra-se o delicioso registro de uma ordem para que todos os que faziam marmeladas comprovassem a qualidade do produto, "para se saberem os que as fazem boas ou más". No melhor estilo da época, e já prevendo desobediência, a ordem vinha acompanhada da seguinte observação: "[...] com pena de perderem as marmeladas para o conselho, cativos e acusador, e mil réis de pena [...]."
O zeloso escrivão (naquele ano era Belchior da Costa) tratou de assinalar, também, no final dos apontamentos relativos àquele dia: "Foi apregoada a postura [...] das caixas de marmelada". Ou seja, as autoridades devem ter feito "passar bando", conforme o uso costumeiro. Fico imaginando o teor da proclamação que poderia ser lida pelas ruas, acompanhada por toque de caixa...
Marmelo (⁶) |
Quando não havia refrigeração, alimentos que resistiam por longo tempo, como peixe seco, biscoitos, feijão, farinha de mandioca e marmeladas (geralmente embaladas em caixas de madeira), eram bastante valorizados como suprimento para quem viajava, fosse por mar ou por terra (⁴). A produção de marmeladas de São Paulo era suficiente para ser exportada para outras capitanias, daí a relevância da ordem dada pelos vereadores (⁵), juízes e procurador naquele distante fevereiro de 1597. Não era implicância ou rabugice de quem mandava. Sabendo o quanto as fraudes eram pretexto de rusgas na jovem povoação, havia sabedoria em zelar pela reputação das marmeladas, ainda que hoje isto pareça até ridículo.
(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 320.
(2) O marmeleiro não é nativo do Brasil; entende-se, portanto, que, ainda no Século XVI, seu cultivo já estava perfeitamente adaptado às condições do Planalto Paulista. Mais tarde, doces feitos com outras frutas, pelo mesmo processo da marmelada, receberiam, genericamente, também esse nome.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 99.
(4) A monção do governador Rodrigo César de Meneses, que foi a Cuiabá em 1726, levava, entre diversos outros itens, nada menos que 144 caixas de marmelada.
(5) Nesse tempo, eram só dois: Antônio de Proença e Balthazar de Godoy.
(6) STURM, Jacob. Deutschlands Flora in Abbildungen nach der Natur. Nürnberg: 1796. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(6) STURM, Jacob. Deutschlands Flora in Abbildungen nach der Natur. Nürnberg: 1796. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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Que curioso. A marmelada hoje caiu em desuso, excepto na casa da minha sogra que faz toneladas anualmente, apesar de não gostar. Parece que o filho (meu marido) em tempos comia marmelada com gula e, desde então, ela cumpre religiosamente a missão de transformar marmelos em tigelas e tigelas, apesar da maior parte terminar com bolor ou no lixo. Portanto, pelo menos em casa dela, marmelada é assunto sério. Quase tão sério como na São Paulo do século XVI.
ResponderExcluirHaha, gostei da história. No Brasil há alguns fabricantes que usam técnicas tradicionais, de modo que é possível dizer que a marmelada é quase folclórica, vendida em pequenas embalagens de madeira. Tem, certamente, seus apreciadores. Para mim, é demasiadamente doce...
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