sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Marmeladas de São Paulo

São Paulo tinha uma produção agropecuária bastante variada em fins do Século XVI


No primeiro século da colonização, São Paulo era mais famosa pelas constantes revoltas e arruaças do que por aquilo que nela se produzia. Paulistas já andavam perscrutando o interior, mas o achado de jazidas auríferas ainda estava distante. As expedições eram, portanto, como regra, organizadas para "descimento do gentio", um eufemismo para aprisionamento de indígenas que seriam escravizados.
Apesar disso (ou, talvez, por causa disso), para padrões coloniais a agricultura tinha razoável desenvolvimento nas terras da Capitania de São Vicente, que hoje integram o Estado de São Paulo. O padre Anchieta escreveu (¹), sobre a região:
"É terra de grandes campos, fertilíssima de muitos pastos e gados, de bois, porcos, cavalos, etc., e abastada de muitos mantimentos. Nela se dão uvas e fazem vinho, marmelo em grande quantidade e se fazem muitas marmeladas, romãs e outras árvores de fruto da terra de Portugal. [...] Se dão rosas, cravinas, lírios brancos." (²)
Anchieta devia saber do que falava, porque não somente viveu em São Paulo de Piratininga, como esteve presente à sua fundação. Ele não foi, porém, o único a falar da produção agrícola e pastoril que havia na Capitania, citando, com entusiasmo, as famosas marmeladas. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (³), observou: 
"São os ares frios e temperados [...], cuja terra é mui sadia e de frescas e delgadas águas, em as quais se dá o açúcar muito bem, e se dá trigo e cevada [...]. Criam-se aqui tantos porcos e tamanhos que os esfolam para fazerem botas [...]. Dão-se nesta terra todas as frutas de espinho (⁴) que em Espanha [...]; dão-se [...] uvas, figos, romãs, maçãs e marmelos em muita quantidade, e os moradores da vila de São Paulo têm já muitas vinhas [...]; e também há já nesta terra algumas oliveiras que dão fruto, e muitas rosas, e os marmelos são tantos que os fazem de conservas, e tanta marmelada que a levam a vender por as outras capitanias." (⁵)
É evidente a concordância entre os testemunhos de Anchieta e de Gabriel Soares. Sabendo que Anchieta viveu durante vários anos em São Paulo, e que, mais tarde,  como provincial jesuíta entre 1577 e 1587 residiu em Salvador, é lícito pensar que possa ter sido uma das fontes de informação a que Gabriel Soares recorreu para compor o seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Não parece restar dúvida, porém, de que ambos eram apreciadores das marmeladas de fabricação paulista, ou não seriam tão enfáticos em fazer menção a elas.

(1) O documento atribuído a José de Anchieta tem a data de 1585 e recebeu o título de "Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre".
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 423 e 424.
(3) Vejam, portanto, leitores, que Gabriel Soares escreveu pouco tempo depois de Anchieta haver composto a sua "Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre".
(4) Referência às frutas cítricas.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 98 e 99.


Veja também:

2 comentários:

  1. Curioso, ou não, o facto de os cronistas salientarem a produção de produtos idos da Europa, em detrimento dos produtos locais. Uma questão cultural, suponho, própria do colonizador.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Parece que os colonizadores, inicialmente, tentavam estabelecer um estilo de vida parecido com aquele que tinham na Europa. Foi somente quando essa impossibilidade ficou evidente que novos hábitos foram aceitos. Verificou-se que a população indígena dispunha de um saber valioso, quando a questão era a sobrevivência na América.

      Excluir

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.